História de proibições

O consumo de certas substâncias faz parte da própria construção cultural da humanidade. E legislações como a Lei Seca nos EUA mostram que proibir não costuma ser a melhor solução

Mulheres e homens bebem em bar da Louisiana, em 1938. Antes da proibição, estabelecimentos eram predominantemente masculinos
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Esta matéria faz parte da edição 126 da revista Fórum. Compre aqui. Imagine se, de um dia para outro, o café se tornasse ilegal e quem fosse encontrado com ele pudesse ser preso. Imagine também que você fosse acostumado a tomar três xícaras por dia, o que você faria por um cafezinho? Essa indagação é feita pelo diretor e fundador da ONG Drug Policy Alliance, Ethan Nadelmann, e o vídeo pode ser visto no YouTube. Nadelmann é um defensor do fim da guerra às drogas nos Estados Unidos. A tese dele é que, se realmente fosse proibido, o café se tornaria mais caro, e quem quisesse muito uma dose diária de cafeína talvez tivesse de se envolver com mercados ilegais para manter seu hábito. Essa situação não é diferente das que vivem muitas pessoas que desejam consumir alguma droga considerada ilícita. A diferença do café em relação a outras drogas é que a substância já foi “domesticada”, na opinião do ativista, o que poderia acontecer com a maconha, por exemplo. Existem muitas substâncias que podem ser danosas à saúde, como o tabaco, o álcool e o açúcar. Com o consumo exagerado, elas provocam consequências, mas podem ser usadas sob o manto da legalidade. Nessa categoria, ainda se encaixam os produtos da indústria farmacêutica. “As drogas são produtos da cultura, são necessidades humanas, assim como os alimentos ou as bebidas, podendo ter um bom ou um mau uso, assim como ocorre com os alimentos”, afirma o professor de História Social da Universidade de São Paulo (USP) Henrique Carneiro, no artigo As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX. “A diferença é que um viciado em açúcar não corre o risco de ir preso, mas apenas o de perder a saúde na obesidade ou diabetes. A ideia da erradicação do consumo de certas substâncias é uma concepção fascista que pressupõe um papel inquisitorial extirpador para o Estado na administração das drogas, assim como de outras necessidades humanas.” Mas quem definiu o que pode ser ou não consumido livremente? Qual é o critério utilizado? Por que, mesmo proibidas, as pessoas continuam a usar drogas? Não existe critério científico para isso. De acordo com o antropólogo Edward MacRae, professor da Universidade Federal da Bahia, a diferença entre drogas lícitas e ilícitas pode ser entendida com base em uma visão histórica e política, não pelo seu potencial danoso. “Ao escolher a repressão como o principal método de abordar o problema, comete-se de início um erro grave. Apesar de se criminalizar a produção, comércio e uso de um longo elenco de substâncias, devido a uma série de razões históricas, políticas e econômicas, acaba-se de fato abdicando de qualquer controle sobre os que mais malefícios causam: o tabaco e o álcool”, afirma no artigo Abuso de drogas: problema pessoal ou social?. De acordo com o antropólogo, o uso de álcool e tabaco é promovido por campanhas publicitárias, mas existe um “controle social informal” que permite que, apesar de ter seu uso liberado, grande parte da população reserve momentos de lazer para o consumo de bebidas. “A maneira como a maioria consegue conviver com substâncias potencialmente tão perigosas e criadoras de dependência como o álcool é que comprova a eficácia dos controles sociais informais.” Tarso Araújo traz em seu Almanaque das Drogas dados que mostram que o álcool pode ser mais danoso que drogas proibidas. A cada 100 mil habitantes, morrem por ano quatro pessoas por drogas ilícitas; já por causa do álcool são 35 mortes. Desastre da Lei Seca De acordo com o jornalista Denis Russo Burgierman, autor do livro O fim da guerra, a proibição das drogas começou no século XX. Após a Lei Seca nos Estados Unidos, que durou de 1920 a 1933, o álcool deu lugar à maconha e a outras drogas na lista de itens proibidos e criminalizados nos EUA. “A guerra contra as drogas propriamente dita tem 50 anos, começou com as convenções internacionais que foram criadas pela ONU, a partir de 1961, sob muita influência norte-americana, já que as políticas proibicionistas já existiam nos EUA. Começou ali um lobby muito forte para a proibição global”, explica Burgierman. Antes da criminalização da maconha, a Lei Seca proibiu a produção, a venda e o consumo de qualquer tipo de bebida alcoólica nos Estados Unidos. A medida se deu após forte pressão da Igreja Protestante, que queria manter a sobriedade da população. Mas milhões de pessoas buscavam com os gangsters um jeitinho de encontrar uma cerveja, vinho ou destilado. Foi nessa época que  enriqueceu um dos mafiosos mais famosos, que mais tarde viraria personagem de Hollywood, Alphonsus Gabriel Capone, o Al Capone. Ele controlava pontos de venda ilegais de bebidas, e estima-se que tenha acumulado uma fortuna de mais de 100 milhões de dólares. Henrique Carneiro destaca que a Lei Seca norte-americana fez surgir, além das poderosas máfias, o imenso aparelho policial “na mesma exploração comum dos lucros aumentados de um comércio proibido”. Nessa época, começaram a surgir outros milionários que lucravam com a proibição, segundo aponta o professor, como a família Kennedy. Hoje, a história se repete. O que aconteceu com a Lei Seca ocorre em escala global. A política proibicionista de combate a drogas não diminuiu o uso e ainda tornou o tráfico rico e poderoso. No Brasil, o poder dos traficantes, o surto de violência e o recorde no número de presos demonstram que a política de drogas fracassou. “A proibição cria uma indústria muito lucrativa e muito desregulamentada,  sem fiscalização, sem regra nenhuma”, afirma Burgierman. De acordo com ele, os comerciantes dessa indústria clandestina atuam para ganhar novos mercados, levando suas mercadorias para serem vendidas até em escolas. A Drug Policy Alliance calcula que somente nos Estados Unidos sejam gastos mais de 51 bilhões de dólares por ano na guerra contra as drogas. Em 2011, 1,53 milhão de pessoas foram presas por porte de drogas naquele país, sendo que quase 758 mil por porte de maconha. Dos presos, dois terços são negros ou hispânicos. Outro efeito negativo da Lei Seca e que se repete hoje, apontado por Burgierman, é que a proibição leva a um uso muito mais perigoso das substâncias. “Com a proibição do álcool nos anos 1920, pela primeira vez as pessoas começaram a morrer de overdose por bebidas alcoólicas, de tão poderosas que elas ficavam. A proibição leva a uma dinâmica que incentiva os produtores a colocarem o máximo de barato no mínimo de dose. Há um incentivo para aumentar a potência das drogas, isso claramente acontece sempre que tem proibição.” Em contrapartida, ele cita o exemplo da Califórnia, que regulamentou o uso médico da maconha e onde as pessoas têm preferido as variedades menos potentes da erva. “O crack foi uma consequência direta da guerra contra as drogas, o Brasil tentou impedir a entrada de produtos químicos que eram usados no refino da cocaína na Bolívia, e o resultado foi que os bolivianos começaram a exportar a pasta base para o Brasil, foram surgindo laboratórios no país, e com o incentivo de buscar formas mais potentes das drogas, veio a inovação, o crack.” Confira também: Política de drogas: uma questão ideológica Ilona Szabó: “Precisamos sair da polarização neste debate” Drogas: “Fizemos a guerra contra o inimigo errado” A Lei de drogas e a criminalização da pobreza Colírios, isqueiros e inspiração Dependência química: internação é solução? A guerra falhou “A guerra contra as drogas falhou e causa mais danos do que seu próprio uso”, afirma a coordenadora de Comunicação da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, Rebeca Lerer, que também integra a Rede Pense Livre – Por uma Política de Drogas que Funcione. “Não existe um mundo livre de drogas em toda a história da humanidade. Eliminar as drogas é uma meta impossível, uma guerra sem fim, é como enxugar gelo para sempre”, diz. [caption id="attachment_32610" align="alignleft" width="300"] Mulheres e homens bebem em bar da Louisiana, em 1938. Antes da proibição, estabelecimentos eram predominantemente masculinos (Russell Lee - Wikimedia)[/caption] Em seus 50 anos, a guerra às drogas não apresentou até hoje dados que revelem algum progresso. Rebeca explica que não há indicadores de sucesso da política proibicionista. Isso só ocorreria se os números indicassem a redução do consumo. Mas, pelo contrário, os números só aumentam, assim como as apreensões, as prisões, os mortos e a violência. Estimativa anual do consumo de drogas feita pelas Nações Unidas mostra que o consumo de cocaína cresceu 27% entre 1998 e 2008; de opiáceos, 34,5%, e de maconha, 8,5%. “Há um problema de como essa política é avaliada. A própria imprensa sempre repetiu essa narrativa, mas agora o custo e o benefício reais dessa guerra estão vindo à tona”, pondera. Nos Estados Unidos, 20 estados já autorizaram a comercialização e o consumo da maconha para fins medicinais. Colorado e Washington foram além e autorizaram também o uso recreativo da maconha. A decisão dos estados foi autorizada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos. A Câmara dos Deputados do Uruguai também aprovou um projeto de lei, que agora precisa passar pelo Senado, que não só autoriza a produção, a venda e o consumo, como dá ao Estado todo o controle da cadeia produtiva. Esse modelo é elogiado pelo professor da USP Henrique Carneiro, já que permite a apropriação pública do negócio, evitando a privatização, como acontece com o álcool e o tabaco no Brasil. Para Denis Burgierman, essas iniciativas são precedentes interessantes para a América Latina e o Brasil. “A guerra contra as drogas é concebida nos Estados Unidos, as convenções internacionais da ONU são defendidas pelo país. O que acaba de acontecer é que os EUA, de certa forma, perderam a autoridade moral para bloquear avanços em outros lugares do mundo, como no Uruguai”, comenta. Atualmente a guerra contra as drogas é baseada em três convenções internacionais: a Convenção Única sobre Estupefacientes, de 1961 (emendada pelo Protocolo de 1972), o Convênio sobre substâncias Psicotrópicas, de 1971, e a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988. Burgierman lembra que a Holanda, um dos primeiros países a avançar na descriminalização do consumo da maconha, tomou muito cuidado para não descumprir os tratados. “Até por isso o sistema holandês tem algumas incoerências, eles regulamentaram a venda, mas não regulamentaram a compra no atacado, nem a produção. A pessoa que compra no coffee shop está legal, mas a pessoa que vende para o coffee shop é um traficante ilegal”, afirma. Para Rebeca, as iniciativas que têm surgido nos Estados Unidos, Uruguai, Portugal, entre outros países, de mudar a política de combate às drogas também tem a ver com o acesso à informação. “Antes a mídia filtrava essa pauta”, comenta. Onde o uso é descriminalizado, muitas pessoas acabam conhecendo alguém que usa a maconha e, assim, quebra-se um tabu. Por outro lado, a regulamentação da maconha poderia trazer desenvolvimento econômico, e o governo poderia arrecadar mais impostos. Hoje, há uma compreensão cada vez mais clara para muita gente de que algo precisa ser feito. O jornalista Denis Burgierman compara o processo de abolição da escravidão à abolição da guerra contra as drogas no Brasil. Naquela época, os três partidos políticos principais – os conservadores, os liberais e os republicanos –  concordavam com a abolição por princípio, mas diziam que o Brasil não estava preparado. Hoje, é comum ouvir isso em relação às drogas e é difícil encontrar políticos que não estejam aposentados dispostos a encarar essa briga. Resta saber se o país está se preparando para avançar na direção da descriminalização e regulamentação do mercado de maconha. Enquanto isso, as construtoras lucram com a construção de novos presídios, as fábricas de armas com vendas recordes e as igrejas com gordas verbas públicas mantêm centros de tratamento sem embasamento científico.  F