“Ideologia de gênero”: a emergência de uma teoria religiosa sobre os riscos da democracia sexual

“Minha hipótese inicial é a de que estão a fundar uma teoria sobre gênero e sexualidade que carece de evidências, consistindo em narrativa religiosa anti-democrática e, portanto, fundamentalista”, diz pesquisadora.

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“Minha hipótese inicial é a de que estão a fundar uma teoria sobre gênero e sexualidade que carece de evidências, consistindo em narrativa religiosa anti-democrática e, portanto, fundamentalista”, diz pesquisadora Por Tatiana Lionço* Não estamos mais em uma Era de caça às bruxas e nem de queima de livros. Isso significa que temos que conviver com a existência de livros controversos. Há os que consideram os livros que eu e outros acadêmicos estudamos como perigosos. De minha parte, também diria que há no mercado editorial livros que apresentam riscos, pois levo a sério o potencial das palavras no agenciamento da vida. Palavras podem ajudar a viver, mas palavras também podem destruir a vida. Graças ao processo histórico de secularização, emergiram princípios éticos na regulação da vida em sociedade, tais como a liberdade de consciência e de expressão, direitos fundamentais relacionados diretamente à dignidade humana. Portanto, não mais se queimam livros (e sequer pessoas em praça pública), o que não impediu a instauração de inquérito civil, por parte do Ministério Público, sobre o livro A estratégia – o plano dos homossexuais para transformar a sociedade, escrito por um reverendo norte-americano e traduzido para o português pela editora evangélica Central Gospel, da Associação Vitória em Cristo do pastor Silas Malafaia, sob alegação de que a narrativa violaria direitos de coletividades. Nos últimos anos, meses, semanas e dias, padeci elaborando notícias de assassinatos cruéis de pessoas que amam e/ou desejam outras pessoas do mesmo sexo, pessoas trans e pessoas mulheres que intencionaram realizar abortos na ilegalidade. Faço questão de repetir a palavra pessoa, uma espécie de mantra particular no atual momento. Diria mesmo que ao fazer isso vivencio uma experiência da ordem da espiritualidade, um modo muito próprio de alimentar a minha fé, restituindo humanidade aonde a humanidade fora aniquilada. Padeci também constatando narrativas depreciativas sobre pessoas. Padeci pessoalmente por ser publicamente abusada na desqualificação moral, mas também padeci pelas outras pessoas difamadas, acusadas e objetificadas na atribuição da imoralidade. Compaixão, do meu ponto de vista, é uma virtude e me compadeço do sofrimento de outrem quando também rebaixados a menos humanos ou mesmo desumanizados na figura do demônio. Sempre me impressiono quando noto a resistência de partes da sociedade com a conquista histórica do reconhecimento dos direitos humanos. A humanidade é inviolável e tenho dificuldades de compreender como ainda existem pessoas que destituem outras pessoas de humanidade ou que reivindicam uma métrica de gradação no humano, propondo haverem algumas pessoas mais humanas do que outras, quando não desumanizadas por meio da demonização. O livro traduzido pela editora neopentecostal do pastor Silas Malafaia, por exemplo, se refere a homossexuais como pedófilos, abominação, consistindo na base teórica daqueles que argumentam a demonização, já que seriam, supostamente, princípios cristãos que justificariam a adjetivação de pessoas homossexuais na base da calúnia de pedofilia anti-cristã. Gostaria de lembrar que a pedofilia não deveria ser qualificada como anti-cristã, mas como crime contra a criança, que inclusive foi sistematicamente praticado por padres e pastores, sem a devida consideração por parte da Igreja Católica por bastante tempo e sem nenhuma forma de auto-crítica por parte de neopentecostais que insistem em acusar gays e se omitem diante dos casos de pedofilia envolvendo pastores. Em alguns pronunciamentos públicos, qualifiquei o fundamentalismo cristão no Brasil como neopentecostal, baseada em estudos mas também informada pela forte incidência política, sobretudo no poder legislativo, de pastores a essa denominação associados. Pode parecer anacrônico, mas bem recentemente assistimos a uma pregação de pastor/deputado alertando a sociedade para o pretenso fato de que ativistas do “movimento gay” seriam engendrados por satanás. Hoje, no entanto, preciso fazer a auto-crítica e afirmar que o fundamentalismo cristão no país também é católico. Neopentecostais e católicos, no entanto, tem operado de modos distintos. Enquanto para os primeiros a ocupação de cargos públicos é uma estratégia prioritária, para os segundos o mais relevante seria formar opinião de suas próprias comunidades de base, embora também tenham mobilizado o repúdio à discussão sobre gênero e sexualidade nas escolas e feito explícitos alertas de risco associados ao Plano Nacional de Educação, efetivando, por meio de aliança com a bancada fundamentalista no Congresso Nacional, a retirada do eixo estratégico gênero por meio da alegação da inaceitabilidade da recém-denominada “ideologia de gênero”. O livro de referência dos católicos ativistas do anti-feminismo e anti-direitos sexuais e reprodutivos foi escrito pelo acadêmico argentino Jorge Scala e apresenta como título Ideologia de Gênero – neototalitarismo e a morte da família, tendo sido traduzido para o português por uma editora católica, a Katechesis. As teses contidas no livro passaram a ser replicadas por autoridades católicas do Brasil, com destaque para o texto de Dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro, publicado no sítio virtual da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mas também em blogs por Dom Anuar Battisti, arcebispo de Maringá (PR), Dom Antonio Carlos Rossi Keller, bispo de Frederico Westphalen (RS), Dom Fernando Rifani, bispo de Maria Vianney (Campos de Goytacazes/RJ) e no jornal A Tarde, por Dom Murilo Krieger, arcebispo de São Salvador da Bahia e primaz do Brasil. O que tenho a dizer é que, apesar de uma evidente qualificação discursiva das autoridades católicas em relação às estratégias argumentativas explicitamente demonizadoras de pastores neopentecostais, os mesmos não conseguem evitar a recorrência a adjetivos para sustentar sua tese de que a “ideologia de gênero”, recém formulada por suas próprias comunidades, apresentaria potencial destruidor. Buscando sistematizar os múltiplos adjetivos adotados pelos mesmos, resumiria o que entendo por seu argumento desqualificador sobre pessoas que reivindicam democratização dos direitos sexuais e reprodutivos nos seguintes termos: a “ideologia de gênero” é uma imposição totalitária, ditatorial, visando uma sociedade marxista, revolucionária, atéia, nefasta, perversa e iníqua por meio de concepções falsas, artificiais, antinaturais e esdrúxulas, que tornam a vida doente, aberrante e imoral. Nem todo pensamento feminista é marxista, embora existam correntes no feminismo que o sejam. Nem todas as feministas são atéias, existe até um coletivo de ativismo brasileiro nomeado Católicas pelo direito de decidir. Existe uma limitação no modo como compreendem nossas reivindicações, eu diria que seu autor de referência é limitado nos conhecimentos sobre estudos de gênero e sexualidade tal como o estamos empreendendo. Não apenas desconhecem, mas distorcem nossos argumentos. Como justificam as distorções? Alegando elementos subliminares, subentendidos, ou seja, atribuem teses a nós que não fomos nós a propor. Como ativista feminista, o que tenho a dizer é que estou buscando compreender a teoria da “ideologia de gênero”, dado que até então, meus estudos sobre gênero e sexualidade não dispunham desta tese. Saibam que há outros discursos sobre gênero e sexualidade, pautados na ética democrática e na revisão de processos históricos de violações persistentes dos direitos de mulheres, sejam estas de família tradicional ou não, religiosas ou não, heterossexuais, homossexuais, transexuais, prostitutas, que praticam abortos ou mesmo mães casadas ou unidas ou solteiras. Nossas teorias de referência consideram violações de direitos e primam pela justiça social, sem discriminar as pessoas. Estes estudos a que me refiro não se pautam no que denominaram na teoria da “ideologia de gênero” por subordinacionismo, não rebaixamos as mulheres a sujeitos impotentes diante das violações, embora reconhecemos sim a hegemonia de ordens morais que naturalizam as violências e que portanto, do nosso ponto de vista, não teriam força suficiente para romper com o ciclo repetitivo de vulnerabilidade das mulheres ao prejuízo, já que esses mesmos discursos justificam a manutenção de violações. Evidentemente existem mulheres felizes e satisfeitas. Eu sou uma delas, mas a minha felicidade é intercalada com o padecimento, assim como acredito ser para todas as pessoas. Em relação aos homens gays, nossos estudos em gênero e sexualidade visam afirmar que eles não são menos homens devido ao desejo por outros homens, embora eles tenham menos direitos garantidos e mesmo são vulneráveis à morte por homicídio baseado em ódio naturalizado e banalizado. Finalmente, não realizamos estudos e sequer defendemos argumentos de extinção absoluta de quaisquer limites sobre a sexualidade. Não há defesa da pedofilia, zoofilia ou necrofilia como estão alegando serem as nossas teses. Esses elementos foram introduzidos pela teoria da “ideologia de gênero” e autores similares, tal como o referido reverendo que escreveu um livro para provar que gays seriam pedófilos. Não somos nós a falar disso, são vocês a trazerem esses assuntos a público. Do meu ponto de vista, a teoria de referência que estão adotando é uma referência questionável. Eu não a recomendaria a meus alunos e alunas de Psicologia, eu não as adotaria em meus trabalhos. O máximo que consigo me aproximar dessas narrativas é tomando-as como objeto de análise para fins de pesquisa, e minha hipótese inicial é a de que estão a fundar uma teoria sobre gênero e sexualidade que carece de evidências, consistindo em narrativa religiosa anti-democrática e, portanto, fundamentalista. Respeito a sua liberdade de expressão, mas discordo de suas teses e métodos em princípios. Mesmo sendo uma pesquisadora laica, minhas opções teóricas não são arbitrárias, pautando-se também em pressupostos éticos. Meu compromisso social com a justiça e contra quaisquer formas de discriminação me impede de adotar teses como a da “ideologia de gênero". Sendo a liberdade de consciência e de expressão direitos garantidos pelo princípio da laicidade em um Estado democrático, entendo que nosso principal desafio é construirmos estratégias para que nossa convivência não se paute em violações, incluso as simbólicas. Que a ética do respeito e reconhecimento das diferenças impere e sobreviva a toda forma de imposição unilateral de dogmas. Meu convite é que paremos de fazer referência a outrem como se pessoas não fossem ou como se pudéssemos destituir-lhes moralidade e dignidade. Somos desafiados a cumprir e aceitar a igualdade, seja perante a lei humana, ou caso prefiram, também perante a lei de Deus. Saibam que nosso caminho tem sido, recentemente, a articulação entre diferentes coletivos da sociedade civil e instituições religiosas, incluso cristãs, em um Movimento Estratégico pelo Estado Laico. Não queremos destruir a Igreja e a família, embora visamos questionar toda forma de violência, que pode ser agenciada também por algumas famílias e por igrejas. Queremos famílias e igrejas que acolham e promovam amor. Não faremos concessões à violência. Lembrem do pedido de perdão do Papa João Paulo II, a respeito do horror da “santa inquisição”, e considerem que a violência danosa pode ser tanto física quanto simbólica. Defendemos a justiça social para todas as pessoas e a laicidade do Estado, já que somente por meio da laicidade garantiremos que tanto vocês quanto nós possamos viver em sociedade expressando nossos pensamentos sem cerceamento e prejuízo. Queremos viver bem, não queremos padecer por desqualificação moral ou mesmo pelo ato de aniquilamento real. Para isso, precisamos de palavras que ajudem a viver. Que assim seja! *Tatiana Lionço é doutora em Psicologia, ativista feminista e membro fundadora da Cia. Revolucionária Triângulo Rosa Foto de capa: Reprodução / YouTube