A importância da criptografia para o trabalho jornalístico

A principal preocupação dos governos é no sentido de impedir que os “vilões” usem a criptografia para esconder provas – “ficar no escuro”. Porém, muitos jornalistas, alguns dos quais vêm defendendo o uso da criptografia como ferramenta de reportagem há anos, não gostaram da mensagem das autoridades públicas. O desafio consiste em transportar a narrativa do “vilão” para uma discussão mais ampla, dos usos legítimos e benéficos da criptografia.

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A principal preocupação dos governos é no sentido de impedir que os “vilões” usem a criptografia para esconder provas – “ficar no escuro”. Porém, muitos jornalistas, alguns dos quais vêm defendendo o uso da criptografia como ferramenta de reportagem há anos, não gostaram da mensagem das autoridades públicas. O desafio consiste em transportar a narrativa do “vilão” para uma discussão mais ampla, dos usos legítimos e benéficos da criptografia Por Kelly J. O’Brien, no Observatório da Imprensa 

A criptografia digital pode parecer um tema menor num debate internacional. Entretanto, nos últimos meses o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, David Cameron, o diretor do FBI James Comey, o diretor da Agência de Segurança Nacional [NSA, na sigla em inglês] Mike Rogers e o presidente Barack Obama avaliaram a possibilidade de uma ampla disseminação da tecnologia criptográfica pelos consumidores.

Todos eles sugeriram, com uma ou outra diferença, que as empresas tecnológicas não deveriam criptografar seus produtos de forma a tornar difícil, ou mesmo impossível, o recurso à aplicação da lei para coletar informação durante uma investigação. Empresas como a Apple e o Google prometeram introduzir um tipo de criptografia pré-determinada que nem elas conseguiram desvendar por ocasião dos vazamentos de Edward Snowden que revelaram uma vigilância governamental maciça. Na terça-feira [24/2], Hillary Clintonchamou o debate sobre criptografia de uma “clássica e difícil opção” entre preocupações com privacidade e segurança nacional.

A principal preocupação dos governos é no sentido de impedir que os “vilões” usem a criptografia para esconder provas – “ficar no escuro”, como disse James Comey em sua palestra no Instituto Brookings no ano passado. Porém, muitos jornalistas, alguns dos quais vêm defendendo o uso da criptografia como ferramenta de reportagem há anos,não gostaram da mensagem das autoridades públicas. O desafio consiste em transportar a narrativa do “vilão” para uma discussão mais ampla, dos usos legítimos e benéficos da criptografia.

Numa tentativa de conseguir um aliado importante nessa luta, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas e a organização Repórteres Sem Fronteiras anunciaram na semana passada que apresentaram uma carta conjunta às Nações Unidas, argumentando que os repórteres devem poder “usar a criptografia para se proteger, para proteger suas fontes e o livre fluxo das notícias”. A carta foi em resposta a um pedido de propostas feito por David Kaye, relator especial das Nações Unidas para liberdade de opinião e de expressão, que vem redigindo um relatório sobre “o marco legal que rege a relação entre liberdade de expressão e o uso de criptografia para garantir transações e comunicações”.

Boicotar a criptografia é boicotar jornalismo seguro

David Kaye diz que espera fazer pela criptografia o que um relatório feito por seu antecessor nas Nações Unidas – e divulgado cerca de um mês antes das primeiras revelações feitas por Snowden – fez pela vigilância maciça. “Antes, as pessoas pensavam em vigilância como uma simples questão de contraterrorismo e aplicação da lei e acho que hoje as pessoas que não militam na comunidade de direitos humanos compreendem que a vigilância tem um impacto sobre os direitos”, disse Kaye numa entrevista por telefone. “Uma coisa é os jornalistas que fazem a cobertura das revelações de Snowden escreverem sobre vigilância. Outra coisa é um perito independente das Nações Unidas proporcionar uma estrutura para que se reflita sobre vigilância.”

Geoffrey King, coordenador da defesa na internet para o Comitê para a Proteção dos Jornalistas e que ajudou a redigir a carta às Nações Unidas, disse que aquela entidade deveria exortar as nações a reconhecerem a criptografia como uma ferramenta para a proteção de jornalistas, ativistas e outros grupos vulneráveis. “Acredito que, no ponto em que nos encontramos, o poder normativo de termos as Nações Unidas assumindo uma posição forte é muito significativo”, disse. “Estamos tentando proteger o espaço para que os jornalistas possam ajudar a si próprios.”

A carta do CPJ e RSF dá exemplos, no mundo todo, de jornalistas que foram bem-sucedidos ao utilizarem a criptografia para proteger material delicado e de outros que acabaram sendo presos por não o fazerem. Também argumenta que os jornalistas do mundo todo estariam mais seguros em relação a governos repressivos se a criptografia fosse amplamente adotada ou pré-determinada e, fundamentalmente, enfatiza que as políticas que boicotam a tecnologia da criptografia também boicotam um jornalismo seguro.

Um relatório que já vem tarde

Infelizmente, os especialistas em segurança digital dizem que as autoridades de inteligência ocidentais estão, na verdade, boicotando a eficácia da criptografia quando pedem às empresas que conservem algum tipo de acesso ao dispositivo de um usuário. Geoffrey King diz que ficou preocupado quando ouviu recentemente a compreensão da criptografia ser questionada por autoridades de primeiro escalão. “Agora temos o diretor do FBI, o ministro da Justiça dos Estados Unidos, o presidente dos Estados Unidos e o primeiro-ministro do Reino Unido usando argumentos espúrios sobre as ameaças da criptografia e como ela funciona”, disse King. “Quando temos pessoas nesse nível, que deveriam saber do que estão falando, que têm acesso a todos os recursos possíveis, dando declarações equivocadas como essa, a coisa torna-se muito, muito preocupante.”

David Kaye disse que compreende por que os jornalistas se preocupam ao ouvir a forma pela qual as autoridades de inteligência estão abordando o debate sobre a criptografia. Ele espera que seu relatório – que deve ser apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em junho – possa proporcionar aos países uma estratégia para fazer as necessárias, e difíceis, opções para uma plena aceitação da criptografia. “Pelo menos, o impacto mais importante que poderemos ter é tentar criar uma discussão realista das compensações”, disse Kaye. “Se você continuar seguindo o caminho das portas dos fundos, ou o que quer que queiram chamá-las, existem sérias implicações sobre outros valores que os governos têm. Há séria implicações para ativistas, para uma imprensa livre e mesmo para nossa segurança financeira.”

Embora os governos nacionais sejam a principal audiência para o relatório de David Kaye, ele também pretende tornar os jornalistas mais confortáveis usando a criptografia. Uma pesquisa recente feita pelo Instituto Pew mostra que, embora 80% dos jornalistasacreditasse que, sendo um repórter, seria mais provável que o governo coletasse suas informações, metade deles disse que não usa ferramentas de segurança online. “A tecnologia [da criptografia] assusta muita gente, ou é considerada muito difícil”, disse Kaye. “Acho que é importante que haja mais gente usando essa tecnologia para se proteger.”

Considerando a atual mensagem sobre a criptografia vinda de Washington e a adoção inexpressiva da tecnologia entre jornalistas, o relatório de David Kaye já vai chegar tarde.

Imagem: Images.com/Corbis