Segurança pública para todos só é possível com uma nova polícia

A violência policial que está localizada e naturalizada nos espaços pobres e populares hoje alcança as ruas e revela uma corporação inabilitada para lidar com manifestações e protestos populares

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A violência policial que está localizada e naturalizada nos espaços pobres e populares hoje alcança as ruas e revela uma corporação inabilitada para lidar com manifestações e protestos populares

Por Atila Roque e Alexandre Ciconello*

Esta matéria faz parte da edição 128 da revista Fórum. Compre aqui.

O Sistema de Segurança e Justiça no Brasil permanece profundamente marcado por uma noção de controle social voltada basicamente para a criminalização das populações pobres e negras, em particular dos jovens meninos e adolescentes residentes nas favelas de nossas cidades. Para esses jovens, o encontro com os agentes da segurança pública quase sempre resulta em violência e, muitas vezes, em morte. Os homicídios provocados por policiais no Brasil se encontram entre os mais altos do mundo. A superação desta realidade e a promoção de uma reforma profunda no sistema de segurança brasileiro permanecem como uma das tarefas inacabadas da transição democrática.

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Entender a dinâmica da violência policial no Brasil passa por reconhecer que ela expressa e foi forjada por um processo socio-histórico de constituição de um Estado originalmente escravista, que explorava e reprimia populações indígenas, negras e pobres para garantir privilégios a uma pequena parcela da elite colonial.

As forças de segurança serviram como a face mais visível do Estado na manutenção de estruturas de opressão e privilégios sociais. A origem da Polícia Militar no Rio de Janeiro remonta ao início do século XIX, criada para proteger a recém-chegada Corte no Brasil. No seu brasão, ainda figuram as armas ao centro e a proteção do poder (representado pela coroa) e a propriedade da elite (representada pelos pés de café e cana-de-açúcar). No brasão da Polícia Militar paulista figura à direita a imagem de um bandeirante, ao lado de um escudo português, com uma espada em punho.

A ditadura militar utilizou as Polícias Militares na operacionalização da repressão política, com a institucionalização da prática de tortura, execuções sumárias e desaparecimentos. A lógica militar era enfrentar os cidadãos que lutavam pela democracia e pela liberdade de expressão. Os anos recentes da ditadura e a negação do direito a memória, justiça e verdade contaminaram a corporação criada para servir ao poder, e não à cidadania.

De 1980 a 2011, o número de homicídios no País aumentou de 13.910 (taxa de 11,7 homicídios por 100 mil pessoas), para 52.198 (27,1 por 100 mil), configurando o Brasil como o sétimo país mais violento do mundo.

A violência não atinge a todos/as de maneira igual. A repressão e a violência letal são seletivas, assim como é seletivo o Sistema de Justiça Criminal. A taxa de homicídios entre os jovens, em 2011, é de 53,4 por 100 mil, sendo que destes 76,9% são negros.

As Polícias Militares, as Polícias Civis e o Sistema de Justiça Criminal atuam com um caráter repressivo e de criminalização dirigido prioritariamente para certos grupos sociais. Em geral, contra comunidades pobres e negras, com ênfase nos jovens. Na prática, o objetivo principal da ação das instituições de segurança ainda não tem sido a proteção e a garantia de direitos, mas um caráter repressivo e regulador das sociabilidades.

Embora algumas experiências recentes tenham despertado algum otimismo e certo grau de expectativa em relação à mudança desse quadro, a realidade da segurança pública no Brasil permanece refém da histórica inércia institucional, que bloqueia qualquer tentativa de reforma profunda das polícias. A resistência a qualquer mudança estrutural nessa área se manteve durante toda a transição democrática, e ainda hoje não encontra espaço entre as prioridades do Estado, seja na esfera nacional ou estadual.

A ocorrência cada vez mais frequente de conflitos e mortes nas favelas ocupadas pela polícia tem deixado bem claro que a janela de oportunidade aberta com a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) começa a se fechar muito rapidamente. As práticas policiais nas favelas “pacificadas” não estão conseguindo superar um conceito original de “ocupação” profundamente marcado por uma concepção de cidade que não inclui a favela como parte de uma comunidade de direitos, a serem compartilhados integralmente por todas as pessoas que nela residem, sem exceção.

As circunstâncias que cercam a prisão, a tortura e o assassinato do cidadão Amarildo de Souza – ocorrido em junho de 2013, nas dependências de uma UPP na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro – são um indicativo trágico do grau de enraizamento da cultura da violência nas instituições policiais. O indiciamento de 25 policiais, inclusive o comandante da UPP, não deixa dúvidas sobre a natureza institucional dessas práticas.

O que temos visto é a persistência de uma narrativa de guerra que demarca os territórios de favelas como espaços a serem retomados de um exército inimigo (o tráfico), ocupados pela polícia e pacificados. As populações seriam, nessa versão, espectadores passivos – muitas vezes vítimas “colaterais” – desse esforço “liberador”.

São muitos os exemplos de um modo de atuar que penaliza as comunidades pobres e criminaliza a juventude negra. Foi o que vimos neste ano, em junho, quando o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da PM do Rio de Janeiro empreendeu, na favela da Maré, uma operação durante a madrugada, em que nove pessoas foram mortas. A operação foi uma ação de retaliação aleatória à morte de um sargento do Bope em confronto com criminosos locais, horas antes. A realidade em outros estados não é diferente, sendo muitas vezes, inclusive, mais graves em termos de perdas de vidas de jovens, conforme verificamos nos dados do Mapa da Violência.

Os protestos que eclodiram no Brasil desde junho e a violenta e desproporcional reação da Polícia Militar visibilizaram a brutalidade da corporação e sua total incapacidade de lidar com manifestações democráticas e legítimas. O treinamento militar faz com que policiais encarem cidadãos como inimigos, tendo a impunidade garantida pela falta de mecanismos independentes de controle externo.

A violência policial que está localizada e naturalizada nos espaços pobres e populares hoje alcança as ruas e revela uma corporação inabilitada para lidar com manifestações e protestos populares.

É fundamental criticar as polícias com o objetivo de reformá-las e democratizá-las. O Estado deve deter o monopólio da força, e a existência das polícias e do sistema de justiça criminal são fundamentais para garantir o direito a uma vida sem violência. Contudo, mudanças são necessárias.

A redemocratização do Brasil e a Constituição Cidadã de 1988 não foram capazes de promover mudanças nas estruturas da segurança pública brasileira e nas polícias, resultando em corporações desalinhadas com o Estado de Direito e com as exigências de um contexto democrático plural e diverso.

Uma primeira mudança necessária é a desmilitarização. É preciso discutir os caminhos que possam aproximar a polícia da cidadania e do bem público. A lógica que domina a formação policial ainda coloca ênfase em uma perspectiva de defesa contra um inimigo externo, que resulta em um treinamento e uma perspectiva que coloca a polícia a serviço do Estado contra o cidadão.

Para além da desmilitarização da Polícia Militar é fundamental o estabelecimento de um ciclo completo dentro das polícias. As deficiências de investigação e a seletividade na aplicação da justiça são uma via aberta para a impunidade. O índice de elucidação dos crimes de homicídio, por exemplo, é muito baixo no Brasil. Segundo levantamento realizado pela Associação Brasileira de Criminalística, em 2011, apenas entre 5% e 8% dos casos de homicídios foram elucidados. Mais de 90% dos inquéritos de homicídios foram arquivados antes de se transformarem em denúncias.

Por último, o controle externo é fundamental. Não há mecanismos independentes de controle e investigação da atividade policial, o que contribui para a impunidade de agentes policiais envolvidos em crimes como os que envolvem abuso e brutalidade policial, tortura e execuções sumárias. No caso mencionado de Amarildo de Souza, vimos o quanto a demora em afastar policiais e o comandante da UPP deixou espaço para eliminação de evidências, coerção e ameaças às testemunhas e familiares, e interferência na investigação policial.

O medo e a insegurança da população são alimentados pelos meios de comunicação e outras organizações. Os sentimentos de insegurança e medo são facilmente manipulados e levam a clamores populares por mais repressão e criminalização, dando carta branca para a violência institucional.

É chegado o momento de estabelecer um pacto nacional pelo fim da violência e da repressão que tenham como objeto central a reforma das polícias e mudanças no Sistema de Justiça Criminal e do Sistema Prisional. Devemos parar com um ciclo de repressão e morte que gera histórias interrompidas, famílias destroçadas e uma sociedade brutalizada pela violência que nos desumaniza. É preciso aproveitar o momento atual para ampliar o debate sobre a segurança pública com a qual sonhamos para o Brasil. Um sistema de segurança pública que traga orgulho aos profissionais que nele atuam e confiança aos cidadãos e cidadãs que dele se beneficiam. F

*Atila Roque é diretor executivo da Anistia Internacional Brasil e Alexandre Ciconello é assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil.