Índio Galdino, dez anos depois

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Desde a morte do líder pataxó por jovens em Brasília, 257 indígenas foram assassinados no país. O caso, porém, enlaça ainda o drama do povo da rua

Por Paulo Maldos   Na madrugada do dia 20 de abril de 1997, o índio Galdino Jesus dos Santos, de 44 anos, do povo pataxó hã-hã-hãe, do estado da Bahia, dormia no ponto de ônibus de uma praça pública de Brasília. Tinha ido para a capital federal junto de uma delegação de oito lideranças com seu povo, com o objetivo de buscar apoio para as reivindicações de recuperação do território, invadido por fazendeiros. A terra tradicional dos pataxós hã-hã-hãe é denominada de Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, tem 53.400 hectares e foi demarcada em 1934. Naqueles dias, uma marcha nacional do MST havia chegado à cidade. Galdino participou da recepção aos sem-terra e de reuniões destes com autoridades, inclusive com o presidente da república à época, Fernando Henrique Cardoso, para apresentar também as reivindicações indígenas. Galdino dormia no ponto de ônibus porque, ao chegar das reuniões à pensão onde se hospedava, já era tarde. A dona da pensão recusou-se a lhe abrir a porta. São cinco horas da manhã. Galdino acorda completamente em chamas. Socorrido por jovens que voltam de uma festa, é levado ao hospital. Com queimaduras em 95% do corpo, logo entra em coma. Antes de ficar inconsciente, pergunta aos médicos que o atendem: “Por que fizeram isso comigo?”. Faleceu às duas horas da manhã do dia 21 de abril de 1997. A pergunta sacudiu a sociedade brasileira, chocada com o horror da crueldade que ciclicamente nos atinge, às vítimas em primeiro lugar e, em seguida, a todos nós, em nossa auto-imagem de humanidade e civilização. Os autores da barbárie foram cinco jovens de classe média brasiliense, um deles menor de idade. Numa noite vazia, resolveram atear fogo numa pessoa que dormia indefesa para, segundo declarou o menor, se divertirem. Cometido o crime, fugiram, mas um outro jovem que passava por ali, um chaveiro, anotou o número da chapa do carro dos assassinos e o entregou à polícia. Depois da brutalidade, os criminosos foram para casa dormir, como se nada tivessem feito. Foram identificados e presos. Diante da comoção nacional ainda quiseram se defender, com o argumento: “Não sabíamos que era um índio, pensávamos que era só um mendigo”. Como se em mendigos fosse permitido atear fogo... Sem resposta  Podemos nos interrogar novamente: por que fizeram isso com ele? Continua difícil responder, e os crimes bárbaros não cessaram. Foram inúmeros os mendigos assassinados, muitos por meio de fogo, em praças e ruas de cidades brasileiras, durante as noites dos últimos dez anos. Suspeitos foram vários: policiais; seguranças; comerciantes; quadrilhas; apenas assassinos. Identificados e punidos? Nem um sequer nos vem à memória. Desde 1984, moradores de rua são agredidos e mortos por grupos que atuam durante a noite, nas capitais e cidades do interior do Brasil. Nos dias 19 e 22 de agosto de 2004, sete moradores de rua de São Paulo foram brutalmente assassinados enquanto dormiam. Os principais suspeitos foram policiais que trabalhavam fornecendo segurança para comerciantes do centro da cidade. Em 2006, moradores de rua de Belo Horizonte foram agredidos com fogo. No dia 21 de março de 2007, em Garanhuns, no agreste pernambucano, um adolescente lançou gasolina e em seguida ateou fogo em dois moradores de rua, enquanto dormiam na varanda de uma casa abandonada: um menino de rua de 16 anos e um adulto, de 38 anos, foram internados com ferimentos graves. Quanto aos assassinos de Galdino, encontram-se em liberdade condicional desde o final de 2004. O menor não chegou a ser preso. Os maiores Tomás Oliveira de Almeida, Eron Chaves Oliveira, Max Rogério Alves e Antonio Novely Cardoso trabalharam na prisão, raro privilégio concedido a poucos na situação deles, e conseguiram abreviar a pena. Trabalharam e estudaram fora do presídio, estando em regime fechado, privilégio concedido pela Justiça, embora totalmente ilegal. Muitas vezes foram vistos nas noites de Brasília, bebendo com amigos, quando deveriam estar encarcerados. De abril de 1997 ao mesmo mês de 2007, foram 257 indígenas assassinados em todo o país, segundo dados do Setor de Documentação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Os dados incluem crianças, jovens, adultos e idosos mortos em diferentes circunstâncias. Entre os casos, há lideranças mortas em lutas por território, assim como homicídios praticados por outros indígenas. Idosos foram executados por seguranças de fazendas e jovens vítimas de jagunços a mando de fazendeiros. Adultos assassinados em brigas na cidade, crianças atacadas por crueldade, e ainda mulheres violentadas e assassinadas por brancos. O número 257 encerra um grande e secular drama: o dos povos indígenas em nosso país, composto por muito sofrimento, vivido por muitos povos e por muitas comunidades indígenas. Muitas dessas mortes foram parecidas com a de Galdino Jesus dos Santos. Numa cidade do Rio Grande do Sul, assassinos, encobertos pela noite, causaram a morte violenta de um idoso indígena. Na área rural do Mato Grosso do Sul, na beira de uma estrada, na porteira de um acampamento, um tiro covarde disparado à distância por seguranças de fazenda atingiu um líder indígena sem nenhuma condição de defesa. Todos esses crimes seguem rigorosamente impunes. Depois de dez anos, a situação da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, pela qual lutava Galdino, encontra-se parada no Supremo Tribunal Federal. Ela é objeto de uma ação de nulidade de título dos fazendeiros que invadiram aquela terra com a conivência do governo do estado da Bahia. Povos indígenas e povo da rua A morte do índio Galdino enlaça dois dramas: o dos povos indígenas e o do povo da rua. O que têm em comum esses povos é a sua radical humanidade, sua característica frágil, excluída de toda “utilidade” para um sistema em que apenas a mercadoria e o “ser mercadoria” contam. Como não cabem no sistema do capital, este tenta eliminá-los, seja pelos “seguranças” urbanos, seja pelos “seguranças” e jagunços rurais. Seja, também, pelo preconceito, ódio e desprezo, enraizados pelo mesmo sistema em parte da população brasileira e que se manifestam em nosso cotidiano em múltiplas formas de violência. O que se coloca como um desafio para todos nós é compreender o que acontece de tão grave em nossa sociedade, para que seres humanos sejam submetidos sistematicamente à violência e à morte com características de barbárie. Torna-se urgente compreender e mudar o destino de nossa sociedade, rompendo com um sistema econômico e com uma ideologia que sacrificam aqueles que não cabem na lógica do capital. Torna-se necessário construir uma outra sociedade, na qual povos indígenas, povo da rua e todos possamos viver, integral e livremente, nossa humanidade comum.