Irã e EUA, via Israel

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Mais que qualquer outro país, o Irã conhece bem a história da política estadunidense para o Oriente Médio. Em 1953, seguindo-se à nacionalização do petróleo pelo reformista Mossadeq, a CIA realizou aquela que Robert Fisk chamou de “primeira operação golpista da Guerra Fria”, iniciando uma série que, como sabemos os latino-americanos, incluiria outras numerosas intervenções. A operação foi comandada por Kermit Roosevelt, neto do ex-presidente Theodore, e daria origem às câmaras de tortura mais temidas do Oriente Médio, as do Xá Reza Pahlavi. Em 1977, a Cruz Vermelha conseguiu acesso às prisões do regime imposto pelos americanos e compilou os nomes de 124 prisioneiros mortos sob tortura. Confirmou-se: os prisioneiros do Xá eram sistematicamente espancados, queimados com cigarros, sodomizados com garrafas e ovos quentes, eletrocutados. Foi a primeira operação americana destinada a “levar a democracia” ao Oriente Médio. A Revolução Islâmica de 1979 produziria outro capítulo nas relações entre os EUA e o Irã. Apesar da derrota da política imposta em 1953, não havia plano de invasão do Irã em 1979. Mas um brinde oferecido por Jimmy Carter ao Xá exilado e a autorização de um tratamento num hospital estadunidense foram suficientes para que os rumores de golpe ganhassem credibilidade numa população iraniana já escaldada por 1953. Em 4 de outubro de 1979, 53 cidadãos americanos foram tomados como reféns em Teerã. Eles seriam mantidos até 20 de janeiro de 1981 e liberados 20 minutos depois do discurso de posse de Ronald Reagan. Ao longo da apertada campanha eleitoral de 1980, o grande medo no campo republicano era que Carter produzisse a “surpresa de outubro”, ou seja, a liberação dos reféns que decidiria a eleição em seu favor. Abolhassan Bani Sadr, presidente do Irã quando se realizavam as negociações, depois revelaria que Reagan e sua equipe trabalharam para que a liberação dos reféns não se produzisse durante o mandato de Carter. O ex-presidente iraniano revelaria que enquanto o Irã negociava com Carter o descongelamento de alguns bilhões em reservas (congeladas pelos EUA como represália ao sequestro dos reféns), conversas secretas entre a Revolução Islâmica e a equipe de Reagan estabeleciam a data da soltura dos reféns, e Israel como intermediário encarregado do que interessava aos aiatolás: as entregas de armas, que aconteceriam em 1981 e 1982. Não seria a última vez que a administração Reagan se envolveria com o Irã no tráfico ilegal de armas. Em novembro de 1986, revelou-se que o esmagamento da Revolução centro-americana patrocinado pelos EUA incluía não só as explícitas sabotagens, queimas de plantações ou treinamento e financiamento das gangues de capangas ex-somozistas nicaraguenses que atendiam pelo apelido de “contras”. Além disso, um programa comandado pelo general Oliver North também desviava milhões da venda de armas ao Irã para o financiamento dos contras na América Central. De novo, o estado de Israel foi o instrumento da delinquência, envolvido que já estava na realização de um dos maiores genocídios da era moderna, o massacre de 250.000 guatemaltecos, preferencialmente maias, que teve início a partir do golpe da CIA contra o presidente Arbenz em 1954, a segunda das “operações da Guerra Fria” inauguradas justo no Irã no ano anterior. O fato de que os EUA e Israel estivessem envolvidos no tráfico secreto de armas à Revolução Islâmica não impediu que os americanos também fornecessem armas ao Iraque de Saddam Hussein, cuja guerra contra o Irã deixaria mais de 1 milhão de mortos dos dois lados. O jogo duplo com as potências ocidentais é, portanto, um velho conhecido dos iranianos. Não é de hoje que os persas aprenderam que, no Oriente Médio, só se negocia a partir de posição de força. Paradoxalmente, a própria invasão americana ao Iraque multiplicou o peso do Irã, cuja enorme maioria xiita passou a ser chave para o equilíbrio na região. O regime dos aiatolás também sabe que a incerteza ocidental acerca do enriquecimento de urânio no complexo nuclear de Natanz lhes serve como moeda de troca, além de lhes oferecer um dos poucos instrumentos capazes de colocar em crise o alinhamento automático dos EUA com o Estado sionista. Foi ninguém menos que o direitista governo Bush quem recusou dois pedidos dos israelenses, que queriam bombas GBU-28 (específicas para a destruição do subsolo) e autorização para sobrevoar o espaço aéreo iraquiano rumo a um bombardeio do complexo nuclear do Irã. Já na administração Obama, os EUA oscilam entre a política das ameaças, predileta da equipe pró-Israel do Departamento de Estado de Hillary Clinton, e o diálogo que, timidamente, Obama e figuras como o enviado ao Oriente Médio, George Mitchell, tentam implantar. O regime dos aiatolás também sabe que a existência de uma coalizão de ultra-direita em Israel favorece o bate-cabeça entre os americanos, já que nem os automaticamente sionistas Hillary Clinton e Joe Biden são capazes de justificar, sem pagar algum preço, uma política tão violenta de saqueio de terras, água e dignidade palestinas como a que realiza a coalizão de Netanyahu. Os choques entre a administração Obama e o governo israelense incluíram a humilhação (ou “insulto”, termo de Hillary) a que foi submetido o vice-presidente Joe Biden em Israel, obrigado a presenciar o anúncio de 1.600 novos assentamentos de colonização em áreas de Jerusalém que são legalmente palestinas. Incluíram a resposta de Obama, que saiu de uma reunião com Netanyahu na Casa Branca sem posar para fotos, despedindo-se com um lacônico “me avise se houver algo novo”, e “autorizando-o” a ficar só com assessores, num tratamento que um jornal israelense comparou “àquele reservado ao presidente da Guiné Equatorial”. Não há que se exagerar a importância das rusgas, e o encontro da Aipac (Comitê Americano-israelense de Assuntos Públicos dias depois, com a presença de Hillary, demonstra isso. Mas Lula está certo ao supor que o desencontro e a cisão momentânea entre EUA e Israel podem ser o novo elemento-chave no xadrez do Oriente Médio, muito mais, em todo caso, que qualquer tolice dita pelo presidente populista-islamista do Irã, que o jornalismo sionista amestrado das redações de Estadão, Globo e Folha gosta de apresentar como a grande ameaça de armagedom que paira sobre a humanidade. Até que ponto o regime dos aiatolás quer ter uma arma nuclear (de zero poder dissuasório, de qualquer forma, ante as 200 ogivas israelenses) ou continuar o jogo de gato-e-rato não é, a longo prazo, o dado decisivo. Mais importante é saber se haverá acumulação de força política capaz de desmontar o automático alinhamento americano com o sionismo mais bélico. Apoiar e ampliar a voz dos bravos e crescentes grupos judaicos anti-ocupação nos EUA é parte importante da aposta na paz. A quebra desse alinhamento pode tornar irrelevantes os rumos do regime de Teerã para efeitos da paz internacional. Esses rumos passariam a interessar, então, somente a quem de direito, em especial àqueles que lutam por liberdade, democracia e pela reconstrução de uma esquerda iraniana secular — força política, vale a pena lembrar, outrora esmagada pelo islamismo com apoio do mesmo bloco imperial sionista-gringo, que agora ensaia a cantilena de que seu ex-cliente islamista é a grande ameaça à paz mundial. Este artigo é parte integrante da Edição 85 da Revista Fórum