Israel: nova etapa no Terrorismo de Estado

Na mais longa ocupação colonial da era moderna (Palestina, 1967-), as coisas se mantêm iguais e sempre pioram. A aparente contradição não é difícil de se entender: as atrocidades acontecem seguindo uma mesma sintaxe, com passos que se repetem com macabra previsibilidade. O grau de violação das leis internacionais e a brutalidade, no entanto, vão se intensificando com o tempo. Quem acompanha o assunto, conhece as etapas de cor: 1. Israel massacra uma população civil – palestina ou não –, cometendo crime classicamente caracterizável como terrorismo de Estado; 2. O Conselho de Segurança da ONU propõe uma resolução condenando a agressão (conforme o caso: bombardeios, assassinatos ou, agora, pirataria seguida de execuções, encarceramentos ilegais e espancamentos); 3. Os Estados Unidos vetam a resolução no Conselho de Segurança da ONU, acrescentando (ou não) que é preciso “investigar a tragédia”, ressalva quase sempre acompanhada da observação de que “Israel tem o direito de se defender”; 4. Israel anuncia uma investigação, que invariavelmente não pune ninguém; 5. O assunto morre, a mídia o esquece, e algumas semanas ou meses depois o ciclo volta a se repetir.

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Na mais longa ocupação colonial da era moderna (Palestina, 1967-), as coisas se mantêm iguais e sempre pioram. A aparente contradição não é difícil de se entender: as atrocidades acontecem seguindo uma mesma sintaxe, com passos que se repetem com macabra previsibilidade. O grau de violação das leis internacionais e a brutalidade, no entanto, vão se intensificando com o tempo. Quem acompanha o assunto, conhece as etapas de cor: 1. Israel massacra uma população civil – palestina ou não –, cometendo crime classicamente caracterizável como terrorismo de Estado; 2. O Conselho de Segurança da ONU propõe uma resolução condenando a agressão (conforme o caso: bombardeios, assassinatos ou, agora, pirataria seguida de execuções, encarceramentos ilegais e espancamentos); 3. Os Estados Unidos vetam a resolução no Conselho de Segurança da ONU, acrescentando (ou não) que é preciso “investigar a tragédia”, ressalva quase sempre acompanhada da observação de que “Israel tem o direito de se defender”; 4. Israel anuncia uma investigação, que invariavelmente não pune ninguém; 5. O assunto morre, a mídia o esquece, e algumas semanas ou meses depois o ciclo volta a se repetir. A Europa assiste, presa à sua má consciência, enquanto os Estados Unidos, com uma política interna dominada pelo lobby pró-Israel, continuam financiando, apoiando e possibilitando o circo de horrores. Como a barbaridade e o descaso com as leis internacionais vão se intensificando, mas a validação dos EUA se mantém idêntica, o circo de horrores causado pelo banditismo de Israel não é bem um círculo. Trata-se, mais exatamente, de uma espiral: um desenho no qual a sequência – planejamento, execução e justificativa da atrocidade – se repete, mas em grau intensificado, produzindo um movimento do qual, hoje, não seria exagerado dizer que tende ao abismo, a uma catástrofe de grandes proporções. O bombardeio a Gaza entre 2008 e 2009, com mais de 1.300 mortos, e o recente ataque a barcos de ajuda humanitária que navegavam em águas internacionais, com 9 mortos e dezenas de feridos, representam mais um salto no banditismo e na violação das leis internacionais por parte de Israel. Não há dúvidas de que a totalidade dessas duas ações, do começo ao fim, se encaixam em qualquer definição razoável de terrorismo de Estado. Ambos foram ataques militares a populações civis, estrangeiras, situadas além das fronteiras legais do Estado em questão, com deliberado intento de matar. Ambos violaram tanto a legalidade internacional como a do próprio Estado responsável pelos atos de terror. Com o ataque à flotilha em 2010, chega-se a um grau inaudito de cinismo: um Estado que possui uma das forças militares mais poderosas do mundo ataca, via helicóptero, à noite, em águas internacionais, barcos com civis desarmados que levam víveres a uma população enjaulada entre o mar e uma potência ocupante que controla todas suas fronteiras e lhe mantém sob bloqueio. A pirataria da potência ocupante mata 9 civis, espanca outros tantos, apreende passaportes e ilegalmente encarcera centenas. Se isso não é terrorismo de Estado, que se retire o termo dos dicionários, pois ele já não serve para nada. Mas sendo Israel o perpetrador, não há lei que puna, e não faltam veículos de mídia, políticos ocidentais e, em especial, presidente e chanceler estadunidenses que se refiram ao estado terrorista como entidade que “tem o direito de se defender”. Algo mudou, sim, na indignação da comunidade internacional depois do massacre perpetrado contra os ativistas desarmados da flotilha. O Líbération falou em “Estado pirata”, o Parisien estampou “indignação geral”, o Guardian manchetou que “Israel é acusado de terrorismo de estado” e El País se referiu à “condenação mundial”. Mas não se espere que saia disso grande coisa. A indignação da comunidade internacional ainda não tem forças para desestabilizar o alicerce que sustenta a bandidagem: o controle férreo do lobby pró-Israel sobre a política externa estadunidense, inalterado até mesmo sob um presidente negro, de ascendência muçulmana e origem política no movimento em defesa dos direitos humanos para a população palestina. Já está claro que, quando o tema é Oriente Médio, Obama brinca de ser presidente enquanto Hillary Clinton e o lobby sionista comandam. O massacre contra a flotilha também teve algum ineditismo na rapidez com que ruiu a propaganda israelense. Inúmeros depoimentos já vieram à tona estabelecendo a verdade sobre o massacre. Jamal El-Shayyal, jornalista da Al Jazeera, relatou: “com certeza houve fogo vindo do ar, porque um dos mortos claramente levou um tiro vindo de cima. A bala o alvejou no topo da cabeça. Também havia fogo vindo do mar. A maioria, inicialmente, foi de gás lacrimogêneo e granadas sonoras. Mas depois abriram fogo de verdade. Não há dúvidas, baseado no que vi, de que dispararam munição real antes de que qualquer soldado israelense estivesse no convés. Havia uma parlamentar do Knesset que se aproximou dos soldados israelenses dizendo que tínhamos feridos, que por favor viessem e os levassem. Mas os israelenses se recusaram. Três horas depois, todos os três feridos terminaram morrendo no mesmo lugar, porque ninguém veio pegá-los”. Os outros depoimentos das vítimas corroboram e ampliam o relato do jornalista. Norman Paech, professor universitário aposentado, da Alemanha, afirmou: “Não nos preparamos de forma nenhuma para lutar. Nem consideramos isso, porque sabíamos muito bem que não teríamos absolutamente nenhuma chance contra soldados como esses”. Sarah Colborne, cidadã britânica, relatou que “as forças israelenses algemaram membros da equipe médica dos ativistas, enviada para tratar dos feridos. Foi terrorífico. Se você falasse, lhe apontavam uma arma”. Michalis Grigoropoulos, ativista grego, confirmou que os militares israelenses “já usavam gás lacrimogêneo e munição real quando aterrizaram no convés e usaram armas de eletrochoque em alguns ativistas” e que “dois gregos foram espancados sob custódia israelense”. A parlamentar alemã Annette Groth acrescentou que “os israelenses confiscaram câmeras, computadores e celulares” e Fiachra O‘Luain, cidadão irlandês e estadunidense, testemunhou que no aeroporto de Ben Gurion, sob custódia israelense, foi espancado com socos e pontapés, ao ponto de temer por sua vida. O‘Luain também presenciou uma vítima ser executada a queima-roupa em um dos barcos. O romancista sueco Henning Mankell, respeitado em seu país, relata uma história fartamente conhecida por quem estuda a história do terrorismo de estado israelense: a tentativa de fabricação do argumento de que as vítimas estavam armadas: “os soldados checaram o barco e um deles voltou dizendo que tinha encontrado armas ... Ele me mostrou minha navalha, uma navalha de barbear, e um cortador de caixas que encontrou na cozinha. Todos os meus pertences foram levados. Roubaram minha câmera, meu telefone, até minhas meias.” O engenheiro estadunidense Gene St. Onge também presenciou um espancamento: “um de meus novos amigos – fiz muitos nesta viagem --, Mehdi, um árabe líbio que mora na Europa, foi golpeado com o cabo de um rifle no olho direito. Ele caiu no convés. Ele se contorcia de dor, tentando escapar, mas era continuamente chutado”.1 A parlamentar do Knesset à qual algumas das vítimas fazem alusão é a árabe Haneen Zoabi, que passa por um calvário desde que decidiu se juntar aos ativistas solidários a Gaza. Embora Zoabi não tenha violado nenhuma lei israelense ao embarcar no navio turco, um ministro de Estado, Eli Yishai, já submeteu um pedido de que a cidadania de Zoabi seja revogada, o que seria algo absolutamente sem precendentes. Jonathan Cook, escritor e jornalista que trabalha em Nazaré, relata que Zoubi, durante seu discurso ao legislativo, exigiu uma explicação: por que Israel não havia publicado as fotografias e vídeos confiscados dos passageiros e relacionados aos 9 mortos e dezenas de feridos? Zoabi foi silenciada aos gritos de “terrorista” e “traidora”, e só uma intervenção dos guardas impediu que ela fosse fisicamente atacada no parlamento. Ela já recebeu ameaças de morte e uma página do Facebook em hebraico clama por sua execução. Um comitê do Knesset aprovou a revogação de seus privilégios parlamentares por sete votos a um, enquanto dois outros parlamentares da minoria árabe já testemunhavam também terem recebido ameaças de morte. A depender da coalizão de ultra-direita que a governa, a “única democracia do Oriente Médio” caminha para inventar outra incrível jabuticaba: a revogação da cidadania de um deputado e sua conversão em ser apátrida, sob a acusação de ... estar num barco internacional carregado de comida e remédios destinados a Gaza. Logo que os sobreviventes puderam voltar aos seus países de origem, depois de 72 horas de encarceramento ilegal, não demorou a desabar a inacreditável alegação de que se tratava de “autodefesa” contra um suposto “linchamento” que os civis do barco teriam imposto aos treinadíssimos e bem armados soldados israelenses. O próprio exército israelense admitira depois, em comunicado oficial, que manipulou as fitas de áudio de seu intercâmbio com a flotilha para caracterizar os passageiros da flotilha como antissemitas. Com poucas exceções – a excelente cobertura do Guardian e, em primeiro lugar, as corajosas e iluminadoras páginas de Robert Fisk no Independent –, a mídia ocidental tem sido criminosamente cúmplice das distorções que legitimam a espiral da máquina de guerra. A escolha das palavras costuma ser um festival de cinismo. O New York Times usou o verbo “to halt” (parar, interceptar, deter) para caracterizar o ataque israelense à flotilha. No Brasil, a vergonhosa Folha de São Paulo empresta suas páginas para que ideólogos do terrorismo de estado – brasileiros ou importados de Portugal – desfilem seus sofismas, cada vez mais incapazes de justificar o injustificável. Depois de amargar o aparecimento de documentos que comprovaram sua oferta de armas nucleares ao regime do apartheid sulafricano, impedir a entrada do mais prestigioso linguista do mundo, Noam Chomsky, a uma palestra na Cisjordânia ocupada, e falsificar passaportes britânicos para assassinar um palestino em solo estrangeiro, Israel atinge um novo estágio de banditismo tolerado pela “comunidade internacional” sem qualquer punição: a pirataria e o massacre de civis desarmados em águas internacionais. Como sempre é o caso quando se trata da delinquência de Israel, a emergência da verdade, a confirmação de que houve crime e a indignação internacional não serão suficientes para garantir que cesse a impunidade. Enquanto os economicamente cambaleantes, mas ainda militarmente superpotentes, EUA oferecerem financiamento e retaguarda, o mundo continuará assistindo impotente a este triste espetáculo: um poder nuclear que mantém e expande há 43 anos uma ocupação ilegal, desrespeita uma coleção de leis internacionais e resoluções da ONU e confirma que sua opção pelo terrorismo de Estado é sem volta. Resta saber se haverá acumulação de força política, dentro e fora dos EUA, dentro e fora de Israel, dentro e fora da Palestina ocupada, para reverter essa bomba-relógio. 1,4 bilhão de muçulmanos aguardam, cada vez mais impacientes e ressentidos.