Já vai tarde

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Foto: Wilson Dias/ABr



O iraquiano Muntadhar al-Zaidi foi criado em Sadr, um subúrbio pobre da capital do país, Bagdá. Durante seus 28 anos de vida, conviveu com o governo autoritário de Saddam Hussein, sofreu as agruras da Guerra do Golfo, comandada por Bush “Pai”, e, em novembro de 2007, foi sequestrado enquanto ia para o trabalho. Espancado até desmaiar, permaneceu em cativeiro durante três dias, quando foi inquirido seguidas vezes por conta das reportagens que fazia para a rede de TV al-Baghdadia, com sede no Egito. Em suas matérias, falava sobre as vítimas pobres da guerra movida pelo invasor estadunidense. Segundo o jornal inglês The Guardian, “não apenas acompanhou os rastros de destruição deixados pelos helicópteros Apache dos EUA, como também estava entre os primeiros a reportar cada atrocidade e as explosões por bombas em mercados populares”. Além do sequestro não esclarecido, al-Zaidi sofreria ainda mais duas agressões no ano seguinte, 2008, sendo preso por soldados estadunidenses que realizavam uma busca em seu apartamento.
Nenhuma violência sofrida ou retratada pelo jornalista o faria tão famoso quanto sua atitude de arremessar seus dois sapatos em direção ao presidente dos EUA George W. Bush, durante uma conferência de imprensa no palácio do primeiro-ministro Nouri al-Maliki, em 14 de dezembro de 2008. Ele provavelmente imaginava a repercussão que o incidente teria em todo o mundo. Não apenas pelo fato jornalístico em si, mas também pela série de simbolismos que o gesto trouxe à tona, dentre os quais a reação de um povo humilhado que vive sob custódia de um país que lhe prometeu democracia, mas efetivamente lhe entregou uma série de mortos e um clima de guerra constante.
A invasão do Iraque talvez tenha sido o maior ato criminoso de George W. Bush durante seu governo. A motivação era mentirosa; os interesses reais, pouco claros; a mídia dos EUA foi complacente, assim como seus multiplicadores em boa parte do mundo; e as perdas de vidas e violações de direitos humanos foram inúmeras. No entanto, essas estiveram longe de ser as únicas violências ou erros de uma figura – e um grupo – que deixará uma das piores heranças da história recente dos Estados Unidos e, por que não, do planeta.
“O Iraque foi o maior problema da presidência de Bush. Mesmo se o país se tornar uma democracia (o que é pouco provável), ele precisará gastar bilhões de dólares, vidas de soldados norteamericanos e matar outras centenas de milhares de iraquianos numa guerra perdida. A pior das hipóteses, o que é mais provável de acontecer, é que a guerra civil mate mais uma centena de milhares de pessoas”, observa o historiador Ivan Eland, do The Independent Institute, centro de estudos com sede em Washington. Embora tenha sido realizada com a desculpa de que o regime iraquiano apoiava organizações terroristas e detinha armas de destruição em massa (o que se provou totalmente falso), é mais crível que o atentado contra as Torres Gêmeas tenha apenas precipitado algo já pensado anteriormente. “O secretário de tesouro Paul O’Neill afirmou que a administração Bush já planejava retirar Saddam Hussein do poder mesmo antes de acontecer o 11 de Setembro. Isso me parece muito plausível, já que a tragédia foi usada apenas como uma justificativa para invadir um país que não estava relacionado ao ataque, no caso, o Iraque”, completa.
Flávio Rocha, coordenador de pós-graduação em Relações Internacionais da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, corrobora a visão de Eland de que a intenção de derrubar o governo do Iraque existia desde antes do 11 de Setembro, mas a forma de executar foi equivocada. “Existem ene maneiras de remover alguém do poder e os norteamericanos são craques nisso. Você pode auxiliar a oposição do Iraque ou, se o governo tivesse essa paciência, poderia ter removido com um golpe palaciano”, analisa. No entanto, mesmo sendo um erro estratégico, havia motivações nada nobres para que a invasão acontecesse.
Na obra A Política Externa dos EUA: Continuidade ou Mudança, a pesquisadora Cristina Soreanu Pecequilo lembra que todos os governos estadunidenses lançam doutrinas de segurança, mas a de Bush sem dúvida chamou mais a atenção. “Por que todo mundo prestou mais atenção nessa? 11 de Setembro e o comportamento da política americana”, pontua. “Erro comum: atribuir ao 11 de Setembro a doutrina Bush. Não. 11 de Setembro, muito mencionado ao longo da doutrina, não foi motivo único, as motivações vêm desde a era Reagan, desde os falcões de Reagan, império do mal, eixo do mal. Então, o que temos aqui é que 11 de Setembro, obviamente, acelerou o processo porque houve uma nova percepção na América, uma percepção inédita, que é a da vulnerabilidade. Então a maior potência do mundo, a hegemônica, se viu vulnerável, se viu atacada por quatro aviões, inédito isso. O que, realmente, serviu como válvula de escape para aquela estratégia”, explica.
Também existiam outras razões, menos nobres do que a ação preventiva pregada pela doutrina de segurança de Bush, para atacar e ocupar o território iraquiano. “Os Estados Unidos queriam invadir o Iraque por uma série de razões: dar uma resposta ao 11 de Setembro e mandar um recado para a comunidade internacional de que o que eles falavam era sério. A terceira razão é o fato de que o Iraque é um alvo de ocasião, ou seja, é um país que sofreu uma dura derrota em 1991, sofrendo um embargo que enfraqueceu a infraestrutura econômica e social, sem perspectiva de resistir à ofensiva norteamericana e sem grandes possibilidades de se defender. E uma quarta razão: implementar essa política de mudança de regime instalando naquela região complicada um governo pró-EUA, que se alinhasse e ao mesmo tempo constrangesse o inimigo, no caso, o Irã.”
Para Flávio Rocha, o petróleo sempre teve um viés secundário. “Entrou-se no Iraque para mudar o regime e o combustível era um prêmio final. Até hoje o custo da exportação do petróleo iraquiano não pagou a ocupação. Os americanos gastam mais ocupando do que tirando petróleo de lá. A lógica não é tão simples. E como as coisas não saíram como o planejado e a resistência iraquiana surpreende, eles não conseguiram estabilizar o país.”

A balança pende para o lado dos falcões
Com a implantação de sua doutrina de segurança, Bush deu uma guinada na política externa estadunidense, o soft power exercido pelo seu antecessor Bill Clinton, e permitiu que um grupo adepto do unilateralismo – os “falcões”, representados no governo por figuras como Donald Rumsfeld, Dick Cheney e Condoleezza Rice – superasse as “pombas”, os defensores do multilateralismo. “No fundo, talvez, isso possa levar a um desmerecimento das tradições anteriores, porque o domínio americano sempre foi baseado no convencimento e na força, não só na força, e para convencer você precisa de um trabalho bastante elaborado que às vezes não é feito hoje”, aponta Pecequilo em seu livro.
Em entrevista a Simone Bruno, o linguista Noam Chomsky também ressaltou a supremacia da direita e de seus valores na administração Bush. “É importante lembrar que o espectro político nos EUA é bastante estreito. É uma sociedade controlada pelas empresas, basicamente, é um Estado de partido único, com duas facções, democratas e republicanos. As facções têm algumas diferenças e estas, às vezes, são significativas”, analisa. “A administração Bush, porém, situava-se bastante além do final do espectro, com nacionalistas radicais extremos, crentes extremos no poder do Estado, na violência no exterior e num alto gasto governamental. De fato, estavam tão fora do espectro que foram criticados duramente inclusive por parte do poder, desde os primeiros tempos.”
O desequilíbrio ideológico em prol da direita dentro da administração estadunidense não se refletiu somente na política externa, mas deixou sua marca negativa na economia. Bush entrará para a História como um dos responsáveis pela eclosão de uma das piores crises econômicas já vividas pelos EUA, e medidas promovidas nos seus oito anos de dinastia contribuíram decisivamente para que ela se precipitasse, embora a situação estivesse sendo gestada há algum tempo.
“A desregulamentação começou no governo Reagan, que realmente inicia o processo de redução da presença do Estado na economia. Continua no governo Bush “Pai” e Clinton não mexe – já que percebe que, por conta redução do déficit, a economia norteamericana cresce um Brasil por ano”, explica Flávio Rocha. “A crise econômica tem a ver com as escolhas que os EUA fizeram. Os governos republicanos aprofundam o corte de impostos, que não beneficiam os ricos, os pobres ou a classe média, mas contribuem sim para que o mercado tenha mais dinheiro”, completa.
Para Alexander Keyssar, professor da Universidade de Harvard, “Bush e o Federal Reserve serão vistos como os grandes responsáveis pela crise por terem deixado acontecer a bolha imobiliária – que vinha se desenrolando por muito tempo, assim como deliberaram enormes cortes de impostos, aumentaram dívidas governamentais e deixaram a balança de pagamentos deficitária”. Quem também destaca a questão tributária na análise da responsabilidade do atual governo pela crise é o historiador Ivan Eland. “Bush manteve os impostos baixos para que as pessoas pudessem comprar mais imóveis. Nos Estados Unidos, você ainda pode conseguir abatimentos em seus impostos, caso queira comprar uma casa, e isso foi outro fator que inflou os pedidos de hipoteca”, comenta.
Independentemente do grau de responsabilidade que se atribua a Bush pela geração da crise, o fato é que há quase uma unanimidade entre economistas e pesquisadores de áreas correlatas que pouco ou quase nada foi feito para que ela não eclodisse. “Bush conduziu internamente a economia de maneira inercial, ignorando os fatores que poderiam levar a uma recessão que afetasse o sistema bancário e imobiliário. E o seu governo não tomou as medidas preventivas em relação aos já sabidos problemas de alguns setores econômicos”, analisa o professor do Instituto de Relações Internacionais da USP Rafael Villa.
Os efeitos que a crise gerou para a população estadunidense sem dúvida foram mais determinantes para a eleição de Barack Obama do que os erros da política externa, a violação de direitos humanos ou a falta de apoio às vítimas do furacão Katrina, episódios que marcaram o governo Bush. E fatalmente irão perdurar por algum tempo, já que desestruturaram socialmente os norteamericanos.
“Certamente que hoje, em grande cidades como Nova Iorque, São Francisco e Chicago, tem-se um aumento da pobreza muito grande e isso reflete as falhas imensas em termos de política interna”, destaca Villa. Flávio Rocha também indica a incerteza vivida pelos norteamericanos em relação à aposentadoria, já que muitos fundos de pensão foram afetados pela crise. “É importante lembrar que para a aposentadoria, por exemplo, a população aposta fortemente nos fundos de pensão e esses fundos estão amarrados ao setor financeiro. Ou seja, qualquer problema no setor financeiro empata o fundo de pensão, onde está a maioria do dinheiro do norteamericano. Muita gente perdeu o fundo de pensão, sumiu, evaporou. Então, o que Obama terá que fazer é impedir que isso contamine a poupança dos que vão se aposentar lá na frente.” Mais do que projetar o futuro, Obama terá que se esforçar para apagar os rastros de Bush. Sem dúvida, uma tarefa inglória.

Foto: Marcello Casal Jr./ABrFoto: Marcello Casal Jr./ABr

Bush, quase o pior
Em seu novo livro Recarving Rushmore, o historiador Ivan Eland enumera os presidentes dos EUA de acordo com uma avaliação de cada administração. Ele coloca Bush na 36ª posição entre 40 presidentes listados (alguns não foram enumerados por seu curto tempo de governo). “Coloquei Bush como o número 36 por minar a república norteamericana, já que destruiu as liberdades civis, começando guerras desnecessárias, atos que custaram muito dinheiro e vidas, tanto americanas como iraquianas”, conta.
De acordo com Eland, Bush tornou os Estados Unidos um lugar menos seguro, visto que ele não neutralizou Osama bin Laden, aumentando a possibilidade de ataques terroristas, e ajudou a causar a crise econômica. Além disso, teve uma terrível reação após a destruição causada pelo furacão Katrina. “Os quatro presidentes listados abaixo de Bush também causaram guerras desnecessárias, mas a diferença é que causaram consequências piores do que o fiasco de Bush no Iraque e no Afeganistão”, aponta Eland.

Veja quem tem a ficha pior do que Bush: 37 – James Polk – provocou o conflito com o México para anexar terras do país vizinho. 38 – William McKinley – deu início à primeira guerra imperial da história dos EUA e criou o precedente de intervencionismo dos séculos XX e XXI.
39 – Harry Truman – ajudou a começar a Guerra Fria usando uma política agressiva para conter a União Soviética. O complexo industrial-militar se preparou para futuras intervenções além-mar com um incremento do orçamento de Defesa do país. Começou a elaborar o informal império dos EUA com uma política externa intervencionista e criou o aparato de segurança do Estado, tentando usurpar poderes de outros órgãos governamentais.
40 – Woodrow Wilson – ao invés de tentar evitar uma guerra europeia, como a maioria dos seus antecessores fez, ajudou a balança a pender para o lado dos aliados, dando um severo tratamento à Alemanha e obrigando o Kaiser a abdicar do poder. Isso criaria as condições para a ascensão de Adolf Hitler e a eclosão da Segunda Guerra Mundial.