Com legislação para indústria, agricultor familiar de SC precisou ir preso para ser ouvido

Propriedade de pequeno produtor, detido no interior catarinense, é a única do município livre de tuberculose e brucelose. Mas então, o que teria motivado sua prisão?

Foto: agricultor Luis Petrycowski (arquivo pessoal)
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Por FETRAF-SC *

“Do ponto de vista legal, não havia motivos para que o agricultor fosse preso e a sua mercadoria descartada”. A palavra do advogado, Ricardo Pellegrinello, levanta uma nova perspectiva sobre a atuação do poder público com a Agricultura Familiar e questiona o verdadeiro motivo da prisão de Luis Petrycowski, que chegou a ser algemado e levado à delegacia durante uma feira em Caçador (SC).

Se a prisão do agricultor, no entendimento do jurista, não se justifica, o que teria motivado essa ação repressiva do estado contra um trabalhador do campo? Essa questão é regularmente levantada pela Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar de Santa Catarina (FETRAF-SC).

Segundo a entidade, a prisão do agricultor familiar trouxe à tona uma série de entraves e injustiças por que passam os trabalhadores do campo, historicamente penalizados não apenas pelas exigências legais, desproporcionais com a produção familiar, mas também com o preconceito e a lógica de repressão dos poderes constituídos sobre a Agricultura Familiar.

Para entender como a história de Luis teve esse desfecho extremo, é preciso olhar com mais cuidado para produção de queijo artesanal, que acontece a todo o vapor em pequenas propriedades rurais Brasil afora.


Um pouco de tudo

Diferente da prática das grandes agroindústrias, na Agricultura Familiar a produção é diversificada e todo o processo é conduzido pelo núcleo familiar, com foco na geração de renda para a família e na produção de alimentos para a população.

Em uma pequena propriedade de 22.9 hectares na Linha Caixa D’água, zona rural de Caçador (SC), Luis e a esposa, Juceli, criam vacas de leite, outras de corte, alguns suínos para o adubo, além da produção de cereais para dar suporte na alimentação dos animais. Tudo em pequenas proporções.

Figura conhecida na região pelo posicionamento forte e seu bigode de duas cores, o agricultor conta que a família sempre trabalhou na produção de leite, mas percebendo a dificuldade em garantir o sustento, decidiu mudar o foco. “Como sempre vendemos queijo muito bem, aumentamos a produção até que paramos de vender leite e, em 2015, começamos a vender queijo na feira”, explica o agricultor.

Rapidamente, Luis viu a procura por seus produtos disparar e não demorou para que a Vigilância Sanitária exigisse as adequações para garantir a sanidade dos alimentos. Em 2017, inicia a jornada do agricultor em busca de reconhecimento legal e regularização da propriedade.

Jornada de heróis

Até 2019, a produção de queijo com leite cru não era permitida na maior parte do estado, em função do risco de contaminação por brucelose e tuberculose.

Em 2017, portanto, Luis foi orientado a construir uma estrutura elaborada, para que pudesse pasteurizar o leite e atender às exigências legais. “Me deram um elefante branco, uma planta pra fazer uma fábrica de queijo, como uma indústria”, disse.

Para se adequar à norma, o agricultor viu o seu vizinho investindo R$ 110 mil na propriedade. Percebendo que não conseguiria levantar esse volume de recursos para atender às exigências legais, sem opção, a família seguiu investindo com mais modéstia e, no decorrer dos anos, desembolsou mais de R$ 20 mil para construir o que Luis chama de fabriqueta, cujo advogado, Ricardo Pellegrinello, conheceu de perto. “Ele montou uma queijaria na casa dele, climatizada, azulejada, portas de vidro com tela nas janelas. Tudo nos conformes”, explicou o defensor.

Com o decreto 362/19, Santa Catarina passou a permitir a produção de queijo com leite cru, desde que a propriedade apresente a certificação que comprove a sanidade dos animais, da água e do leite.

Em junho de 2020, mais uma vez a família de Luis entendeu a importância da regulamentação e foi em busca dessa certificação, providenciando a contratação de um profissional de Veterinária para realizar os testes sanitários exigidos pela Cidasc (Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina).

Desta vez, Luis investiu cerca de R$ 1 mil para testar sua propriedade e garantir que o seu produto chegasse à mesa da comunidade com qualidade e segurança. Todos os 28 animais foram testados duas vezes por um profissional autorizado pela Cidasc, e todo o custo dessa certificação foi bancado pela família.

Após os testes, o agricultor foi informado que sua propriedade estava livre de brucelose e tuberculose, faltando apenas a chegada do documento físico. Luis alega que a Vigilância Sanitária acompanhou o processo e que sabia da procedência dos seus produtos, mas optou deliberadamente por descartar os alimentos.

Se os produtos da família de Luis eram comprovadamente livres de tuberculose e brucelose, qual a necessidade do descarte? A insistência nessa resposta foi o que levou o agricultor familiar a debater com a Vigilância Sanitária, por cerca de duas horas, antes de ser preso por desacato à autoridade e de ter suas 75 peças de queijo descartadas no aterro municipal.

“Foi chegando polícia e viatura. Eu bati o pé, disse que não ia entregar. Me prenderam, me algemaram, me botaram no camburão e me levaram pra delegacia”, lembra.    

Foto: Luis Petrycowski é preso pela PM em feira de Caçador (SC)

Situação recorrente

Na avaliação do advogado, entraves como esse acontecem constantemente em milhares de propriedades catarinenses e brasileiras, embora não ganhem os holofotes, já que a maioria dos agricultores, alvos dessas operações, entregam suas mercadorias sem resistência. “O Luis poderia ter optado em ter ficado quieto, mas ele escolheu contestar, foi o único jeito de ser ouvido”, falou Pellegrinello.

Para a FETRAF-SC, essas ações de repressão são frutos do endurecimento da Lei, feita para as grandes indústrias que não contemplam a Agricultura Familiar. “Defendemos que haja regulamentação e fiscalização sobre essas produções, o problema é que Agricultura Familiar não é indústria e não há como usar o mesmo parâmetro de exigências”, avalia o coordenador geral da Federação, Jandir Selzler.

Segundo ele, os fiscais já entram nas propriedades com o olhar enviesado, acostumados a penalizar o pequeno agricultor. “Em vez de auxiliar essas famílias orientando sobre a melhor maneira de adaptar a propriedade, o poder público usa uma lei desigual e injusta para agir como instrumento de repressão, dificultando ainda mais a vida no campo e desestimulando a permanência dessas famílias nas áreas rurais”, protesta Selzler.

Perseguição ou fidelidade à lei?

Na sexta (18), Luis finalmente recebeu a certificação em sua casa e pode exibir com orgulho o documento comprovando a boa procedência dos seus queijos. Mesmo sabendo da sanidade dos produtos, a prefeitura optou por descartar os alimentos. Pellegrinello tenta responder o porquê.

“A propriedade do Luis é a única do município livre de tuberculose e brucelose, mas ele teve alguns atritos com a fiscal que esteve em sua propriedade”, conta o advogado, explicando que a Vigilância Sanitária é responsável pelo aval para comercializar os produtos, e que essa autorização depende, entre outras coisas, da certificação de sanidade expedida pela Cidasc.

Supostamente, a propriedade de Luis não atendeu todos os requisitos de estrutura exigidos pela fiscal e por isso não recebeu autorização para comercializar na Feira do Produtor Rural de Caçador.

Para produzir leite cru, a lei prevê que a pocilga deve estar a pelo menos 50 metros da queijaria. “O que aconteceu foi uma falta de bom senso, porque o chiqueiro da propriedade, com dois ou três porcos, fica próximo à ordenha e não da queijaria, e ainda com um desnível muito grande entre os dois locais”, justifica o defensor da família, afirmando que, durante audiência pública para discutir o caso, um funcionário da prefeitura chegou a alegar “contaminação por odor”.

Luis conta que, durante a visita da fiscal, contestou a recomendação de remover o chiqueiro, porém, desde a sua visita, em 2020, não havia recebido nenhuma devolutiva por parte do poder público municipal a respeito da fiscalização, e não fazia ideia de que seria barrado na feira e ter seus produtos descartados.

“Continuo vendendo, porque as vacas não param de dar leite e porque é meu ganha-pão. Ontem eu fui, mas me encostei em um pátio e vendi de cima da caminhonete”, conta Luis que, fora jurisdição da prefeitura, consegue vender o seu produto sem ser incomodado. O advogado completa, explicando que “a vigilância só pega quando é em comércio, na rua só a Cidasc pode pegar, e ela não vai fazer isso porque sabe que o queijo do Luis tem certificação”.

Reinvindicação antiga

Em maio, representantes da Agricultura Familiar e Camponesa entregaram ao governador de Santa Catarina, Carlos Moisés, uma pauta de reivindicações para auxiliar na construção de políticas públicas pensadas para os trabalhadores do campo.

Entre as reivindicações, a FETRAF-SC destaca o pedido de alteração da Lei Agrícola de Santa Catarina, criada em 1993, para que as entidades do campo, junto com a Federação, sejam incluídas no Conselho de Desenvolvimento Rural do Estado (Cederural).

Com essa alteração na Lei, a Agricultura Familiar poderia participar das regulamentações, ajudando a construir leis mais justas, que atendam todas as subjetividades da agricultura no Estado.

A prisão de Luis não foi em vão. Após a repercussão do caso e a pressão das entidades da Agricultura Familiar, Luis conta que o governador, Carlos Moisés, entrou em contato com uma promessa: criar um laboratório na Cidasc, que será responsável pelas certificações sem qualquer custo ao Agricultor Familiar.

Para a FETRAF-SC, o momento é de fiscalizar e cobrar. “Vamos seguir lutando para que o poder público adote políticas que incentivem os agricultores, para que e eles permaneçam no espaço rural, agregando valor e comercializando seus produtos”, prometeu a entidade.

*Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar de Santa Catarina.