Lembranças latino-americanas

Durante séculos o Brasil esteve de costas para os ?hermanos?, vivendo voltado para a Europa, invejando a cultura do Velho Continente, mandando os filhos de endinheirados para lá. A Inglaterra era nossa matriz econômica e a França, a matriz cultural. No meio disso, houve os admiradores do nazismo e do fascismo.

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Durante séculos o Brasil esteve de costas para os ?hermanos?, vivendo voltado para a Europa, invejando a cultura do Velho Continente, mandando os filhos de endinheirados para lá. A Inglaterra era nossa matriz econômica e a França, a matriz cultural. No meio disso, houve os admiradores do nazismo e do fascismo.

Por Mouzar Benedito

O Brasil é um país latino-americano!

Que modo óbvio de começar uma crônica, não? Pois é, mas faz muito pouco tempo que os brasileiros “engolem” isso. Muitos não apenas engolem o fato de sermos latino-americanos. Gostam disso. Mas, repito, faz pouco tempo.

Durante séculos o Brasil esteve de costas para os “hermanos”, vivendo voltado para a Europa, invejando a cultura do Velho Continente, mandando os filhos de endinheirados para lá. A Inglaterra era nossa matriz econômica e a França, a matriz cultural. No meio disso, houve os admiradores do nazismo e do fascismo.

Depois, nos tornamos quintal dos gringos, assim como o resto da América Latina. Mas sempre querendo ser um quintal diferente dos outros, embora tão ou mais submissos que os “hermanos”, a ponto de Juraci Magalhães, ministro da ditadura de 64, ter declarado orgulhosamente: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

A partir de 1968, entre as muitas mudanças ocorridas no mundo e no Brasil, podemos incluir a vontade de aproximação de parte dos brasileiros com o restante do continente. Mas continuamos sendo uma minoria muito pequena, vista como retrógrados e malucos que, em vez de cultuar povos ricos e procurar nos igualar àquela gente fina, ficavam querendo nos igualar a índios e negros (e queríamos mesmo). Nossa elite achava que tinha que mostrar sua origem europeia, seus vernizes europeus, ou então “americanos”, como se só os gringos fossem americanos.

Quem procurava aprender a língua espanhola, da grande maioria da América Latina, era até mal visto. Língua de gente fina era o francês – estudado no ginásio até a década de 1950 – e depois o inglês. Por que esses hippies, barbudos, mulheres de saia maria-mijona e alternativos em geral ficam querendo aprender espanhol, língua de povos pobres e “atrasados”? Coisa de comunista! Subversivos.

Foi nesse contexto que criamos o jornal Versus, que tinha a ousadia de ser “latino-americanista” e depois abriu espaço para o movimento negro, tornou-se também “africanista”. Foi um jornal bonito, muito bonito, criado no fim de 1975, e chegava até a incomodar um certo tipo de esquerda tradicional, que via nele uma preocupação estética muito grande, como se isso prejudicasse nossa posição política. Além disso, era um jornal de cultura. Uma cultura continental que não era bem vista pelas elites. Mas tínhamos uma equipe de colaboradores...! Vejam só: os uruguaios Galeano e Benedetti, o argentino Cortázar, o colombiano García Marques, o guatemalteco Miguel Angel Astúrias e o chileno Ariel Dorffman, além de outros ocasionais.

A sede do Versus, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, às vezes parecia um consulado de vários países da América Latina. Muitos “hermanos” faziam questão de nos visitar quando vinham para cá. Outros vinham procurar ajuda, pois estavam fugindo de ditaduras em seus países. Nós também vivíamos numa ditadura aqui, mas fazíamos o que podíamos.

Numa dessas, apareceu lá um argentino falando nervoso, que estava ameaçado de morte em seu país. Precisava ficar uns dias na casa de alguém em São Paulo e conseguir dinheiro para se mandar para a Europa. Realmente, a Argentina vivia uma ditadura muito violenta, iniciada em 1976, que tinha o apoio de uma espécie de CCC (Comando de Caça aos Comunistas) de lá, a “Triple A” (AAA – Aliança Anticomunista Argentina), que ajudava os militares a prender, torturar e matar oposicionistas, especialmente montoneros que tinham uma guerrilha de esquerda.

O argentino falava muito enrolado, confuso. Queríamos ajudar, mas precisávamos ter certeza de que ele estava falando a verdade. Por coincidência, estava conosco naquele dia um argentino, sobrinho de Julio Cortázar. Pusemos os dois para conversar numa sala e dali a pouco nosso amigo Cortázar sobrinho saiu rindo:

– Ele está mesmo sendo ameaçado de morte. Só que não pela “Triple A”, mas pelos montoneros... Ele é militante de direita, participou de ataques à esquerda, é acusado de crimes...

Pela primeira vez não demos abrigo a um “hermano”.

Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum 84. Nas bancas.