Letramento racial: o caso Fernanda Lima e as babás negras

O problema é usar um exemplo que supostamente respeita a alteridade de outrem para destacar o quanto uma patroa branca é boazinha, velho artifício colonial-português de instituir uma “escravidão branda”. É reiterar o lugar de poder da herdeira da casa grande e o lugar de subalternidade e aquiescência daquelas que tiveram suas antepassadas escravizadas

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O problema é usar um exemplo que supostamente respeita a alteridade de outrem para destacar o quanto uma patroa branca é boazinha, velho artifício colonial-português de instituir uma “escravidão branda”. É reiterar o lugar de poder da herdeira da casa grande e o lugar de subalternidade e aquiescência daquelas que tiveram suas antepassadas escravizadas Por Cidinha da Silva* A preguiça sempre foi um pecado abominável para pessoas que trabalham muito, mas, devo admitir que o caso Fernanda Lima e suas declarações sobre as babás negras, sua pose ao lado de segurança negro, o tititi e o chororô da casa grande e seus herdeiros me causam preguiça. Sinto-me uma marmota escorregando num pé de árvore, mais lenta do que uma jiboia de barriga cheia. Saca aquela preguiça até de abrir os olhos para ler o catatau de mediocridade emanado do caso, de escorregar a mão pelo mouse para abrir um arquivo? Assim me sinto, tomada pelo bicho capital da preguiça.
Ângela Dias e Tayane Dias (superei a preguiça e movi o mouse para pesquisar o nome das profissionais), as babás em questão, são duas jovens negras simpáticas e bonitas, aparentemente plenas da energia exigida para cuidar de crianças pequenas em movimento. Devem ser habilitadas para o trabalho, pois, quem pode pagar, escolhe a dedo os profissionais dos quais se cerca, principalmente para cuidar de seres tão preciosos como os filhos, mesmo que Fernanda afirme que elas não trabalhavam e que ela lhes ensinou o serviço (mirem o favor que lhes fez). Ora, se elas são tudo isso, qual seria o problema de Fernanda Lima colocá-las em exposição, vestidas de maneira descolada, como provavelmente se sentem à vontade, e afirmar que empregada dela não é obrigada a vestir uniforme branco? O problema é utilizar um exemplo que supostamente respeita a alteridade de outrem para destacar o quanto uma patroa branca é boazinha, velho artifício colonial-português de instituir uma “escravidão branda”. É reiterar o lugar de poder da herdeira da casa grande e o lugar de subalternidade e aquiescência daquelas que tiveram suas antepassadas escravizadas. As atitudes das pessoas não são desassociadas do tempo e do espaço. Inda outro dia, houve rumores de que Fernanda substituiu uma colega de trabalho negra, numa escolha racista para protagonizar sorteio de chave de jogos da FIFA na Copa 2014. Fernanda Lima desconsiderou completamente a possibilidade de, mesmo aceitando o trabalho, problematizar a existência do racismo e suas práticas, ainda que de maneira indireta. Ao contrário, tudo o que se ouviu da modelo e apresentadora foi a indagação jocosa: só por que eu sou branquinha? Os negros estão malucos, dirão alguns de seus amigos. Eles, influenciados pela vitória do Obama, não sabem mais o que querem (o lugar deles) e acham que podem tudo. Vejam vocês: se mostramos que temos serviçais negros e os tratamos direitinho, eles não gostam. Ok. Quando mostramos que temos amigos negros que comem à mesa conosco e brincam com nossos filhos, também não gostam. O que querem, afinal? Se gente como a gente tem amigos negros é porque são do nosso nível, gente que nasceu sem pedigree, mas lutou e com muito esforço subiu os degraus sociais até onde estamos. Esse pessoal tá perdido, não sabe desfrutar os brindes de serem negros de classe média negra. Dizem que os homens estão perplexos frente à nova mulher, não sabem como se comportar, como ser másculo e não ser machista, como ser docemente viril sem oprimir. Tá difícil o negócio para eles e penso que para os brancos frente aos negros também. É muita complexidade negra para quem estava acostumado a mandar e ser obedecido, a dar um emprego em casa e a comprometer os filhos da pessoa empregada a serem empregados dos seus próprios rebentos no futuro. Muita estética berrante (no sentido daquilo que não se cala e grita); muito enfrentamento imediato ao mimimi da branquitude; marchas de resistência aos autos de resistência, à redução da maioridade penal, contra o genocídio do povo negro, pelo empoderamento crespo, contra a violência e racismo impostos às mulheres e pelo bem viver. Pelo bem viver! As pessoas negras vociferam em cada ação de resistência e tigritude que não aceitam migalhas condescendentes à sua existência, exigem o bem viver. Vem daí o sentimento de desconforto e perplexidade da branquitude, de abalo aos privilégios recalcitrantes. Acabou chorare! A tigritude tá na área (faz tempo). (*) Cidinha da Silva é escritora. Publicou entre outros, Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê, 2013) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014). Despacha diariamente em sua fanpage Leia também: Querida Patroa Branca