Lima Barreto e o triste fim dos idealistas

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[o texto contém informações sobre o enredo e o desfecho do romance]

Triste Fim de Policarpo Quaresma é daqueles livros que substituem e superam em qualidade e poder de análise boa parte da nossa histérica e oportunista opinião pública de facebook.

A obra-prima de um dos nossos únicos escritores autodeclarados negros canonizados narra o delírio patriótico e a consequente desgraça de um funcionário público das forças armadas que comete a insanidade de ser fiel aos princípios e valores que aprendeu principalmente com os românticos do século XIX, pecado imperdoável em uma sociedade corrupta e hipócrita.

Lima Barreto recria os primeiros anos da mui festejada República para revelar que a mudança de regime não foi acompanhada por uma revolução nas estruturas de poder. O imperador fora substituído por ditadores, e os nobres por burocratas de alto escalão, mas os pilares fundadores da sociedade brasileira - racismo, sexismo, privilégio de classe, desprezo pela cultura e pelo pensamento criativo - permaneceram imutáveis. Um século depois e ninguém dirá que o cenário é essencialmente outro.

Os idealistas de hoje, que ainda resistem às tentações do cinismo e do impossível alheamento completo da sociedade, não podem evitar enxergar em Policarpo um triste espelho e um profeta: basta pensar na decepção dos eleitores de Dilma que esperaram por um governo reformador e se viram chantageados por Cunha, ou nos esperançosos corações gregos que vislumbraram o fim da austeridade dias antes de serem humilhados sob o peso do capitalismo que prefere a saúde dos bancos à das pessoas.

A amarga decepção decantada nos jornais de hoje é a mesma que sofre o fictício Quaresma ao largar tudo para defender a Pátria durante a Revolta da Armada. A proximidade com o poder de Floriano Peixoto e com a falta de honestidade e transparência no comando de guerra levam o coerente Quaresma a apontar as injustiças e excessos do governo. É preso como traidor e sumariamente condenado à morte. Só então o desolado major se dá conta de que de nada adiantou pautar suas ações pela fidelidade aos seus valores em um mundo governado pela hipocrisia e pela sede de poder:

Mas, como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como que não viu nitidamente a realidade, não pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira!

Se Policarpo Quaresma duvida de suas convicções ao aproximar-se da morte, Lima Barreto não se rendeu ao niilismo e fez de seu herói quixotesco um arauto de um humanismo que não é apenas ideia intelectualmente concebida, mas um sentimento de fraternidade que nasce do contato direto com a pobre gente que vive nos cortiços dos centros urbanos e com os camponeses que de seu não possuem nem a terra em que hão de ser enterrados depois de uma vida de muito trabalho e pouca fartura.

No fim da vida, o pensamento de Quaresma não está na Idéia pela qual entregou a existência (a Pátria, mas poderia também ser o Partido, o Deus, o Povo, o Poder), mas nas pessoas com quem travou suas poucas relações de afeto e cumplicidade. Entre elas, Olga, sua afilhada, que frontalmente desafia os interesses da carreira do marido para tentar salvar o padrinho.

Diferentemente de Cervantes e Flaubert, que narram o último suspiro de seus derrotados sonhadores, Quixote e Bovary, Lima Barreto não escreve o destino fatal de seu major. Observando que, ainda que muito lentamente, através dos séculos, as coisas mudam, a pragmática Olga não se sente desanimada diante da indiferença daqueles que poderiam poupar a vida de Quaresma. «Esperemos mais», pensa a afilhada antes do último ponto final.

«Esperemos mais» para que o legado do romancista Lima Barreto encontre ressonâncias nas sensibilidades do futuro, tempo em que os idealistas que sonhem com uma sociedade menos desigual e livre da violência gratuita não sejam castigados apenas por serem coerentes. «Esperemos mais», porque, ao que parece, a resiliência dos injustiçados é ainda, quando não a única, a sua mais expressiva e indecifrável forma de poder.