Longo caminho para que o império americano caia

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Nascido em Lahore, em 1943 – cidade que na época fazia parte da Índia controlada pelos ingleses – Tariq Ali começou cedo na militância política. Filho de comunistas, liderou uma série de manifestações contrárias à ditadura do Paquistão ainda na faculdade. Tanto que, ao se formar, um tio – pertencente à alta inteligência do governo – sugeriu a seus pais que o mandassem para fora do país.

Hoje, Tariq Ali é um editores da New Left Review, possivelmente a publicação de esquerda mais importante do século 20. Jürgen Habermas, Eric Hobsbawm, Franco Moretti, Immanuel Wallerstein, Linda Weiss, Slavoj Zizek, Claude Lévi-Strauss, Ernest Mandel, Jacques Derrida são alguns dos que assinaram – ou ainda assinam – artigos na revista. É também um dos maiores especialistas em Oriente Médio e Ásia Oriental e autor de diversos livros de história e alguns romances, incluindo uma série sobre o mundo islâmico – publicados no Brasil pela editora Record.

Nesta entrevista exclusiva, um dia depois de sua conferência Contra a Militarização e a Guerra, Ali dá uma aula sobre o mundo árabe, dicas para a América Latina e esclarece as reais intenções da invasão do Iraque pretendida por George W. Bush.

Iraque Os norte-americanos estão decididos a ocupar o Iraque. O governo Bush vê a guerra como um grande teste para a política externa de seu país. Assim, a oposição francesa ou alemã, bem como do grande movimento antiguerra, não deve ter grande efeito.
É difícil prever com certeza como o governo iraquiano responderá. Sinto apenas que não irá além das cidades iraquianas. Eles ficarão nas cidades e forçarão os americanos a lutar lá. Não acredito que atacarão outros países. Posso estar errado, mas duvido que o Iraque tente atacar Israel, como ocorreu em 1991. Tentarão vencer os americanos ou deixarão que destruam as cidades do Iraque, o que resultaria em enormes perdas civis.

Questão palestina Se houver uma guerra no Iraque, há duas opções. Uma é Ariel Sharon usar a cobertura da guerra para expulsar ainda mais palestinos. A segunda, se os EUA ocuparem o Iraque rapidamente, é criarem um pequeno protetorado palestino, que não será completamente independente, mas totalmente dependente de Israel, e avisar que isso é tudo que os palestinos merecem e conseguem. E que se eles não pararem de promover agitações, o mundo irá ignorá-los. Mas o mundo já os ignora, então qual a novidade? 

Saddam Hussein Saddam Hussein e o Iraque representaram uma tragédia real para a região nos anos 80. Primeiro, quando estavam muito próximos dos EUA, que deram a Saddam armas químicas para usar contra o Irã e contra o próprio povo curdo em seu país. Nos anos 90, não foi o caso. Especialmente depois da guerra do Golfo, o Iraque é um país fraco, seu exército é fraco e seu povo mais ainda. Na minha opinião, não representa ameaça para mais ninguém. E as pessoas sabem disso. O povo norte-americano sabe.

O povo não merece a guerra Saddam não é exatamente um ditador popular, mas tendo o líder que tiver, nenhum país quer ser bombardeado pelos EUA. Imagine-se, no Brasil, quando havia a ditadura – que era terrível, muito pior que a do Saddam e apoiada pelos EUA. Suponha que outro país decidisse bombardear e ocupar o Brasil, destruindo as cidades. Mesmo todos os brasileiros contrários ao ditador não gostariam de ver o país destruído. É o mesmo no Iraque: o povo não quer ver essa guerra. Já sofreu bastante. As sanções impostas pelo Ocidente contra o Iraque levaram à morte meio milhão de crianças.

Fim das ditaduras Na minha opinião a melhor maneira de acabar com as ditaduras é fortalecer o povo. Quando os EUA gostam de um ditador, podem deixá-lo no poder por trinta anos, como Suharto, na Indonésia, que matou mais de 1 milhão de pessoas dentro do próprio país. E os americanos mantiveram o apoio até que o próprio povo o tirou do poder. Quando Pinochet tomou o poder no Chile, alguém pediu aos cubanos para intervir lá? Não, porque não nos comportamos desse jeito. A única forma de remover um ditador é pelo próprio povo.

Futuro do Golfo É uma grande tragédia o que está para acontecer, mas os EUA não vêem dessa forma, mas sim como uma oportunidade para remapear o mundo. Depois do ataque ao Iraque, irão tentar mudar o regime do Irã e, depois, de outros países do mundo árabe. Podem insistir num tipo de protetorado palestino como já disse, com certa autonomia, mas ainda subordinado a Israel. O objetivo direto agora é controlar os recursos energéticos do mundo. Querem proteger os interesses da economia americana no mundo todo. A guerra e a ocupação do Iraque são o primeiro passo dos EUA para dizer ao resto do mundo: “se você não se comportar, sofrerá como o Iraque”.

Mas a guerra não é exclusivamente por causa do petróleo. É também geopolítica, para demonstrar o poder militar americano, para dizer que os EUA podem mudar regimes onde quiserem e fazer o mundo aceitar que isso é um direito deles. “Faremos o que quisermos e você não tem poder algum sobre isso.” Temos de ver esse processo de ocupação do Iraque por dois lados, o petróleo e a geopolítica.

Reação do mundo árabe Acredito que os outros países não farão nada. A única reação virá de parte do povo do mundo árabe. Pessoas irão às ruas contra a guerra, desafiando seus próprios governos. Mas isso pode não ocorrer imediatamente, talvez em seis meses, um ano. A região não se tornará estável depois da ocupação dos EUA, ao contrário, ficará ainda mais instável.

Os EUA e seus aliados Há alguns países que têm políticas econômicas neoliberais, como os estados do Golfo Pérsico e o Egito. Mas há países que não aceitam esse modelo, como a Síria, o Iraque e, em certa medida, o Irã. Resistem e mantêm o controle de seu próprio petróleo, não permitindo que companhias ocidentais o tomem. Preservam algum grau de nacionalismo contra os EUA. Esse é o grande motivo que leva os EUA a quererem destruir seus regimes.

Os EUA estão felizes com alguns governos árabes porque os controlam há muito tempo. A Arábia Saudita, por exemplo, tem regime muito pior que o iraquiano. Não é permitido às mulheres dirigirem carros, viajarem sozinhas. Elas podem se locomover dentro da cidade, mas para sair precisam de autorização do pai, do marido ou até do filho. Eles vivem num mundo louco. Mas acho que as coisas vão mudar na Arábia Saudita, o regime está ficando bastante instável. Há anos que digo isso, é preciso haver uma onda de revoluções democráticas no mundo árabe para substituir a sociedade corrupta por governos mais amplos. Mas os EUA não querem governos democráticos nessa parte do mundo. Por quê? E se um governo democrático resolver que quer controlar seu próprio petróleo? Vão intervir de novo? É o dilema. Os interesses econômicos dos EUA indispõem-se com a democracia.

Democracia no Oriente A democracia teria de ser adaptada, mas ela é possível sim. Acredito que há um instinto em todas as pessoas de participar de alguma forma da vida de suas comunidades, de seus países. Temos de encontrar a melhor forma de fazer isso. Não precisa ser o modelo britânico ou o americano, mas um modelo próprio para expressar melhor a democracia, especialmente para aqueles que vivem ou viveram sob ditadura militar, como Paquistão, Brasil e a maior parte da América Latina. Temos de perceber que a democracia é muito importante, quando não se tem, a sociedade realmente sofre. O método para chegar a ela não é universal, mas a democracia em si é universal e temos de lutar por ela. É possível ter democracia em níveis muito mais elevados que no Ocidente se algum governo estiver preparado para tomar a iniciativa.

Religião
Democracia não tem nada a ver com religião. Todas as grandes religiões universais têm muitos pontos em comum. Além do que, o mundo do Islã também foi atingido por todos os ventos que atingiram os outros grupos. Não é questão de religião. Viajo muito pelo mundo muçulmano, e as pessoas são a favor da democracia. Seja na Indonésia, no Paquistão, no Egito, nos Estados do Golfo, seja na Arábia Saudita.

Sociedade civil Os movimentos sociais são muito fracos no Oriente Médio porque o Estado não permite que se desenvolvam. Há apenas algumas ONGs, mas há problemas com essas organizações nessa parte do mundo porque substituem a política fazendo pequenas coisas. Os intelectuais, tanto liberais quanto esquerdistas, são incorporados e trabalham para essas pequenas organizações. Os salários são pagos por fundos de ONGs de países ocidentais. Mesmo no Líbano, que é um dos países mais democráticos da região, isso ocorre, é fenômeno muito comum. Eu conheço bem a situação do Paquistão. Muita gente que era engajada politicamente hoje faz parte de ONGs. E uma das exigências para isso é que você não tome posições políticas.

Democratização da mídia Mesmo no Ocidente, a democracia é limitada, pesadamente circunscrita pelo fato de a mídia ser sempre dominada por um pequeno grupo de milionários. Algum país deveria criar mecanismo para democratizá-la. Por exemplo, para qualquer grupo que recolhesse 50 mil assinaturas o Estado daria uma revista semanal. Se coletar 200 mil, um jornal diário, em que poderiam escrever o que quisessem. Seria muito mais democrático que qualquer oferta do capitalismo, mas nenhum Estado ainda fez algo assim. Hugo Chávez deveria tentar algo assim na Venezuela.

América Latina O exemplo latino-americano, como disse em minha conferência no Fórum, é muito importante, porque este é o continente em que as idéias neoliberais foram experimentadas primeiro – e onde falharam primeiro também. Veja a Argentina, veja Fernando Henrique Cardoso no Brasil. Um desastre! É verdade, Cardoso reduziu a inflação, mas a que preço? Ele destruiu a indústria brasileira completamente. E esses países estão vulneráveis a todas as grandes multinacionais que vieram. O problema das multinacionais é que quando elas vêm e não fazem dinheiro, vão embora, não se preocupam com a população. Diferente da indústria local, que precisa se preocupar um pouco mais com as pessoas daqui. É por esse dado que Cardoso deveria ser lembrado, por destruir a economia brasileira. É por essa razão que a reação contrária foi tão forte e Lula ganhou por maioria tão ampla. As pessoas sabiam que o modelo havia falhado. Então, o exemplo da América Latina está sendo observado muito de perto por toda a Europa. Por isso o que ocorre no Brasil é tão importante.

Allende e Lula A eleição de Lula é como a eleição de Salvador Allende, no Chile, nos anos 70. Está no mesmo nível, é uma grande mudança no Brasil e esperamos que algo realmente mude, porque se isso não ocorrer haverá uma descrença massiva no Brasil. Se nem Lula for capaz de mudar, as pessoas vão dizer: “foda-se a política, não queremos isso”. Quando Allende chegou ao poder, os chilenos tinham esperança de que algo estava para mudar. Ele realmente tentou, nacionalizando toda a indústria mineradora, o que feriu os interesses norte-americanos – que o pararam da forma que sabemos. Obviamente, vivemos num mundo diferente, e Lula não vai fazer isso. Mas nas questões da terra e dos sem-terra ele tem de fazer algo, pois isso não afeta os EUA, apenas o Brasil. Vamos ver o que acontece. Os próximos três anos na política brasileira serão muito interessantes e todos estão de olho.

Intercâmbio Cuba sobreviveu ao bloqueio, às diversas tentativas dos EUA de matar Fidel, à invasão da Baía dos Porcos, à república de bananas em Miami que tenta desestabilizar o regime. Há muito o que aprender, como, por exemplo, usar os recursos do país para facilitar a vida do povo em termos de saúde, educação, moradia, abrigo. Mais ainda, os governos do Brasil, da Venezuela, do Equador e mesmo o de Cuba têm muito o que aprender uns com os outros, se unindo para criar uma alternativa ao neoliberalismo.
E não pode ficar só nisso. Há todo um continente gritando para ser refeito. E a grande dor dos mexicanos é que Fox e Castañeda iriam oferecer uma nova alternativa, mas não fizeram nada. A partir da força que o Brasil certamente adquiriu com a vitória do PT, precisamos envolver partidos alternativos do México e construir alternativas de fato. Isso precisa ser construído num movimento que envolva todos os países da América Latina.

Estratégia brasileira
Acho que alguns países europeus podem até tentar ajudar, mas o que o Brasil teria de fazer é desenvolver relações comerciais realmente fortes com países como a China. A China negocia com os EUA, é sua maior parceira comercial. O Brasil deve reduzir sua dependência do norte e procurar outros caminhos. A China poderia ser um parceiro econômico e comercial, beneficiando enormemente o país. Claro que não é tão simples, mas pode ser feito e deve-se tentar. O Japão é outro país com o qual o Brasil já tem relações, mas poderia aprofundá-las.

Ritmo chinês
Na China, o Estado controla o capitalismo e não o contrário, o que faz uma grande diferença quando se compara com os outros países. Lá o Estado tem um papel determinante na forma de funcionamento do capitalismo. Se você for a Xangai, a cidade está irreconhecível. É a mais dinâmica do mundo, muito mais que as cidades americanas. É por isso que os EUA estão com muito medo da China nos próximos dez, vinte anos. Todos os documentos estratégicos publicados nos EUA não tratam dos árabes ou do Islã, mas da China, porque pode desafiar sua hegemonia.

Estratégia dos EUA para a China
Não estou certo, mas acredito que eles gostariam muito, se a China ficar muito poderosa economicamente, de criar algumas divergências com Taiwan. Provavelmente, o que eles gostariam de fazer – talvez não sejam capazes – é dividir a China em dois ou três países. Não será fácil, porque há uma civilização que remonta a milhares de anos, e os chineses não aceitariam sem lutar. Mas é o que gostariam de fazer, o que pensam em fazer. É por isso que países como o Brasil, a Argentina e outras partes do mundo precisam tentar olhar para lá e não permanecer constantemente obsessivos com Washington.

Ameaça real Há um longo caminho para que o império americano caia. Pode levar um século todo, por ser muito poderoso e militarmente incomparável. Por isso, é extremamente importante construir relações com os americanos que estão resistindo a essa guerra. Sem o apoio do povo norte-americano estamos perdidos. E isso deve ser construído e desenvolvido, até porque o que acontece em outras partes do mundo também afeta os EUA. É uma luta de longo prazo, em que não haverá imediatamente nenhuma vitória militar. É até possível ter vitórias políticas contra os EUA, mas, militarmente, a única vez em que foram derrotados foi em 1975 pelos vietnamitas. E olhe como acabaram punidos depois de derrotá-los, já que foram mantidas sanções econômicas, sem falar na recusa em lhes dar as reparações merecidas. E os norte-americanos usaram armas químicas. É por isso que argumento que a maior ameaça para a estabilidade do mundo não vem de Saddam Hussein ou de qualquer ditador do Oriente Médio, mas dos EUA.

Arte engajada O grande problema com o mundo comunista foi que se acreditava na teoria do realismo socialista, que todos os cineastas e escritores devem ser feitos de um único modo. Isso está errado, esse trabalho não tem valor. O mundo artístico não pode ser controlado pelo Estado. Tanto é assim que não há, em minha opinião, nenhuma obra-prima de um grande mestre realista socialista. A arte passa a ser feita de acordo com uma fórmula. Isso não significa que os escritores não devam ser engajados, apenas não devem ter um comportamento imposto pelo Estado. Mas hoje temos o oposto. Se antes havia o realismo socialista, hoje temos o realismo do mercado. É o mundo dos best sellers, das celebridades, da cultura, em que as pessoas estão desesperadas por entrar na lista de mais vendidos do New York Times. Editores de todo o mundo olham a lista e dizem “vamos tentar conseguir três livros da lista de mais vendidos do NYT para publicar em nosso país”. Isso é tão ruim quanto o que ocorria na velha União Soviética.

Pessoas não são estúpidas Precisamos é fazer filmes, peças de teatro, escrever livros que possam ser vistos por todos, mas que não sejam estúpidos. Na cultura em que vivemos, reina o princípio de que as pessoas comuns são estúpidas e por isso lhes damos a mesma dieta de “merda” na TV todos os dias, novelas, game shows. É loucura. Eles fazem isso porque querem institucionalmente despolitizar o povo. As pessoas estão tão interessadas nisso quanto em coisas completamente diferentes, mais inteligentes. No Brasil, há uma forte tradição cinematográfica, os filmes de Glauber Rocha nos anos 60. Lembro-me de assistir Antonio das Mortes (o título original é O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro) num cinema de Londres e ficar estarrecido. Mas isso precisa acontecer em vários países.

Papel do Estado na cultura O governo precisa de um ministério da cultura que tenha um papel ativo, sem controlar a cultura, mas permitindo e ajudando as pessoas. Ter uma indústria cinematográfica que dependa totalmente da comercialização não é uma boa. Precisamos ter um Estado capaz de ajudar os cineastas, encorajando-os a experimentar, produzir filmes diferentes. Espero que o governo Lula entenda a importância da cultura.