Lourenço Mutarelli: a arte de produzir histórias

Fumante, ator, escritor, quadrinista, ilustrador e dono da Mentira, ele tomou posse de sua inquietude, trancou na “jaula” seus distúrbios e os colocou em seus personagens, tornando-se referência para artistas de diversos segmentos

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Fumante, ator, escritor, quadrinista, ilustrador e dono da Mentira, ele tomou posse de sua inquietude, trancou na “jaula” seus distúrbios e os colocou em seus personagens, tornando-se referência para artistas de diversos segmentos

Por Igor Carvalho

Esta matéria faz parte da edição 126 da revista Fórum.

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Lourenço Mutarelli me recebe em seu apartamento e trata, antes de tudo, de apresentar suas companheiras fiéis: Mia, Mentira, Doutora e a Gepreta. São suas gatas. Gracejando, pede para uma delas, a mais apegada ao escritor: “Mentira, fala uma verdade para ele”, e ri. As felinas transitam com liberdade por todos os cômodos, menos na famosa “jaula”. Lá, entre livros, prateleiras, tintas, pincéis e outras miudezas, Mutarelli se inspira para desempenhar as funções que toma para si: escritor, ilustrador, quadrinista, roteirista e ator são algumas delas.

A “jaula” é um local tenso, fechado, escuro e explica a atmosfera de seus livros, além de colaborar para que Mutarelli encontre as patologias de seus personagens, atormentados por distúrbios urbanos. O próprio autor sofreu de Síndrome do Pânico, e as grades, improvisadas, trancafiam o artista em seu próprio mundo criativo.

Paulistano da Vila Mariana, Mutarelli cresceu próximo ao Aeroporto de Congonhas, mas retornou para o bairro da zona sul de São Paulo, onde vive e onde ambientará, “talvez”, seu próximo livro. A capital paulista sempre esteve em suas obras, no cotidiano dos personagens que são levados por ruas e lugares da cidade.

Premiado quadrinista, ousou variar o ofício e lançou, em 2002, o seu primeiro livro, O cheiro do ralo, escrito em apenas cinco dias. Hoje, após o lançamento de seis livros e adaptações para o cinema, Mutarelli deixou a literatura se esparramar nos quadrinhos e levou ao cinema não apenas suas histórias, mas também outra faceta: ele atua em seus filmes, algo que já fazia no teatro. Da ponta com Selton Mello no longa O cheiro do ralo para o papel de protagonista em Natimorto, passando por peças de teatro, diz ter esgotado suas pretensões cênicas.

No momento, de tênis novo, e ainda fumando muito – dois maços por dia –, Mutarelli finalmente se diverte com o livro para a série Amores Expressos, que se tornou uma sombra criativa no imaginário do autor. Entre uma tragada e outra, conversou com Fórum. A entrevista segue abaixo.

Fórum – Como devo apresentar o Mutarelli: ilustrador, artista gráfico, quadrinista, escritor, roteirista...?

Lourenço Mutarelli – De uns tempos pra cá, desde que me tornei escritor, falava que era escritor. Estava há três anos sem escrever, daí estava falando “desenhista”, mas agora voltei a escrever, então estou respondendo “escritor”.

Fórum – Você define o seu ofício pelo momento?

Mutarelli – Escrever me consome, estou escrevendo o tempo todo. Só não estou escrevendo quando estou lendo. Mas consigo, por exemplo, ver um filme. Algumas coisas me desligam, poucas, fora isso estou sempre trabalhando, acho que sou escritor.

Fórum – O que está escrevendo agora, Mutarelli?

Mutarelli – Estou reescrevendo do zero o [livro para o] “Amores Expressos”, que foi um pesadelo na minha vida. Ali, tive meu primeiro bloqueio. Fiz o livro em um ano, quase dois, e entreguei. Aí, os caras [da editora] não gostaram. Era um livro ruim mesmo, mas não me importava com isso. Daí, pediram para mexer, e não mexi.

Voltei nele e o livro não ia, porque sempre era para o ano seguinte, e tinha essa pressão. Aí, em 2013, no primeiro semestre, a Companhia das Letras ia lançar uma coleção, e no segundo semestre ia lançar o Chico Buarque, então me falaram que iam deixar para o ano que vem, e parei de novo. Dou oficina de quadrinhos no Sesc, que é um negócio que gosto bastante, chegou no meio do ano e, com as férias,  não tinha nada pra fazer, não entrou nenhum trabalho de ilustração, então peguei o livro e está indo. Vai ser um livro bem trabalhoso, bem lento, mas estou muito feliz com o resultado.

Fórum – Como você estabelece essa relação com o cotidiano, com as coisas pequenas do dia a dia, o café no bar, o bauru na padaria? Você é muito observador?

Mutarelli – Eu sou muito cotidiano. Tenho uns hábitos que se repetem, o cotidiano é muito importante pra mim. Quase não dirijo mais, e pretendo não dirigir nunca mais, então uso muito o metrô e acabo chegando muito antes nos lugares, no mínimo uma hora. O que gosto de fazer é achar um boteco, um café, alguma coisa, e ficar observando. Acho até que esse livro de Nova Iorque era difícil porque eu não estava colocando o cotidiano, estava indo por outro caminho. Estou até com vontade de dedicar esse livro ao Google Street [View], graças a ele estou refazendo o meu caminho. Voltei para lá [Nova Iorque] depois do bloqueio, fiquei um mês e depois, no ano seguinte, fiquei dez dias, a memória acaba falhando. Esse Google é uma coisa absurda, lembrei de um bar em que fui e não sabia se lá servia comida, porque fui beber um negócio e era um bar bem legalzinho. O meu personagem está lá e falei: “Pô, eu não sei se tem comida ou se só serve aperitivo”, mas pelo Google Street consegui o cardápio do restaurante, incrível. Estou muito fascinado com isso. Estou enchendo o meu livro de cotidiano, acho que por isso que estou gostando.

Fórum – Sem viver no local do personagem, você consegue passar essa verdade?

Mutarelli – Consegui pegar tudo que coloquei no blogue e em um diário que eu tinha. Nas duas viagens a Nova Iorque, tinha diário do que comi, quanto paguei... Estou conseguindo por isso. Como o personagem é diferente de mim, inclusive socialmente, financeiramente, pesquiso outras coisas. Ele tem hábitos diferentes dos meus, mas tem coisas que são parecidas. Nunca tinha escrito com a internet, trabalho em uma jaula ali atrás, e não tinha sinal de internet. Gostava disso, mas agora tenho um roteador melhor, chega o sinal lá na jaula e estou achando incrível trabalhar com internet. E é uma brincadeira, estou imitando uns caras que eu gosto, criei um outro negócio. Não é um livro meu, ele tem um parentesco, por exemplo, com Jesus Kid [2004, Devir Livraria], que era uma encomenda em que eu tinha que de inspirar no Barton Fink [filme de 1991, dirigido por Joel Coen e produzido por seu irmão, Ethan Coen], no Adaptation [filme de 2002 dirigido por Spike Jonze]. Estou com uma ideia de um livro que é bem por aqui, por São Paulo, mas preciso tirar esses seis anos de ruído da minha cabeça.

Fórum – Incomoda o fato de o livro para a coleção Amores Expressos estar preso ainda?

Mutarelli – Muito, muito.  Durante esses seis anos tinha comprado uma bota que eu não tirava, era meio meu grilhão, e ontem comprei um tênis, porque está indo. Agora que estou terminando, sinto uma paz muito grande, estou gostando muito. É interessante que uma vez fui num lançamento e um cara que mora em um prédio aqui do lado disse que reconheceu pelo menos quatro figurantes que aparecem em A arte de produzir efeito sem causa, e achei incrível. É o meu preferido.

Fórum – Antes de falar do Cheiro do ralo: Quanto você acha que a literatura modificou a arte do quadrinista?

Mutarelli – Isso é bem legal, porque tenho feito quadrinhos só com coisas muito experimentais que não são histórias, não têm fim. Estou em um projeto também, que não sei quando vou fazer, baixei vários filmes pornôs dos anos 1970 e escolho alguns fotogramas, desenho bem rápido e vou ouvindo um grupo satânico para vir frases, e isso está virando uma história que não é uma história, mas quero transformar tudo isso em um livro, em texto. E depois encartar o processo. Quando fiz o Quando meu pai matou um ET fazia um dia quente, que voltei a fazer quadrinhos, o que mais me ajudou foi essa experimentação com a literatura, e é uma coisa que sinto muita falta na literatura, sempre usei um pouco no quadrinho, e acho que no ET usei mais, são os silêncios. Porque, agora mesmo, na história que estou fazendo, ele é um cara que passa muito tempo sozinho, mas é muito difícil, porque você tem de descrever esse silêncio, não tem como mostrar. Isso me ajudou muito no quadrinho a ter mais contemplação. O que fiz no ET também foi tirar do texto e da imagem e as coisas não baterem, fazer com que elas se montem de uma outra forma na cabeça do leitor. Por que isso me incomoda muito, o quanto a imagem se impõe, o quanto ela é autoritária. O cara é aquilo, e quando você lê um livro, por mais que a descrição imponha, cada um vai ver o cara de um jeito. Esse é o lado ruim do quadrinho.

Fórum – O Cheiro do ralo colocou você em um cenário em que não sei se você antes tinha alguma experiência, a literatura.

Mutarelli – Não, não tinha.

Fórum – E por que escrever um livro?

Mutarelli – Porque foi um momento em que eu estava muito cansado de imagem. Estava começando a usar o Word para escrever meus roteiros. E quando comecei, tinha aquele bonequinho do Einstein, e não conseguia desabilitar aquilo, só conseguia desabilitar aquilo para uma outra imagem, de clips... E tudo com ícone e com música. Cara, estava muito cansado de imagem, e nesse momento li o Capão pecado, do Ferréz. Fiquei bobo como aquele livro me transportou pra algo muito mais próximo da realidade, de como a literatura tem esse poder muito maior do que o quadrinho. Então, fiquei com muita vontade de fazer uma experiência só com texto. Estava fazendo muito desenho e tinha ligado o computador para escanear umas imagens e tinha uma ideia na cabeça. Minha mulher e meu filho tinham viajado, era um carnaval, e fiz O cheiro do ralo em cinco dias, sem parar.

Depois, usei mais dez dias para arrumar. Escrever é muito incrível, você se transporta, e quando terminei aquilo, como escrevi meio quebrando as linhas, uma coisa que para mim era musical, mas parece meio poética, nem sabia se aquilo era um livro. Quando minha mulher voltou, falei: “Olha, acho que fiz um livro”. Ela leu e grifou dois pontos, um que não entendeu e outro que ela achou meio preguiçoso. Levei mais dez dias para terminar. E em todos os meus livros trabalhava muito rápido, até A arte de produzir efeito sem causa, fiquei um ano trabalhando nele. E é o que estou fazendo nesse de Nova Iorque, vou trabalhar muito nele, muito. Vou voltando, ajustando, pesquisando muita coisa, e é meu livro preferido também. Inclusive, reli A arte, e nunca releio meus livros.

Fórum – Como é a relação que você estabelece com seus livros? Você lê com frequência?

Mutarelli – Não tenho nenhum dos meus livros. Nem quadrinhos. Nada. Minha mulher tem, mas não deixa nem eu mexer.

Fórum – Mas por quê?

Mutarelli – Porque não tenho apego, vou passando os exemplares, tenho amigo que não tem, então dou e sempre fico sem. E nunca me fez falta. A arte de produzir efeito sem causa me fez falta esses dias, e essa última edição do Diomedes também me fez falta. Comprei esses dois e não ia ler. Mas meu filho está estagiando em uma produtora de cinema e viu, eu ainda não vi, não sei se é o corte ou a versão final da adaptação da Arte de produzir efeito sem causa. Ele comentou umas coisas sobre o filme e queria ler o livro, e pensei: “Ah, vou reler também”. É horrível falar isso, mas adoro esse livro e relendo gosto mais, é muito impressionante. Não tenho essa relação, não tenho muito apego ou orgulho pelas coisas que faço, mas esse livro me deu orgulho. Uma vez, tinha comentado isso com os alunos para quem dou oficina, que estava na hora de voltar a ler minhas coisas. Elas ficam tão distantes de mim depois que eu termino...

Fórum – Todos os seus personagens possuem algum distúrbio. Isso é seu ou algo que você cria?

Mutarelli – Teve uma época em que começava um livro e antes pesquisava distúrbios pra ver qual o cara ia ter. Mesmo que não mencionasse, era meio que a raiz dele. Agora não. Todos têm, eu tenho, então é uma coisa muito forte. Mas acho que a literatura está muito cheia desse tipo de coisa, estou a fim de dar uma escapada disso. Tem algo pelo qual estou fascinado – e que não deixa de ser um distúrbio, nunca deixa de ser –, mas eu estou fascinado com o mal como essência.  Eu estou indo mais para aí, e sempre dá uma interpretação de distúrbio.

Fórum – Mas sem uma visão filosófica.

Mutarelli – Não, não. Do mal não filosófico. Do mal como algo que precisa da gente, quase uma entidade. O mal sobrenatural de alguma forma. É um assunto que tem me fascinado muito e não deixa de ser distúrbio da mesma forma, mas é uma outra pegada, que tem me interessado bastante e sempre esteve presente no meu trabalho.

Fórum – E o cinema, Mutarelli? Você fez uma ponta no Cheiro do ralo, uma cena que é incrível, e depois veio a experiência de protagonista em Natimorto. Esgotou essa ânsia de ser ator?

Mutarelli – Totalmente. Brinco que eu era um policial infiltrado. Estava produzindo minha primeira peça quando me convidaram para protagonizar um curta-metragem e falei que sim, ia viver o outro lado. Foi legal, era muito divertido, mas não é mais. Uma coisa que tenho feito muito é recusar convite.

Fórum – Mesmo em participações pequenas, diálogos curtos?

Mutarelli – Mesmo assim, recuso muita coisa. Mas a Anna Muylaert, quando me chamar, estou dentro, porque com ela é um prazer, é sempre uma coisa pequena e ela não deixa eu falar nenhuma frase do roteiro, quer que improvise, é muito bom. Mas fora isso, não vejo nenhuma possibilidade.

Fórum – E a sua relação com o Glauco Mattoso?

Mutarelli – A minha relação com o Glauco é incrível, um cara maravilhoso que conheço há muito tempo. Acho que o conheci em 1988.

Fórum – É real essa história de que você chegou a ler para ele alguns trechos de livros?

Mutarelli – Sim. Quando ele ficou cego, ficou muito sozinho, muita gente se afastou porque não sabia lidar com isso, e embora ele soubesse que um dia ia ficar cego, foi muito terrível a hora que isso aconteceu. Minha mulher lê muito bem, e ele sentia muita falta de ler, a gente ia muito lá para ela ler coisas que ele queria. A gente é muito próximo, é um cara incrível, muito generoso.

Fórum – E o teatro? Onde é que está entrando hoje? Tem espaço ainda para o teatro?

Mutarelli – Tem, o teatro é uma coisa muito fascinante e estava em um projeto com um cara e um grupo de atores, mas um deles teve um problema de saúde e deu uma parada. Estava muito a fim de escrever, fui para o meu livro e esqueci a peça. É muito fascinante ver o texto ganhando voz e corpo, os personagens, os atores, é bem interessante.

Fórum – A gente vem agora de um mês de junho com manifestações no País inteiro, pessoas na rua. Tem espaço para a política nos seus livros?

Mutarelli – Fiquei muito impressionado com as manifestações. Fui naquela segunda-feira de que eles falam em não sei quantas mil pessoas, e tinha muito mais, no Largo da Batata. Sabe, anulo meu voto desde 1989, desde a eleição Collor e Lula que voto na vaca. Desde lá venho anulando, naquela época votei no Lula, e quando deu o Collor, nunca mais votei, só anulo. Uma vez, de brincadeira, votei no Enéas e ele ganhou, por causa da propaganda que ele fazia, eu achava engraçado. O único cara em quem votei ganhou e fiquei muito preocupado com isso. Mas a maioria das pessoas que conheço não anulam. Acho que foi incrível e emocionante participar da passeata, mas chega, né? A próxima grande manifestação tem de ser todo mundo votar nulo. Não tem ninguém em quem eu acredite. [caption id="attachment_32957" align="alignleft" width="336"] (Foto: Jorge Luiz Campos)[/caption]

Fórum – Você é meio niilista?

Mutarelli – Sou, na verdade acho que não é nem um niilismo, a gente sabe o que está por trás, o poder e a grana que tem, as negociatas, todo mundo chega lá e vira fantoche, os caras dançam, mas não são eles que põem a música. Então, não dá para acreditar nisso. Não tenho Facebook, mas fiquei muito impressionado como o Facebook mobilizou essa passeata, têm de usar para mobilizar para outras coisas.

Fórum – Como que é a sua relação com a internet?

Mutarelli – Detestava a internet... Não que detestasse, mas usava muito mais como um hobbie e como distração. Sempre comprei muito livro, sempre achei incrível comprar pela internet, tanto no Estante Virtual como na Amazon. Detestava e-mail, minha mulher cuidava pra mim. Mas como passei a dar oficinas, preciso estar mais próximo dos alunos, e de um ano pra cá comecei a usar e-mail. Sempre pesquiso na internet, mas não confio muito. Agora, para pesquisar coisas menos sérias, acho que é legal. O YouTube tem coisas legais, faço uns exercícios a partir de vídeos que pego, a boa e velha pornografia é incrível.

Tive um blogue, quando fui para Nova Iorque, por conta da Amores Expressos, foi uma experiência incrível. Depois, há uns dois ou três anos, como criei muitos amigos do blogue, a gente só se relacionava lá. Estava produzindo muitos desenhos e investigando uma questão, criei para isso e para dividir os desenhos, e essas pessoas ressurgiram. E eu adorava, mas tive um problema com a Folha de S.Paulo, eles pegaram coisas que estavam lá, conversas com aqueles amigos, e botaram entre aspas como se eu estivesse falando para eles [Folha]. Quando saiu no jornal, deletei o blogue e não pretendo ter mais.

Fórum – Essa coisa do público invadindo o privado, é algo...

Mutarelli – Fui muito ingênuo, era uma coisa muito íntima o que estava postando lá, claro que qualquer pessoa podia entrar e acompanhar, mas não imaginava extraírem coisas dali e dizerem que falei para um jornalista isso. Achei uma invasão, um desrespeito muito grande. Isso me inibiu, jamais vou ficar à vontade de novo em um blogue como eu ficava.

Fórum – Você também teve uma certa rusga com o Laerte, é verdade?

Mutarelli – Tenho sim, foi um cara que me atrapalhou muito no começo. E o começo sempre é muito difícil, então é um cara que não passa, até deixei bem claro que não tem nada a ver com ele se vestir de mulher ou não. Ele está mais sociável comigo nas vezes que eu o encontro, era um cara que não me cumprimentava, mas depois que começou a se vestir de mulher, beija meu rosto. Nem me cumprimentava, virava o rosto, mas agora pelo menos cumprimenta. Às vezes eu o encontro em algum evento ou coisa assim.

Fórum – Quando começou isso?

Mutarelli – Foi em 1986, por aí, quando estava tentando começar. Ele era editor e o quadrinista que eu mais gostava, da Revista Circo. Era meu sonho publicar lá, larguei o emprego pra tentar, e aí demorei pra entender que ele estava me enrolando. Ele falava: “Não, traz outra”, “Traz outra”. Aí eu levava e ele falava: “Puta, aquela era mais legal”, e eu perguntava se ia publicar, e ele dizia que não e falava para eu fazer outra. Depois de uns meses, vi que o cara estava me zoando, tirei cópia de tudo, que dava um negócio que acabei chamando de “livrão” e entreguei: “Se um dia você quiser, estão aí as histórias”. E ele jogou em um armário, em um porão da editora. Fiquei muito mal.

Fórum – Como é sua relação com o mercado editorial?

Mutarelli – De uns dois anos para cá, eu estou no meio de uma crise e fiquei com vontade de parar de publicar, porque é muito ridículo o que a gente ganha, 10% do preço de capa é meio ridículo. Mas a história das oficinas paga minhas contas, não preciso mais escrever um livro por ano.

Fórum – Qual a relação que você estabelece com pirataria, há livros seus para downloads?

Mutarelli – Tem, eu mesmo já autorizei quadrinhos meus, não sou contra, mas sou o cara que compra tudo original. E espero que existam outros que façam isso [risos]. Sei que a molecada não tem dinheiro, mas não me importo, de verdade, que seja pirateado. Recebia, no tempo das cartas, gente pedindo meus livros, e uma vez uma menina, que fiquei até amigo dela, me falou: “Tenho todos os quadrinhos do Neil Gaiman e queria os seus, mas estou sem grana.” E falei: “Pô, pede para o Neil e compra os meus, o cara tem muito mais grana que eu, muda esse jogo”. Mas me sinto mal em piratear. A não ser coisas muito caras. Alguns programas, que não posso citar o nome, e são caros demais, ia até comprar, mas aí você vê o preço e custa 3,5 mil dólares...

Fórum – O que você usa para desenhar?

Mutarelli – Faço em acrílico, trabalho muito com nanquim, tenho várias técnicas. Mas preciso digitalizar, e depois de digitalizar preciso montar. Às vezes você tem de digitalizar em duas partes, e preciso tratar a imagem e salvar em uma resolução, então preciso de um programa para isso, que custa 3,8 mill dólares. Se fosse mil reais, 1,5 mil, dava; agora, 3 mil dólares, não dou.

Fórum – Você sente o quê, desse momento cultural do Brasil?

Mutarelli – Acho que tem muita coisa boa e infelizmente tem as ditaduras, essas emissoras que ficam propagando coisas que, mesmo que sejam boas, dão um jeito de baixar o nível para massificar. Tenho umas cinco pastas de filmes gravados, meu pai gostava muito de cinema, e eu ficava trabalhando de madrugada, então ele anotava no jornal os filmes que queria que gravasse, e tinha de gravar editando, cortando no VHS. Passava Bergman, Fellini, Truffaut, na Globo. Acho que a Cultura faz um trabalho legal, mas não tem a mesma audiência. A TV ainda é a maior influência da grande massa, impulsionada pela Globo e pela Veja, essas duas apontam os caminhos que muita gente segue. E segue porque tem sede, e acha que o que está lá é bom, e não vai experimentar uma coisa que não está lá. Mas acho que tudo isso pode estar mudando.

Fórum – Você começou com quadrinhos ali em 1985, 1986...

Mutarelli – Começo a publicar em 1988.

Fórum – Você acha que o leitor de 1988 era mais maduro ou o de hoje compreende mais os sinais e códigos?

Mutarelli – Tem muito equivoco aí, essa coisa do quadrinho ter ido parar na livraria fez com que as pessoas achassem que o quadrinho é mais respeitado. Na verdade, o quadrinho deixou de ser uma coisa de massa. Não vende mais. Por vender menos, o único lugar em que cabia era na livraria, e para ir para a livraria teve de ficar mais bonito, com uma edição mais luxuosa. Toda revista pequena que a gente publicava, para chegar na banca, a tiragem mínima era de 30 mil exemplares. Hoje em dia, há grandes editoras publicando 2, três 3 exemplares. Isso encarece o preço, você tem de dar outra cara, daí vai para uma livraria.

Mudou muito o quadrinho, e nos anos 1980 tinha uma efervescência. Eu, que nunca gostei de super-herói, foi um momento em que saíram coisas incríveis, como Frank Miller, Alan Moore... Saía muita coisa, então você lia de tudo. Hoje em dia, tem uma tendência a virar só o quadrinho autobiográfico, com uma corzinha, uma capinha, tudo muito igual. Precisa sair disso também. Quando fiz o Diomedes, foi porque eu sentia falta de ler alguma coisa de gênero, não tinha mais, a não ser os super-heróis.

Fórum – Você acha que os quadrinhos de super-heróis educaram mal o leitor?

Mutarelli – Tem coisas que são legais, mas ajudou muito a criar esse estigma que o quadrinho tem, que é uma coisa boba, para moleque. Porque sempre teve quadrinho autoral, mas não chegava nas pessoas, por causa do estigma. Acho que é importante que tenha também, como entretenimento, como no cinema.

Fórum – Queria que você falasse um pouco sobre a figura do pai, muito presente em sua obra.

Mutarelli – É uma coisa que até o Luiz Schwarcz brincou comigo, dizendo: “Chega né?” Não é uma coisa que está resolvida, é algo muito importante pra mim. Nesse livro que estou trabalhando agora, estava omitindo o pai do protagonista, mas aí falei que não sou eu se não tiver o mínimo dessa relação, voltei nos capítulos e já entrou o pai. Isso vem da minha relação com meu pai, que foi a pior possível num momento e que se tornou muito boa com o tempo.

Fórum – A “pior possível” deriva do quê?

Mutarelli – Meu pai era policial, do tempo da ditadura. Para ele, para a polícia, todo mundo é bandido. Ele era muito agressivo, muito abusivo, autoritário, mas foi mudando com o tempo. O cinema, os filmes foram mudando ele, nos aproximando.

Fórum – A arte muda uma pessoa?

Mutarelli – Muda. Muda mesmo. A arte tira as pessoas de um transe, de um consumo, muda o seu ritmo, sua frequência, atrai pessoas que se relacionam com essa frequência, e salva, sim. Você vê na periferia isso. Ontem, meu filho pediu para assistir com ele um documentário sobre a vida do Eminem [rapper americano], de quem ele gosta, e é isso, o cara foi totalmente salvo pela arte.  F