Luiz Eduardo Soares: “Ou haverá segurança para todos, ou ninguém estará seguro”

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Uma das principais referências sobre o tema da segurança pública no Brasil, o antropólogo e escritor Luiz Eduardo Soares é um árduo defensor da desmilitarização da Polícia Militar e da legalização das drogas. Em entrevista, o ex-Secretário Nacional de Segurança Pública falou sobre a atual conjuntura política do país, as rebeliões nos presídios e a greve da Polícia Militar, além de apresentar um possível cenário nas eleições de 2018 e medidas para estancar o nível de violência no país. Confira Por Eduardo Sá, no Fazendo Media Uma das principais referências sobre o tema da segurança pública no Brasil, o antropólogo e escritor Luiz Eduardo Soares é um árduo defensor da desmilitarização da Polícia Militar e da legalização das drogas. Foi um dos elaboradores da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51, que aponta para a mudança radical da estrutura das polícias e tramita no Congresso desde 2013. Atualmente está dedicado aos seus livros e roteiros de cinema, além de dar aula na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e administrar seu blog. O pesquisador foi secretário no governo do Rio, quando foi exonerado por Garotinho nos anos 2000 ao combater a banda podre da polícia, e no governo Federal durante o primeiro mandato de Lula. É coautor do livro Tropa de Elite, cujo filme gerou um público de milhões de telespectadores. Na entrevista, ele fala sobre a atual conjuntura política do país, as rebeliões nos presídios e a greve da Polícia Militar. Apresenta um possível cenário nas eleições de 2018 e medidas para estancar o nível de violência no país que, segundo ele, está associada ao nosso racismo estrutural de cor e classe e à tradição autoritária herdada da ditadura. Quais as suas impressões sobre a atual conjuntura, de tudo que vem acontecendo nos últimos anos e a instabilidade política? Sua gênese mais recente aponta para a natureza corrupta e manipulativa da decisão pelo impeachment: um enorme movimento corrupto de gangues e políticos que se interessavam por livrar-se da Lava Jato convocando o grupo do PMDB, que é o mais experiente nessa área de corrupção e proteção contra investigações. E por outro lado aplicar uma política de restrição ou desconstituição dos direitos sociais, trabalhistas, etc. Uma intervenção de natureza criminal e econômica com uma face política dramática. Trata-se de um pacote ultra liberal que não encontraria na população apoio eleitoral e, portanto, não teria legitimidade, autoridade moral e política, que provém das urnas na decisão popular. Foi uma manobra esperta, que visou agregar o apoio da grande mídia e da elite em torno da presidência interina do Michel Temer e do seu grupo para a implantação dessas políticas.
[caption id="attachment_21625" align="alignright" width="300"] “O PT não inventou nem é o principal núcleo de corrupção, que está nos partidos tradicionais, sobretudo no PMDB, mas não ficou imune e acabou se rendendo a velhas práticas sempre em nome da governabilidade e manutenção do poder”, afirmou. Foto: Leandro Neves.[/caption]

Evito a palavra golpe, apesar de ter todas essas características indefensáveis e ilegítimas, porque me parece que sua narrativa tende a obscurecer a responsabilidade do PT. O Temer era vice, eles foram capazes de promover esses políticos a pessoas chaves do seu governo. E o desastre econômico por mais que tenha também múltiplas causas internacionais e outras internas, que até independem da administração pública, foi basicamente suscitado ou promovido pelo primeiro mandato de Dilma. Numa situação de crise muito evidente ela garante nas eleições de 2014 que o Brasil continuaria sua trajetória de crescimento e redução de desigualdades, já sabendo que isso não era verdade. Logo depois toma medidas pertinentes ao programa do adversário, e se afasta da sua própria base eleitoral com essa traição política. Não consegue a confiança que buscava das elites ao aliar-se aos seus adversários para manter-se no poder diante de uma conjuntura tão negativa. O PT não inventou nem é o principal núcleo de corrupção, que está nos partidos tradicionais, sobretudo no PMDB, mas não ficou imune e acabou se rendendo a velhas práticas sempre em nome da governabilidade e manutenção do poder. Esse tipo de postura liquefez sua grande legitimidade popular e social, e acabou concorrendo para a produção da crise. É uma situação muito complexa. Está se constituindo uma polarização pró e contra Lava Jato, e boa parte da esquerda está anti Lava Jato o que vai promover uma aliança dos operadores do crime com os garantistas que têm em mente a defesa da democracia. Acho que a única saída política e ética é separar o joio do trigo. Qual a sua opinião sobre a Lava Jato? Promoveu grandes avanços na recuperação da legitimidade da justiça, que pela primeira vez começou a olhar para o andar de cima . Foi capaz de identificar elos criminosos atravessando o Estado brasileiro e núcleos econômicos poderosos, entretanto ocorreram procedimentos inaceitáveis, violações de direitos e abusos. Precisa distinguir o que é abuso para evitar a sua repetição, do que é legítimo e o que foi impositivo. Definir o juiz Sergio Moro como arque inimigo, representante do imperialismo, é um atraso de vida extraordinário e serve ao pior do legado do PT. O partido quer aproveitar a situação pra lavar suas mãos, sendo que elas estão sujas. Ao invés da autocrítica, prefere eleger mais um bode expiatório: a Lava Jato e o Moro. Isso não significa que eu concorde com iniciativas absurdas, como a divulgação daquele áudio do Lula e a Dilma. Qualquer posição polarizada e muito simplória nos levaria de um lado a aceitar e definir a Lava Jato como a salvação nacional e extrair daí consequências anti políticas graves, que acabam incitando golpes, intervenções militares e comportamentos fascistas. Também seria um equívoco deixar de ver os abusos e violações, mas negar a operação me parece um despropósito total. Vendo a condução da Lava Jato e as pessoas que estão sendo presas e delatadas para aonde vamos até as eleições de 2018? O problema é que houve tal judicialização da política e uma interpenetração entre cálculos políticos, trajetórias, processos propriamente políticos e procedimentos judiciários investigativos e policiais, que se torna inviável qualquer antecipação. A Lava Jato pode provar com provas pesadas um personagem chave, e aí toda a sua prospecção cai por terra. A direita está desesperada, porque não obstante todos os seus pecados o que houve com o PT foi um verdadeiro massacre midiático e político para generalizar a crítica a toda a esquerda e pulverizar um passado recente e a memória popular. O primeiro mandato do Lula foi o mais feliz, prodigioso, positivo dos mandatos presidenciais que conhecemos na nossa história. Não à toa o Lula sai com 80% de aprovação ou mais, isso não é trivial. O que a direita está tentando é dissipar essa memória, daí essa brutalidade simbólica. Mas não é fácil destruir uma memória que foi profundamente enraizada nas experiências marcadas pela redução da desigualdade. O Lula continua sendo o grande personagem, mas no segundo turno sua vitória dependeria muito do adversário. Tem o Alckmin, que pode vir a ser pego também na Lava Jato, mas até agora passou ao largo e elegeu o prefeito em São Paulo sem passado político e mostrou sua força. E se ele conta com o apoio do PSB, que está sendo negociado há muito tempo, a coisa pode vir a se complicar no sentido de que o PSDB tem outros candidatos: Serra e Aécio. Se o PSDB não lhe der a legenda pode concorrer pelo PSB. Uma grande incógnita é a Marina, que é a pessoa mais significativa que sobrevive a essa tormenta. Vai receber um atestado de honestidade, porque sai incólume desse processo que abala os políticos. Mas é de um partido muito frágil e recente, embora tudo possa mudar por causa da Lava Jato. E ainda tem o Ciro Gomes que está em campanha tem tempo e é uma inteligência refinada com uma extraordinária capacidade de persuasão. Pode ser que consiga atrair as esquerdas numa grande frente, sobretudo se o Lula não for candidato. Mas sua intolerância e prepotência intelectual podem ser problemas graves, no momento em que precisamos apostar no diálogo para enfrentar e dissolver o ódio que emperra os avanços no país. Você acha que esse fenômeno de várias rebeliões simultâneas tem alguma correlação na pirâmide social com o momento que vivemos?
[caption id="attachment_21626" align="alignleft" width="300"] “A grande maioria é pobre e negra, é o racismo estrutural operando seja na dimensão da classe ou da cor”, disse em relação aos presos. Foto: Leandro Neves[/caption]

Minha impressão, que vem da intuição e da minha experiência, diz que sim. Os contextos são sempre relevantes. Existe a articulação das organizações criminosas com tentáculos que se espraiam pelo Brasil, de modo que a explosão aqui pode eclodir noutra acolá por atender a uma mesma liderança e condução “política”. Não é só uma determinação social e econômica, há também uma espécie de acerto político. No sistema penitenciário o mais relevante é que o Estado comete o principal dos crimes ao não aplicar a Lei de Execuções Penais (LEP), que foi promulgada em 1984 e até hoje não foi cumprida no Brasil. É a base a partir da qual temos que pensar o sistema penitenciário e extrair daí conseqüências. Os presos estão cumprindo essas penas mais o excedente ao contrair tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis, sofrendo torturas psicológicas ou físicas, vivendo em situações absolutamente desumanas como beber água de privada, etc. Isso não está escrito na pena, mas está incluído na sentença. Estão sofrendo uma sobreposição de penas, que são crimes perpetrados pelo Estado. Cerca de 40% dos presos estão em prisão provisória no Brasil, oficialmente temos 640 mil presos mas já se diz 700. Tínhamos cerca de 239 mil em 2002: quase triplicou, temos a quarta maior população carcerária e a que mais cresce no mundo. Você atribui esse cenário a que? A grande maioria é pobre e negra, é o racismo estrutural operando seja na dimensão da classe ou da cor. As bases da polícia estão aí representadas e espelhadas. Temos 12% cumprindo pena por homicídio doloso, por que tão pouco? Temos 58 mil homicídios dolosos por ano no país, um dos mais absurdos do mundo, uma tragédia, e mais de 90% deles não são nem investigados. São registrados, que é de lei, abre se o inquérito mas não há nada a dizer. Então temos essa taxa de impunidade em relação ao crime mais grave: é como se o atacante oficial perde 9 de cada 10 penaltis e é o cobrador oficial. Isso é um escândalo. Alguns deduzem que o Brasil é o país da impunidade, mas temos a quarta população carcerária do mundo e é a que cresce com maior velocidade. Uma inversão completa de valores, isso mostra que há outras prioridades: temos 28% por transgressões associadas à negociação de substâncias ilícitas, que é o subgrupo que mais cresce. Temos a ação perversa da Lei de Drogas, que é um dos nossos maiores problemas. O tipo de focalização seletiva na persecução criminal e na repressão policial é iníqua, injusta e contrária à constituição. A polícia mais numerosa que está presente 24 horas no Brasil é a militar, a qual é proibida de investigar. Mas é instada a produzir, cuja produtividade é entendida por prisão e apreensão de armas e drogas. E as mortes também, não? Há também a brutalidade policial letal, que é outro elemento importante porque o Brasil é um dos campeões mundiais: nossos policiais estão entre os que mais morrem e são os que mais matam no mundo. Mas no campo da legalidade, a PM é proibida de investigar e instada a prender. Ela tem que ser produtiva porque os governos pressionam, os comandos, a população, a mídia, então as nossas prisões estão sendo preenchidas com 85% de prisões em flagrante delito sem investigação. A lei de drogas viabiliza esse crime seletivo, e com isso não são os grandes operadores do negócio das drogas no mundo e no Brasil, aqueles que lavam dinheiro, os que são presos. Prendemos os aviõezinhos, os que operam nas ruas, os vapores, os vendedores para o consumo do varejo. Os que fazem um ganho para sobreviver e não têm vínculo orgânico com o crime organizado. Jovens com baixa escolaridade, negros, sem comportamento violento ou vinculados às estruturas organizadas. Ficam 5 anos presos porque venderam maconha, e para sobreviver se organizam nas facções, que exigem depois lealdade na saída. Estamos plantando uma mina sobre os nossos pés, gastando muito para tornar as pessoas piores e a sociedade mais violenta. É uma injustiça tremenda com esses jovens, que acabam tendo suas carreiras criminosas financiadas, impulsionadas e induzidas pelo Estado. Continue lendo no Fazendo Media.