Luta e lugar da cultura, por Antonio Albino Rubim

Cabe repensar o lugar da cultura no processo de transformação e desenvolvimento do país. Impossível ela continuar marginalizada e não ter centralidade nos modelos de desenvolvimento e transformação social brasileiros.

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Cabe repensar o lugar da cultura no processo de transformação e desenvolvimento do país. Impossível ela continuar marginalizada e não ter centralidade nos modelos de desenvolvimento e transformação social brasileiros Por Antonio Albino Canelas Rubim* A democracia brasileira, com destaque para os anos pós-2003, deixou de ser apenas formal e ganhou um caráter substantivo, com o reconhecimento da diversidade do país, a expansão da liberdade e a efetivação, mesmo com limitações, de direitos individuais, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais. A mudança, ainda que realizada em perspectiva conciliadora e pacífica, despertou o ódio da casa grande. Ela reafirmou seu caráter antidemocrático, através do recurso a mais um golpe, agora com roupagem midiático-jurídico-parlamentar. O processo de luta contra este golpe, transvestido de impeachment, apesar de doloroso e muito grave para nossa vida, reanimou politicamente parcelas relevantes da população, em especial para a defesa da jovem democracia brasileira. Corações e mentes assumiram a palavra de ordem: “não vai ter golpe”. Importante assinalar que vários destes segmentos estavam afastados do mundo político e distantes do governo Dilma. No campo cultural, esta situação foi marcante. A gestão de Lula, com Gil e Juca no Ministério da Cultura, permitiu uma aproximação com comunidades culturais, ainda que setores da intelectualidade tenham se afastado do governo por divergências com outras condutas e políticas desenvolvidas. O patamar rebaixado, nacional e internacional, vivido pelo Ministério da Cultura no governo Dilma ocasionou o distanciamento também de agentes culturais que haviam se identificado com as políticas culturais, antes instaladas. A luta contra o “impeachment” teve e tem muitos protagonistas. Os atores culturais, com exceções irrelevantes, tomaram firme posição em defesa da democracia, independente da visão acerca do governo Dilma. Eles se mobilizaram, ocuparam espaços e inventaram modalidades de luta. Junto com trabalhadores urbanos e rurais, juventude e mulheres, a cultura assumiu lugar de vanguarda no enfrentamento do golpe midiático-jurídico-parlamentar em andamento. Não por acaso, sua mobilização obteve a primeira vitória significativa contra o governo interino ao reverter um dos muitos retrocessos anunciados nas suas horas iniciais: a destruição do Ministério da Cultura. A vitória pode ser exemplo e estímulo para a mobilização de outros setores e da sociedade, todos prejudicados por retrocessos. Esta conquista, descolada de outras também necessárias e da derrota imprescindível do governo interino, não assegura que políticas democráticas de diversidade cultural sejam retomadas, ampliadas e consolidadas. A composição do ministério expressou de modo contundente que este governo não aceita e acolhe a diversidade social e cultural brasileira. Nele não cabem políticas (democráticas) para jovens, mulheres, negros, comunidades LGBT, direitos humanos, ciência e tecnologia, comunicações, agricultura familiar, reforma agrária, dentre outras. O golpe midiático-jurídico-parlamentar em curso impõe que, além da luta cotidiana, os segmentos democráticos e populares sejam capazes de desenvolver análises críticas, consistentes e fraternas, dos erros e acertos que cometeram e que possibilitaram este ataque brutal à democracia no Brasil. A vital atualização e renovação do sistema político no país não pode ocorrer sem tais análises e as mudanças que elas operarem no modo de imaginar e fazer política. Dentre as muitas revisões críticas, cabe repensar o lugar da cultura no processo de transformação e desenvolvimento do país. Impossível ela continuar marginalizada e não ter centralidade nos modelos de desenvolvimento e transformação social brasileiros. Como disse o ministro Gilberto Gil, a cultura não pode continuar a ser concebida como a cereja do bolo. Afinal de contas, neste processo de luta, ela não só reafirmou sua relevância política, como demonstrou que a mudança da sociedade não pode prescindir de políticas culturais, que assegurem e consolidem a hegemonia de culturas e valores radicalmente democráticos. *Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura e professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA Foto de capa: Arnaldo Saldanha