Maconheiros, uni-vos contra a desinformação

Com o objetivo de reunir em um só espaço dados históricos e científicos, notícias, coletivos e organizações relacionadas à cultura canábica e às drogas em geral, o 420 App foi lançado no mês passado.

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Com o objetivo de reunir em um só espaço dados históricos e científicos, notícias, coletivos e organizações relacionadas à cultura canábica e às drogas em geral, o 420 App foi lançado no mês passado. Para criador do aplicativo, essa é uma forma de "empoderar o usuário dentro e refinar o seu discurso, até para quebrar mitos que circulam como se fossem verdades absolutas"

Por Anna Beatriz Anos e Ivan Longo

[caption id="attachment_60253" align="alignleft" width="204"](Divulgação) (Divulgação)[/caption]

No último mês, chegou à Google Play Store, loja virtual para Android, o 420 App, primeiro aplicativo em língua portuguesa voltado ao público usuário de drogas. Focado sobretudo na cultura canábica, o 420 reúne em um só espaço dados históricos e científicos, notícias, coletivos e organizações relacionadas ao tema.

“Criar um aplicativo me daria a oportunidade de abordar esse assunto [drogas] de forma responsável, sem julgamentos morais e preconceitos, pautados nos princípios da redução de danos, que acredito serem os mais adequados para se lidar com a questão das drogas dentro da sociedade”, explica Guilherme Storti, idealizador do app.

Storti, que há mais de dois anos discute a problemática do uso de substâncias ilícitas no Brasil, a ferramenta pode ajudar a empoderar os usuários, além de refinar o seu discurso, até para quebrar mitos que circulam como se fossem verdades absolutas, como aquele de que maconha mata neurônios, ou de que todas as pessoas que fumam crack se tornam dependentes.”

Ainda de acordo com Storti, a versão para iOS está sendo desenvolvida e deve ser lançada em breve. Leia, na íntegra, a entrevista com o criador do aplicativo.

Fórum - O que te motivou a criar o 420 App?

Guilherme Storti - A temática das drogas sempre foi uma leitura que me agradou muito e, em meados de 2012, tive a oportunidade de começar a trabalhar diretamente com redução de danos. Após estar inserido profissionalmente nessa área, muitas portas começaram a se abrir, e então fui convidado a assinar uma coluna em um blogue voltado para usuários de maconha, o Hempadão – Laricas de Informação. Em função dessa aproximação com o Hempadão, comecei a pesquisar mais sobre espaços virtuais de troca de informações entre usuários de drogas até que cheguei no universo dos aplicativos para dispositivos móveis e me dei conta de que não existia nada em língua portuguesa voltado para o assunto.

Achei muito válida a ideia de investir em um novo canal de interação entre usuários de drogas no Brasil, tendo em vista que se trata de um assunto que ainda é abordado de forma moralista e irresponsável. Criar um aplicativo me daria a oportunidade de abordar esse assunto de forma responsável, sem julgamentos morais e preconceitos, pautados nos princípios da redução de danos, que acredito serem os mais adequados para se lidar com a questão das drogas dentro da sociedade. Acredito muito no poder da informação para a prevenção.

Fórum - No Brasil, as drogas – com destaque para a maconha – ainda são um grande tabu, e existe uma verdadeira guerra no sentido de combatê-las. De que forma o aplicativo pode ajudar o usuário a obter informação sobre como utilizá-las da melhor maneira, além de tomar conhecimento sobre seus direitos (tendo em vista as recentes detenções de cultivadores caseiros no país)?

Storti - O aplicativo conta com diversos espaços que ajudam o usuário a lidar com esse contexto de forma mais lúcida e consciente. Além de dar orientações de redução de danos para o uso de diversas drogas, também apresenta uma aba dedicada aos direitos dos usuários, trazendo a lei 11.343/2006 [mais conhecida como "lei de tóxicos"] na íntegra e uma cartilha resumida de "Direitos dos Usuários".

Podemos dizer que as drogas (ilícitas) são um "tabu parcial", já que faz parte da realidade de inúmeras pessoas que são afastadas da dignidade por conta da criminalização de uma conduta que não gera nenhum dano ao outro, mas – se muito – apenas ao próprio usuário. De igual sorte, estar por dentro do que diz a lei (bem como os mais recentes julgados sobre o tema, a famosa jurisprudência) é uma forma de capacitar e empoderar as pessoas envolvidas na dinâmica (produção, comércio e [ab]uso), e dar a possibilidade de dialogar sobre a lei. Afinal, as leis determinam a atuação do governo e o governo é eleito e financiado pela população. Logo, a população precisa participar desta construção, bem como ser respeitada e tutelada pelo governo. A finalidade de existirem leis, governo e administração pública é que eles atuem para que o indivíduo se realize, e não para persegui-lo e marginalizá-lo por escolhas que este faz em sua intimidade, em sua vida privada. Estas escolhas não são apenas em relação às drogas, mas como à união homoafetiva, aborto etc.

Guilherme Storti - Acredita que o app possa ajudar a elevar o nível do debate sobre a maconha e demais drogas no Brasil?

Storti - Com certeza. Vejo que o principal problema relacionado a esse tema é a falta de informação e a manipulação da grande mídia acerca do que é publicado para a população. Ter uma ferramenta alternativa e independente ajuda a empoderar o usuário dentro do debate e a refinar o seu discurso, até para quebrar mitos que circulam como se fossem verdades absolutas, como aquele de que maconha mata neurônios, ou de que todas as pessoas que fumam crack se tornam dependentes. Acho que o 420 App, e outros aplicativos do gênero, podem compor um papel muito importante no processo de politização do usuário de drogas e esclarecimento daqueles que ainda não acumulam conhecimento suficiente para se posicionar politicamente sobre o tema.

Fórum - Há a expectativa de que o aplicativo seja utilizado por não usuários, ou que possa ser empregado em outras esferas, como o meio acadêmico?

Storti - Sim. O aplicativo não se limita às pessoas que fazem uso de maconha ou outro tipo de droga. A intenção desse espaço é de levar informação para aqueles que se interessam a entender mais sobre essa discussão tão polêmica acerca do uso de drogas. Com certeza queremos empregar o aplicativo dentro da dinâmica acadêmica, trazendo dados, pesquisas, estudos e também disponibilizando dados para produções acadêmicas. O mais importante para toda a equipe é que não haja nenhum tipo de barreira para o 420 App, queremos circular da população de rua à academia, passando por todos os caminhos possíveis para que as informações cheguem aos usuários.

Fórum - Em algum momento, durante o processo de construção do aplicativo, foi acusado de fazer apologia à droga? Acha que uma situação como essa pode acontecer daqui pra frente – se sim, como pretende lidar com isso?

Storti - Até o momento, não (risos). Mas acho que isso é um perigo iminente para aqueles que têm um discurso político anti-proibicionista. Temos setores muito conservadores na sociedade e não me espantaria ser processado por apologia. Caso isso aconteça, temos uma assessoria jurídica muito competente para cuidar de qualquer problema legal que envolva o aplicativo. Estamos bem preparados.

Fórum - Como enxerga a questão da legalização da maconha no Brasil, sobretudo após a Anvisa ter liberado o canabidiol (CBD) para uso médico? Acredita que seja um primeiro passo para uma possível mudança da política de drogas?

Storti - O caso da Anvisa com o CBD é uma questão muito delicada. Por um lado podemos considerar uma vitória, ou um passo a frente na luta, pois abre um precedente muito bom para continuarmos avançando com o debate. Por outro lado é uma ação bastante questionável por parte da Anvisa, tendo em vista que ela autorizou um canabinóide que proporciona tratamento a um número bem restrito de doenças, se formos comparar aos benefícios do THC que já foram estudados e documentados. Regulamentar o CBD e deixar o THC restrito não adianta nada, assim como deixar os outros canabinóides proibidos. Estamos falando de uma planta com uma série de propriedades medicinais, então acredito que toda a planta deva ser regulamentada para que seja estudada adequadamente, para sabermos até onde essas propriedades poderão nos ajudar com suas finalidades medicinais. Enquanto pacientes tiverem que viver escondidos para ter um tratamento médico adequado, pouco vamos avançar na ciência.

Outro aspecto que preocupa bastante aqui no Brasil é o interesse da indústria farmacêutica em sintetizar o CBD em sua forma isolada para criar uma patente e assim proporcionar lucros exorbitantes. A indústria farmacêutica tem investido pesado no lobby para o CBD, em função do valor do óleo concentrado utilizado para os tratamentos de algumas doenças. Patentear essa substância tiraria do paciente a opção de escolher a melhor forma de tratamento para si.

Entretanto, ainda acho que a melhor solução para a questão da maconha medicinal é a regulamentação do autocultivo caseiro. Vejo o cultivo como a melhor forma do paciente buscar o melhor tratamento possível pelo preço mais justo, tendo em vista que o óleo importado custa um valor muito alto e por isso se torna pouco acessível. Dar ao paciente a oportunidade de plantar contribui com a melhora da sua qualidade de vida e autonomia na condução do seu tratamento de saúde.