Movimento de artistas quer democratizar o mercado fonográfico pela Internet

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Não é de hoje que o mercado fonográfico vive uma realidade baseada em dois pólos bem distintos. De um lado, uma minoria de artistas fabricados pelas grandes gravadoras que obtêm prestígio ao serem reproduzidos em programas de grande audiência em emissoras de rádio e TV e ocupam a maioria das prateleiras das lojas de discos. De outro, milhões de músicos cada vez mais conhecidos por um disperso público na internet buscando alternativas para viver da produção artística.

Nos últimos anos, este embate foi fortemente remodelado pelas mudanças por que passa o setor em razão da popularização das tecnologias de produção e da ascensão da Internet como meio de distribuição e consumo de músicas. Este cenário coloca em xeque o modelo de negócio das grandes gravadoras e abre um desafiador caminho para a cultura livre no mundo e no Brasil.

Neste quadro, um conjunto de artistas e ativistas pretendem transformar incerteza em possibilidades, buscando alternativas à ditadura das grandes gravadoras e dos meios de comunicação de massa. Eles se reuniram em Brasília, no último dia 15, para iniciar a construção de um movimento denominado “Música Para Baixar” (MPB). De acordo com Fernando Anitelli, da Trupe Teatro Mágico, de São Paulo, uma das promotoras da atividade, a idéia do MPB é uma reação à percepção de que a indústria cultural no Brasil se constituiu como um “sistema muito engessado”.

Os integrantes do movimento MPB apostam na crise do modelo dominante para gerar formas mais democráticas de produção e distribuição de músicas. Segundo dados da Associação Brasileira dos Produtores de Discos, em 2007, a venda de fonogramas digitais via internet no mundo cresceu 40%, movimentando US$ 2,9 bilhões e alcançando cerca de 15% do mercado. Já no Brasil, o crescimento foi de 157% no mesmo ano, com este segmento arrecadando R$ 24,5 milhões e chegando a 8% do mercado nacional.

“Embora esses números pareçam muito otimistas, os lucros auferidos pelas vendas digitais ainda não são suficientes para compensar os prejuízos das gravadoras nas vendas de suportes físicos como CDs ou DVDs”, diz o professor Mauro Rocha Côrtes, da Universidade Federal de São Carlos, no artigo “A cauda longa e a mudança do modelo de negócio no mercado fonográfico: reflexões acerca do impacto das novas tecnologias ”.

Um novo modelo para as novas tecnologias

Na opinião do rapper brasiliense Gog, que fez parte da mesa de abertura do evento do movimento MPB, a crise das gravadoras não transforma por si só a relação desigual imposta pela indústria cultural no país. “Engana-se quem pensa que eles fecham no prejuízo. O Caribe está garantido pra eles”, brincou, referindo-se às grandes corporações do mercado fonográfico.

Por isso, acrescentou, é fundamental que o movimento MPB promova a união de artistas para a constituição de um movimento cultural e político no Brasil. “Não temos que fazer música independente. O Lenine falou em fundar a música dependente brasileira, um dependendo do outro para nos fazermos fortes. Se nós não tivermos um plano político para apresentar como proposta alternativa, ele [o capitalismo] vai nos engolir”.

O compositor gaúcho Richard Serraria sugeriu assuntos com os quais o movimento MPB deve se preocupar. “Para avançarmos, precisamos debater a perseguição às rádios comunitárias, a utilização do creative commons [licença que flexibiliza a gestão dos direitos autorais], a geração de renda e a sustentabilidade dos agentes culturais e a internet como plataforma base”. Ele acredita que a formação crítica dos músicos contribui para a transformação do setor. “A principal questão é pensar de maneira crítica a indústria fonográfica, o monopólio da mídia de massa, o cerceamento da internet. A idéia é lançar o FMPB para pensar a música, a economia da cultura e da criatividade dentro desse contexto”, completou.

Economia solidária da cultura

Para levar a cabo esta empreitada, um dos principais desafios é a reorganização da cadeia produtiva e do modelo econômico do setor musical. Por conta disso, o evento preocupou-se também em aproximar o debate da cultura livre das iniciativas e práticas da economia solidária. Convidado para introduzir a perspectiva econômica na discussão, Diones Manetti, diretor de fomento da Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (Senaes-MTE), defendeu que estas duas pontas do debate estejam conectadas.

“Nós estamos convencidos de que a mudança de um modelo de organização da sociedade, de mudança da economia, passa por uma mudança de padrão cultural. Precisamos entrar na cultura para discutir valores”, pontuou. Ele também incitou os músicos a pensarem maneiras alternativas de sustentabilidade, fundadas a partir dos princípios da economia solidária: cooperação, autogestão e solidariedade.

Ainda que não se configurem a partir da lógica da economia solidária, as gravadoras independentes são vistas por parte do meio musical como espaços que vêm amadurecendo do ponto de vista criativo e organizacional, apresentando participação cada vez mais relevante no mercado musical. A ABMI (Associação Brasileira da Música Independente) estima que cerca de 15 milhões de discos independentes sejam vendidos anualmente no Brasil, o que corresponderia aproximadamente a 25% do mercado.

Direito autoral X liberdade do conhecimento

Considerado uma das formas de garantir a sustentabilidade do artista, o direito autoral também foi foco do debate realizado em Brasília. Na opinião de Rafael Oliveira, da Coordenação de Direito Autoral do Ministério da Cultura (MinC), grande parte do abuso das gravadoras, editoras e produtoras, que algumas vezes conquistam até 100% do direito autoral do artista, se dá pela falta de conhecimento. “Muitos problemas poderiam ser resolvidos se houvesse um trabalho de formação e discussão, conscientizando o artista sobre os direitos relativos aos seus contratos”, afirmou.

Outro problema, na visão do Ministério, é o atual marco legal do setor (Lei 9610/98), que não atende a realidade das novas tecnologias e mantém o desequilíbrio na relação entre autores e investidores/intermediários. A legislação referente ao direito autoral também foi criticada pela sua filosofia.

Na opinião de André Caldas, militante do movimento de software livre, há um problema no entendimento de que o autor deve lucrar posteriormente com sua obra. "Acho que tudo poderia ser economicamente viável se o autor vivesse de produzir, e não do monopólio sobre o que foi produzido. No caso de software eu tenho certeza de que é possível. Eu trabalho com software e recebo para produzi-lo. Não tenho nenhuma esperança de ficar rico coletando pedágio de todos os que usufruirão do meu trabalho. Já recebi, já estou satisfeito. Quanto mais a sociedade se beneficiar do meu trabalho, melhor", exemplificou.

Everton Rodrigues, da Associação de Software Livre (ASL), argumentou que a sociedade em rede é baseada no compartilhamento e na apropriação da cultura de forma livre e descentralizada, contribuindo para potencializar o acesso e o desenvolvimento do conhecimento da humanidade. “É uma metodologia que deu certo na tecnologia. Queremos levar essa prática para outras áreas da sociedade, inclusive para a música”. Rodrigues também sugeriu que os militantes do movimento de software livre contribuam com a distribuição e a difusão da produção musical livre. “Podemos montar servidores com ferramentas de gestão para hospedagem e streaming [tecnologia utilizada para ouvir músicas na Internet] de músicas livres”.

O desafio da distribuição e da difusão também foi colocado por Adriano de Ângelis, funcionário da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Ele lembrou que as TVs Comunitárias, Educativas, Universitárias e Públicas também passam por dificuldades em razão das limitações da indústria musical e teriam grande interesse em conteúdos livres. “Temos que organizar esse diálogo, propor estrategicamente algumas parcerias e definir quais modelos de colaboração seriam possíveis”, apontou. De Ângelis também indicou como uma ação possível a construção de ferramentas próprias de divulgação dos artistas, principalmente na Internet.

Internet sob controle do mercado e do Estado
Fernando Rosa, conhecido no meio musical como Senhor F, concordou com a necessidade de ferramentas próprias e denunciou o controle por parte dos grandes oligopólios da indústria cultural de servidores até então “livres” e que durante algum tempo contribuíram como espaço de divulgação da música independente, como o MySpace e o Youtube.

“O MySpace fechou um acordo com as quatro majors [EMI, SONY-BMG Music, Universal Music e Warner Music] e virou uma grande vitrine para as mesmas bandas de sempre patrocinadas pela indústria ?jabazeira? [termo usado em referência ao ?jabá?, pagamento feito por uma gravadora a uma estação de rádio para divulgação de um determinado artista]”, lamentou.

Segundo Rosa, a disputa é “pesada”, uma vez que os monopólios da indústria fonográfica deixaram de ser estruturados a partir de redes de rádios e TVs nacionais, incorporando meios de alcance global, como o MySpace e o YouTube. Com isso, os sistema comandado pelas majors “se tornará um cartel muito mais poderoso”. Ele defendeu a criação de alternativas, uma “guerrilha digital”, bem como a intervenção nos marcos legais gerais para garantir liberdade na rede.

Outra tentativa de controle da Internet citada no encontro foi o substitutivo do projeto de Lei 89/2003, de autoria do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que ficou conhecido como “Projeto de Combate ao Cibercrimes”. Aprovado no Senado Federal, o texto deverá ser votado em breve na Câmara dos Deputados. Os participantes se mostraram preocupados com mecanismos previstos no projeto que abrem a possibilidade de criminalização de diversas práticas importantes na cibercultura, além de comprometer iniciativas de democratização do acesso da Rede Mundial de Computadores.

Próximos passos

Para os organizadores da atividade, a expectativa é a formação de um movimento que envolva artistas e ativistas a partir da convergência de pautas e experiências. Está prevista uma atividade ampliada do movimento no Fórum Internacional de Software Livre (FISL), que acontecerá em junho em Porto Alegre, e encontros regionais em outros estados brasileiros. Fabrício Noronha, da banda capixaba Sol na Garganta do Futuro, anunciou que irá propor um encontro do movimento MPB durante o Fórum de Mídia Livre, que deve ocorrer em agosto na cidade de Vitória (ES).

“Precisamos agora ampliar o debate, agregar gente. Vamos promover encontros regionais aproveitando a circulação dos grupos envolvidos no Fórum e eventos correlatos visando shows conjuntos, festivais, encontros, debates, oficinas em universidades, pontos de cultura casas brasil, fortalecendo experiencias coletivas e colaborativas para além da internet”, disse.

Ao final, os participantes aprovaram um conjunto de ações a serem encaminhadas desde já, entre as quais: construir espaços e atividades de formação para artistas sobre a legislação cultural; construir servidores com ferramentas de gestão para hospedagem de streaming conteúdos livres; combater o controle da internet e defender a internet pública com controle social; lutar por um novo arranjo produtivo da cultura; envolver-se na agenda da aprovação da lei de controle da internet; defender a criminalização do jabá; articular o Festival Música Para Baixar Porto Alegre durante o FISL e convocar ativistas e artistas para participar das etapas estaduais e nacional da Conferencia Nacional de Comunicação.

Originalmente publicado no Observatório do direito à Comunicação