Não se aprende só na sala de aula

Escrito en NOTÍCIAS el

A educação integral está na pauta do dia quando se fala em alternativas para os problemas educacionais do país, mas o termo abriga definições e experiências diversas

Por Por Nicolau Soares   Leonardo Lopes da Silva tem dez anos de idade e passou, neste ano, dois meses que ele considerou muito chatos. “Eu ficava em casa e não tinha nada para fazer, queria mesmo era ir pra escola”, conta. Leonardo se refere ao período das férias, em que sua vontade era ir ao Eremim, projeto de educação complementar do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, localizado no Rochdale, bairro carente da cidade. Lá, Leonardo e outros 229 alunos, entre 7 e 21 anos, recebem cursos de música, dança, grafite e praticam esportes. Os mais velhos, a partir dos 16 anos, recebem aulas de comunicação digital, em que aprendem a editar vídeos e construir websites, e de gestão solidária, na qual trabalham conceitos de cooperativismo, visando a desenvolver habilidades que ajudem a encontrar uma carreira profissional. “A idéia é fazer o que a escola não faz”, resume Mario de Souza Costa, coordenador educacional do Eremim. “Os conteúdos escolares são uma parte da educação. Tem outra parte que é conseguir mergulhar o educando naquilo que é construção cultural humana e que hoje está privatizada, elitizada.” O Eremim é uma de muitas entidades que trabalham com um conceito muito debatido, mas só agora aprofundado no Brasil: a educação integral. Nas últimas eleições, candidatos a diversos cargos (inclusive Lula e Geraldo Alckmin, que disputaram o segundo turno da eleição presidencial) levaram um tema antes restrito a círculos pedagógicos para a discussão pública. E não foi à toa. “O debate que está ocorrendo é o resultado de uma série de experiências isoladas que estão conseguindo vocalização na sociedade, o que já é um avanço”, avalia Maria do Carmo Brant de Carvalho, professora do programa de estudos pós-graduados em Serviço Social da PUC-SP e coordenadora geral do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). No entanto, se a discussão tem avançado, não se conseguiu ainda muita clareza na definição do conceito. O termo é usado para designar tanto experiências exclusivamente relacionadas ao ensino em tempo integral como a iniciada recentemente pelo governo paulista, quanto outras muito mais ousadas, como o projeto Bairro-Escola, da prefeitura de Nova Iguaçu (RJ). Mas o que significa, afinal, educação integral? “É ainda uma expressão vaga, mas que pode ser vista como uma reação à prática convencional, que é limitada”, analisa Elie Ghanem, professor da faculdade de Educação da USP. “Compreendemos que nos educamos em vários meios, mas quando falamos de educação reduzimos tudo à educação escolar, ao ensino da sala de aula”, sustenta. O entendimento mais recorrente para o termo é o de tempo integral, previsto no artigo 34 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Trata-se de ampliar o atendimento escolar nos períodos em que a criança não está na classe – os chamados contraturnos. É consenso entre educadores e entidades que trabalham o tema que o tempo oferecido não é suficiente e precisaria ser aumentado. No entanto, é preciso também tratar do conteúdo. “Esse aumento na duração deve promover o desenvolvimento integral da criança e do adolescente”, defende Paulo Roberto Padilha, diretor pedagógico do Instituto Paulo Freire. “Não é formação apenas na dimensão cognitiva ou no raciocínio matemático. O aluno precisa aprender a se relacionar, desenvolver mente e espírito, se relacionar com o mundo”, completa. Em escala internacional, o tema surgiu com força a partir de 1990, na Declaração Mundial de Educação para Todos, assinada durante a Conferência Mundial de Educação para Todos da Unesco, na Tailândia, que teve participação de 105 países. Lá, se afirma a necessidade de deslocar do centro da educação a idéia de “ensino”, quando alguém busca transmitir um conhecimento de forma unidirecional, para dar lugar ao de “aprendizagem”, que considera que aprendemos a todo tempo, por meio de experiências que acontecem fora do ambiente escolar. Outro ponto da declaração é aproximar a educação das necessidades reais das pessoas. No Brasil, as iniciativas de implantação da escola integral começam em 1950, com Anísio Teixeira, um dos maiores nomes da pedagogia nacional. É dele o projeto do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, criado no bairro da Liberdade, em Salvador, capital baiana. No centro, havia quatro escolas-classe de ensino primário, para um total de mil alunos cada, e uma escola-parque, com sete pavilhões destinados às práticas educativas complementares. Ali, os alunos não eram agrupados só pela idade, mas por suas preferências. O local abrigava um pavilhão de trabalho, um ginásio de esportes, um pavilhão de atividades sociais, um teatro com 560 lugares, uma biblioteca, um restaurante, além de lavanderia, padaria e banco. Além disso, os alunos recebiam alimentação e atendimento médico e odontológico. A concepção de Teixeira foi influenciada pelo pensamento de John Dewey, importante nome de um movimento de renovação da educação surgido no começo do século XX e que ficou conhecido como Escola Nova. No Brasil, o movimento visava a mudar o sistema educacional para formar pessoas que respondessem às novas relações sociais decorrentes das transformações pelas quais o país passava com a Revolução de 1930. Dessa forma, não buscava apenas renovar as práticas educacionais, mas trazia um projeto de renovação da sociedade brasileira que apontava para sua democratização. Projetado para ser um projeto piloto, o Centro Carneiro Ribeiro acabou sendo o único implantado, e o projeto acabou esquecido. Uma concepção semelhante só surgiria 30 anos depois, com a criação pelo governo do Rio de Janeiro dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps). O projeto foi criado por Darcy Ribeiro, um dos maiores antropólogos e pensadores da educação do país, eleito vice-governador fluminense na chapa de Leonel Brizola, em 1982. Construíram-se então cerca de 100 Cieps. Outros 400 foram erguidos na retomada do projeto em seu segundo mandato (1991-94), chegando a atender cerca de 20% dos alunos da rede estadual. Os Cieps também foram concebidos para atender os alunos em período integral, com atividades curriculares em um turno e atividades diversas, como esporte, recreação, leitura e atividades culturais, no outro. Também eram oferecidos atendimento médico e odontológico e refeições. Chegaram a ser construídas 300 residências para alunos em situação de risco. “A proposta era dar uma educação pública de qualidade com atenção a saúde e outras áreas. Mas o programa foi implementado de forma precária. O tempo integral ainda existe, mas não de forma a garantir uma vivência mais rica”, analisa Ana Maria Cavaliere, professora da faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que realizou pesquisas sobre tempo na escola e educação integral. Estas experiências têm ainda um parentesco próximo com os Centros Educacionais Unificados (CEUs), criados pela prefeitura de São Paulo durante a gestão de Marta Suplicy (2001-4). A diferença é que, em São Paulo, os equipamentos culturais e esportivos ficavam abertos para o uso da comunidade do entorno e não apenas para os alunos. “A educação integral está na concepção dos CEUs”, avalia Padilha. Outros programas recentes apresentam um conceito distinto. É o caso de Belo Horizonte, onde a implantação do tempo integral não levou à construção de grandes escolas. A idéia é aproveitar instituições e pessoas no território onde a escola está inserida e que possam contribuir de alguma forma para a educação das crianças e dos adolescentes. O projeto está sendo construído há dois anos pela prefeitura da cidade, em parceria com o Cenpec. Segundo Maria do Carmo Brant de Carvalho, a primeira tarefa é uma investigação cartográfica para localizar espaços e sujeitos de aprendizagem, sejam eles formais, como centros esportivos e ONGs, ou informais, como contadores de história. Depois, ocorre um trabalho de articulação entre esses atores e espaços. Mas isso não é o bastante. “A prefeitura tem condições para realizar essa articulação, mas é preciso saber o que a criança e o adolescente daquela região precisam, o que localizam como necessidade”, defende. Desta forma, o projeto educacional deve estar o mais próximo possível da realidade dos educandos. Para garantir a qualidade das atividades e a coesão do projeto pedagógico, cursos de capacitação estão sendo oferecidos não só para a rede de ensino, mas para ONGs, pontos de cultura e outras entidades que estejam no território. Um projeto que também tem como objetivo aproveitar espaços alternativos de educação espalhados pela cidade ocorre em Nova Iguaçu (RJ), com o projeto Bairro-Escola. Iniciado em 2002 com um piloto em apenas uma escola, o projeto já se expandiu para cinco localidades. Nele, a prefeitura promove uma articulação entre ONGs, iniciativa privada, clubes e espaços públicos para que, em horário alternativo ao das aulas, as crianças participem de atividades já oferecidas pela comunidade em locais distantes até 1 km da escola. A maior parte das atividades é artística, esportiva, cultural ou de aprendizado (como leitura e alfabetização digital). “Em Nova Iguaçu as crianças ganham os bairros”, garante Paulo Roberto Padilha. Os alunos caminham entre os locais das atividades, acompanhados por monitores. Com isso, surgiram empecilhos. Um deles foram os vendedores ambulantes que trabalhavam numa calçada do caminho dos estudantes, e os obrigavam a andar no meio da rua, aumentando o risco de acidentes. A prefeitura conversou com os vendedores e conseguiu resolver o problema. “Trata-se de um processo intersetorial, o que é indispensável”, destaca Padilha. Enquanto em Nova Iguaçu e Belo Horizonte a escola alcança a comunidade, transformando o próprio território em espaço educador, uma experiência diferente acontece em uma escola municipal no bairro do Peruche, periferia de São Paulo. A EMEF Comandante Garcia D’Ávila se abriu para a comunidade e fez com que ela participasse do dia-a-dia da escola. O diretor Waldir Romero conta que, quando lá chegou, no final de 1996, a escola era conhecida na comunidade pelo termo pejorativo de “maloquinha”, já que seus prédios eram sujos, pichados, e a falta de organização e disciplina era a realidade do local. “Tinha gente que entrava armada na escola para ameaçar alunos, usavam drogas aqui dentro, um horror”, lembra. Para tentar lidar com a situação, procurou os alunos para propor um diálogo e pedir colaboração. A recepção foi terrível. “Um aluno olhou pra mim e disse: ‘Você é um branquinho folgado, vem com esse papinho, mas daqui a um ano você vai embora e a gente continua aqui’. O pior é que eu realmente não pretendia ficar naquela escola, mas isso me fez mudar de idéia”, conta. A referência à cor da pele não é casual. A região onde fica o Peruche foi inicialmente habitada por negros, o que ajuda a explicar, entre outros fatores, o grande número de escolas de samba da região. Ao perceber isso, Romero utilizou o samba como arma para a transformação da escola. Ele passou a freqüentar a escola de samba Morro da Casa Verde, se envolvendo com seus diretores, líderes comunitários por excelência. Com isso, deixou de ser visto como um “estrangeiro”. “Foi uma formação em liderança comunitária, um processo importantíssimo”, avalia. Conseguiu apoio para implementar mudanças na escola, como a criação de cursos de teatro, futebol, judô e, principalmente, música, com destaque para o samba, todos fora do horário de aula, gratuitos e na maioria oferecidos por voluntários da comunidade. Um deles é Emerson Brasa, cavaquinista da Unidos do Peruche e professor voluntário de cavaquinho e percussão na EMEF. “Os alunos se dedicaram muito, hoje tem vários na Unidos do Peruche e em outras escolas de samba da região”, orgulha-se. “O Waldir [Romero] abriu bastante espaço para a comunidade, é diferente”, sustenta. Para Romero, a escola em geral ainda não percebeu o papel que precisa desempenhar nos dias de hoje. “Às vezes se quer dar somente informação na sala de aula, mas isso é tentar fazer o telhado sem a fundação. A criança precisa aprender a andar, a conversar, criar relações humanas. Se ela não faz isso, fica na sala agitada”, sustenta. “Por isso, a escola precisa oferecer atividades o dia todo, um conjunto de atividades socializantes e formadoras de relações simbólicas e afetivas”, completa. A parceria com escolas de samba rendeu ainda mais frutos. No carnaval de 2006, toda uma ala do desfile da Unidos de Peruche foi produzida na escola, reunindo professores, alunos e pessoas da comunidade. As alunas da oitava série Laura Santana Oliveira da Silva e Amanda Cristina de Moraes Costa, as duas com 14 anos, ajudaram a montar as fantasias. “Os professores chamaram para ajudar depois das aulas e ficamos”, conta Amanda. As duas destacam uma outra característica do Garcia, como é conhecida a escola: o diálogo. “Os professores dão muito espaço para a gente falar, isso é muito bom”, afirma Laura. “Se tem uma coisa que achamos que não é legal numa aula, falamos e resolvemos civilizadamente”. O diálogo é algo que faz muita falta à escola na visão do professor Elie Ghanem. Para ele, a escola deveria ter um caráter de espaço público de debates, o que nem sempre ocorre. “O universo escolar se coloca separado de outras esferas da ordem pública, como cultura, emprego, saúde, relações internacionais. A educação abstrai das demais dimensões da vida. A educação integral é uma reação a esse fato”, afirma. Ele aponta ainda outra distorção: as políticas educacionais não levam em conta a participação ativa do magistério. “É essa categoria que vai efetivamente executar essas políticas. Sem essa participação, qualquer mudança, mesmo que positiva, vai encontrar dificuldades para se efetivar”, sustenta. “Cabe às autoridades ter a iniciativa, mas precisam trabalhar essa proposta com mobilização para ouvir o magistério e a comunidade. Quanto mais discutida, mais chance tem de dar certo”, avalia Ana Maria Cavaliere. Essa participação seria ainda importante para tornar a política educacional mais perene, menos sujeita às mudanças eleitorais. “As políticas são interrompidas a cada quatro anos e não dá pra realizar uma mudança significativa nesse tempo”, destaca. F Tempo não é tudo O governo do estado de São Paulo iniciou a implantação do tempo integral nas escolas da rede pública. Cerca de 10% da rede hoje já oferece aulas durante o dia todo para seus alunos. No entanto, diversos problemas são encontrados no programa, desde a implantação até a falta de estrutura. Marilse Araújo é coordenadora do projeto Nossa Escola Pesquisa Sua Opinião (Nepso), que é realizado em escolas públicas nos estados de SP, RS, PE, MG e PR e também na Argentina, México e Chile. Por meio desse trabalho, entrou em contato com professores da rede paulista que falaram sobre o tempo integral. “Todas as decisões foram tomadas sem a participação dos principais interessados: professores, alunos e pais”, aponta Marilse. O problema começa na escolha das escolas para o projeto piloto, que considerou apenas os locais que tinham salas ociosas, sem levar em conta as necessidades reais da população. Além disso, as aulas complementares são agrupadas em matérias com nomes diferentes dos tradicionais, sem que os professores saibam exatamente do que tratam esses conteúdos. A discussão sobre como seriam as práticas educativas, nesse período suplementar, foi feita a posteriori, ou seja, depois das aulas atribuídas e do ano letivo iniciado. “Do ponto de vista da organização do tempo e espaço educativo se reproduziu o que é feito no horário ‘tradicional’. As crianças e jovens ficam saturados e o principal problema enfrentado pelos professores é a indisciplina”, relata. Além disso, vem a prosaica questão das condições efetivas para essa mudança. Faltam salas de aula, funcionários e outras coisas importantes. “Muitas dessas escolas não têm estrutura para oferecer almoço para as crianças. Isso gerou uma ação do Ministério Público em Araraquara, demandada pelos pais dos alunos, que não queriam que seus filhos permanecessem tantas horas apenas com ‘bolachinhas’”, conta Marilse. “Acho que há problemas que seriam mais facilmente corrigidos e que trariam mais ganhos, como resolver a questão da superlotação. É absurdo ter 40 alunos numa sala do ensino fundamental, não adianta nada ampliar o tempo”, avalia Vera Masagão, coordenadora de programas da ONG Ação Educativa. “Tirar as crianças das ruas e enfiar em uma espécie de cadeia não resolve nada. Pelo contrário, atrapalha as outras, porque as do contraturno ficam no pátio. Foi uma coisa eleitoreira, feita de forma atabalhoada, sem perguntar para a comunidade”, ataca.