"No Brasil, mortes cometidas pela polícia são tão comuns que fazem parecer pequenos os números dos EUA"

Reportagem divulgada na capa do jornal norte-americano nesta sexta-feira (22) aborda naturalização da letalidade policial na sociedade brasileira; leia matéria traduzida.

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Reportagem divulgada na capa do jornal norte-americano The New York Times nesta sexta-feira (22) aborda naturalização da letalidade policial na sociedade brasileira; leia matéria traduzida Por Redação [caption id="attachment_66044" align="alignleft" width="288"](Reprodução) Abaixo da foto: "A aceitação do horror de mortes cometidas pela polícia no Brasil" (Reprodução)[/caption] Na capa da edição desta sexta-feira (22), o jornal norte-americano The New York Times publicou uma matéria sobre o alto índice de mortes causadas por policiais militares no Brasil. O fio condutor da reportagem é o caso do menino Eduardo de Jesus Ferreira, de dez anos, assassinado no início de abril enquanto brincava na porta de sua casa, localizada no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro. Após entrevistar diversas fontes ligadas ao estudo da letalidade policial no país, os repórteres que assinam o texto chegaram a uma conclusão: as vidas tiradas pelas mãos da PM são uma situação banal, geralmente aceita de forma naturalizada por grande parte da população. "As imagens do corpo sem vida de Eduardo e os gritos lancinantes de seus vizinhos denunciando a polícia, capturados por telefones e compartilhados nas redes sociais por todo o Brasil desde o acontecimento, oferecem um lampejo raro dentro do sentimento de desespero, em uma sociedade em que mortes cometidas pela polícia são tão comuns que fazem parecer pequenos os números dos Estados Unidos", diz o artigo. Leia, a seguir, íntegra da matéria:

A aceitação do horror de mortes cometidas pela polícia no Brasil

Por Simon Romero e Taylor Barnes, do The New York Times | Tradução de Tomaz Amorim Izabel, para o blog do Negro Belchior

Eduardo de Jesus estava na frente de sua casa no Complexo do Alemão, um gigantesco labirinto de casas de tijolo, quando sua mãe ouviu o alto disparo de uma arma de fogo.

Segundos depois, ela viu Eduardo, de 10 anos, caído morto por um ferimento de bala na cabeça. Então, correu até o policial que estava carregando a arma.

“Eu peguei ele pelo colete e gritei: ‘Você matou o meu menino, seu desgraçado’”, disse a mãe, Terezinha Maria de Jesus, de 40 anos.

“Ele me disse: ‘Assim como eu matei o seu filho, eu posso te matar também’, enquanto ele apontava o rifle para a minha cabeça”, continuou. “Eu disse para ele: ‘Vai. Você já matou uma parte de mim. Leva o resto’ ”.

As imagens do corpo sem vida de Eduardo e os gritos lancinantes de seus vizinhos denunciando a polícia, capturados por telefones e compartilhados nas redes sociais por todo o Brasil desde o acontecimento, oferecem um lampejo raro dentro do sentimento de desespero, em uma sociedade em que mortes cometidas pela polícia são tão comuns que fazem parecer pequenos os números dos Estados Unidos.

Pelo menos 2.212 pessoas foram mortas pela polícia no Brasil em 2013, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um grupo de pesquisa independente. Especialistas dizem que o número verdadeiro provavelmente é muito maior porque alguns estados não relatam as mortes cometidas por suas polícias.

Nos Estados Unidos, que têm 100 milhões de pessoas a mais do que o Brasil, o FBI contou até agora muito menos mortes pela polícia: 461 em 2013, o último ano do qual se tem dados. Outras estimativas colocam o número anual mais acima perto de 1.100. Mesmo assim, isto não é nem a metade das mortes por policiais no Brasil.

Mas enquanto mortes pelas mãos de policiais geraram protestos calorosos ao redor dos Estados Unidos, incendiando cidades como Baltimore e Ferguson, no Brasil elas geralmente são aceitas com horror, como parte permanente do policiamento em um país cansado de crimes violentos .

“Claro, o sentimento de revolta seria diferente se estas vítimas fossem meninos de cabelo loiro e olhos azuis que vivessem em áreas ricas, mas eles não são”, disse Antônio Carlos Costa, um pastor presbiteriano que ajuda a rastrear casos de crianças abaixo dos 14 anos que foram mortas pela polícia. “As crianças, adolescentes e adultos mortos pela polícia no Brasil são vítimas de um massacre em que o número de vítimas é mais alto do que em algumas zonas de guerra”.

Com mortes pela polícia aparecendo cada vez mais no Rio, enquanto as autoridades usam de repressão para preparar os Jogos Olímpicos do ano que vem, a raiva ocasionalmente explode.

Depois da morte de Eduardo, a polícia acabou com manifestações usando bombas de gás e balas de borracha no Complexo do Alemão, uma miscelânea de favelas ou áreas urbanas relativamente pobres que surgiram em grande escala de ocupações precárias. Manifestantes em outra parte de favelas do Rio, o Complexo de São Carlos, botaram fogo em ônibus neste mês, acusando a polícia de ter assassinado dois homens.

Mas na maior parte do Brasil propositores de estratégias duras de policiamento estão ficando mais fortes.

Respondendo ao medo generalizado, em um país cansado de crimes, com mais homicídios do que qualquer outro – 50.108 em 2012, de acordo com as Nações Unidas – políticos conservadores com histórico policial e fala dura contra o crime, juntaram muitos votos nas últimas eleições estaduais e federais, reforçando o que é comumente chamado de “bancada da bala” do Congresso brasileiro.

Alguns membros da bancada da bala comemoram abertamente o número de pessoas que mataram enquanto patrulhavam as ruas. Uma estrela política ascendente, Paulo Telhada, se gabou de ter matado mais de 30 pessoas como policial em São Paulo, dizendo em uma entrevista recente que “não tinha pena de bandidos”.

“Existem partes da classe média que aceitam as mortes pela polícia como prática legítima”, disse Ivan C. Marques, diretor do Instituto Sou da Paz, um grupo que coleta casos envolvendo a polícia.

No estado do Rio sozinho, a polícia matou mais de 563 pessoas em 2014, um aumento de 35% em relação ao ano anterior, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública do estado.

Isto é significativamente mais do que o FBI relatou para todos os Estados Unidos, que têm uma população aproximadamente vinte vezes maior do que a do estado do Rio.

“Às vezes é preciso a morte de um menino de dez anos para sacudir as pessoas, para que elas percebam o fato de que esta tragédia está se desenvolvendo em uma escala épica”, disse Ignacio Cano, um pesquisador de casos policiais. “Infelizmente, só chama a atenção quando a vítima é escandalosamente inocente”.

Nas semanas após a morte de Eduardo, um pequeno grupo de mulheres no Rio, cujas crianças foram mortas pela polícia, se juntaram para formar o Conselho de Mães de Favela, procurando impedir tais mortes. Outras vozes expressaram ultraje em encontros comunitários no Complexo do Alemão.

Mas grupos de direitos humanos e acadêmicos dizem que se casos anteriores de mortes de crianças cometidas pela polícia servem de exemplo, a fúria pela morte de Eduardo vai desaparecer sem produzir mudanças significativas nos métodos de policiamento.

Um caso chamou rapidamente a atenção do público aqui em 2011, quando um garoto de 11 anos, Juan Moraes, foi encontrado em um rio perto do Quartel da Polícia. Oficiais prometeram mudanças básicas, como coletar imediatamente declarações de testemunhas e analisar cenas do crime, depois que quatro policiais foram julgados responsáveis pela morte do garoto.

Mas especialistas dizem que o surgimento de novos assassinatos sugere que a morte de Juan não produziu uma mudança duradoura.

Muitos casos não resolvidos em que crianças são mortas são simplesmente chamados de episódios de “bala perdida”. Alguns casos aconteceram durante operações antidrogas em áreas lotadas, colocando em questão a estratégia comum de realizar incursões grandes e agressivas de polícia em áreas residenciais.

Pesquisadores dizem que as razões para o grande número de mortes pela polícia são variados. Para começar, forças policiais mal treinadas e mal pagas em favelas infestadas de crime são frequentemente imbuídos com um instinto de atirar primeiro decorrente de uma mistura de medo, paranoia e sensação de impunidade.

Algumas unidades de elite, como o Batalhão de Operações Policiais Especiais no Rio, propagandeiam abertamente, e até mesmo glorificam, a letalidade. O símbolo da unidade é uma caveira e pistolas cruzadas.

Mas analistas dizem que estes esquadrões são apenas a ponta final de sistemas de policiamento maiores em que criminosos, ou pessoas tomadas por criminosas, são consideradas elementos indesejados que não podem ser reformados.

Como gangues de drogas controlam muitas prisões no Brasil, prender criminosos e mandá-los para a cadeia é visto por alguns policiais como alimento para crescimento do crime, não para sua redução.

Muitos casos envolvendo policiais são registrados como "autos de resistência" ou "mortes em confronto com a polícia", embora ativistas de direitos humanos digam que estes episódios frequentemente se referem a execuções sumárias.

“Para a polícia é simplesmente mais fácil, e entendido como uma solução melhor, matar supostos criminosos”, disse Graham Denyer Willis, professor da Universidade de Cambridge que estuda a polícia do Brasil. Com as mortes sendo aceitas rotineiramente como efeito inevitável da redução da insegurança em algumas cidades, o resultado é “inequivocamente uma forma de limpeza social”, ele afirma.

Algumas vezes as autoridades exaltam a prática.

“Eu daria para ele uma medalha para cada bandido que ele mandar para o inferno”, disse André Puccinelli, o governador do estado do Mato Grosso do Sul, ao elogiar um policial fora de serviço que matou dois homens armados que tentavam roubar uma loja.

Aqui no estado do Rio, as autoridades dizem que o número de mortes pela polícia diminuiu de 1.330 em 2007 para 563 em 2014 com o envio de forças de segurança para favelas, em um processo chamado de campanha de pacificação.

Mas oficiais de segurança reconhecem que o problema permanece.

“Nós precisamos de muito mais treinamento para preparar a polícia para territórios em que estamos tendo muita dificuldade de trabalhar”, declarou o Coronel Robson Rodrigues, um oficial superior da força policial do estado do Rio. “As atividades policiais ainda precisam de alguma correção”.

Grupos de direitos humanos questionam se as autoridades estão realmente tentando frear as mortes causadas por policias. Em um estudo, Michel Misse, sociólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, examinou 707 casos de mortes pela polícia e descobriu que os promotores se recusaram a prestar queixas contra policiais em mais de 99% dos casos.

No caso de Eduardo, o menino de dez anos assassinado em abril, uma porta-voz da polícia disse que a morte ainda estava sendo investigada.

A senhora de Jesus, mãe de Eduardo, conta que ela se pergunta se a polícia de alguma forma pensou que seu filho poderia estar armado, embora o assassinato tenha acontecido à luz do dia e o pequeno celular branco em sua mão dificilmente parecesse uma arma.

A senhora de Jesus diz que ela e seus vizinhos correram para impedir a polícia de adulterar a cena, preocupados de que eles plantariam uma arma de fogo perto do corpo de Eduardo.

Luiz Fernando Pezão, o governador do Rio, reconheceu para repórteres que houve um “engano” na morte de Eduardo, chamando o episódio de “lamentável”.

“São só palavras”, destacou a senhora de Jesus, de outra favela no Rio onde ela e seu marido estavam dormindo, no chão da casa de um parente. Ela diz que eles não podem voltar para casa por medo de que a polícia agora iria também atrás deles.

“Às vezes eu fecho os meus olhos e imagino que ele ainda está vivo”, falou, sobre Eduardo.

 “Então eu abro os olhos e é como se o mundo estivesse me dando uma surra”, completou. “Meu menino está morto”.