Novo colunista da Fórum discute o impacto do chamado "Caixa Dois" na política brasileira

Confira na íntegra o texto de Juliano Medeiros, presidente da Fundação Lauro Campos e membro da Executiva Nacional do PSOL.

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Confira o texto de estreia de Juliano Medeiros, presidente da Fundação Lauro Campos e membro da Executiva Nacional do PSOL Por Redação Juliano Medeiros é o novo colunista da Fórum. Nesta semana, ele se une a outros grandes nomes que contribuem com textos periódicos na página, como os ex-ministros Alexandre Padilha e Juca Ferreira e o professor de Relações Internacionais da UFABC Igor Fuser. Historiador, Juliano é dirigente nacional do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e ex-diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE) do Brasil, nas gestões 2005-2007 e 2007-2009. Na estreia da coluna, ele debate a relação entre a corrupção e o financiamento empresarial de campanhas eleitorais no país. Confira abaixo.

Presente de grego

Por Juliano Medeiros* Dividindo opiniões entre os partidos, questionada por juristas e apoiada pela maioria da população, a operação Lava Jato chega a seu terceiro aniversário num momento decisivo. Além de pedir a investigação de nomes do primeiro escalão da política nacional, a nova lista apresentada pela Procuradoria Geral da República ao Supremo Tribunal Federal atinge em cheio a cúpula do PMDB, com o pedido de investigação de nomes como Renan Filho, Luiz Fernando Pezão, Eunício de Oliveira, Paulo Skaf, Marta Suplicy e Edson Lobão (Temer se salva, por ora, por não poder ser processado, como presidente da República, por atos cometidos antes da posse). Com 83 políticos com prerrogativa de foro, a nova lista apresentada pela PGR deve estimular uma ampla discussão jurídica e política sobre a natureza dos atos ilícitos cometidos por esses e outros agentes públicos. Não por acaso, o tema da semana foi o chamado “Caixa Dois”. No curso das investigações, a Polícia Federal e o Ministério Público comprovaram definitivamente que o financiamento empresarial de campanhas, mesmo quando realizado dentro das regras determinadas pela Justiça Eleitoral, pode esconder a retribuição de vantagens obtidas pelas empresas junto a políticos. Mas como definir o que é pagamento de propina do que é doação “desinteressada” feita por razões de natureza política? Aqui se travará a luta sobre o destino das investigações e do próprio sistema político brasileiro. Além disso, quem acompanhou a CPI da Petrobras, em sua última edição, lembrará que parte considerável dos contratos na estatal escondiam valores que, posteriormente, seriam repassados a “operadores” de partidos como PMDB, PP, PT e até PSDB, então na oposição. Essa dinâmica, particularmente escandalosa no caso da empresa Sete Brasil, contratada pela Petrobras para a construção de sondas voltadas à exploração do Pré-Sal, foi revelada por diretores da estatal presos no primeiro ano das investigações. Mas nenhum desses dois tipos de corrupção – propina transformada em doação legal e repasse direto de recursos a doleiros indicados pelos partidos – refere-se diretamente ao chamado Caixa Dois. O tema mobilizou a alta cúpula da República num almoço esta semana. Nele, estavam presentes o ilegítimo presidente Michel Temer, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, Rodrigo Maia e Eunício Oliveira, além do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes. Na pauta do encontro indigesto, uma preocupação: como diferenciar o Caixa Dois, praticado de forma generalizada pelos grandes partidos, dos outros tipos de corrupção identificados pela Operação Lava Jato, e pensar uma fórmula que permita manter campanhas milionárias. Foi o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, quem abriu a brecha para a operação de “salvação nacional”. Na lista enviada ao STF essa semana, há políticos acusados de serem beneficiados por recursos oriundos de corrupção e outros que teriam apenas omitido recursos cuja origem não pode ser associada a atos ilícitos. Seria o chamado Caixa Dois “do bem”. A tese foi defendida ardorosamente por vários políticos. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, aliviando a barra de seus correligionários, foi um dos primeiros a sair em defesa desta interpretação. Para ele, o recebimento de recursos oriundos de desvios é crime. Já o Caixa Dois seria um “erro” a ser reparado ou punido. Esse entendimento, claro, tem o apoio de tucanos investigados, como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, mas também do ex-ministro petista, José Eduardo Cardozo, e claro, do principal aliado da cúpula golpista no STF, Gilmar Mendes. É um discurso semelhante usado pelo PT no mensalão para diferenciar corrupção e Caixa Dois. Naquele caso, o entendimento majoritário dos ministros da Suprema Corte foi de que os crimes não poderiam ser separados. O resultado foram mais de duas dezenas de presos por peculato, corrupção e lavagem de dinheiro. Ao prosperarem as interpretações de Janot e Gilmar, seriam os condenados do mensalão também anistiados? Ou viveremos em permanente insegurança jurídica? Mais difícil ainda é definir quando as doações legais, feitas de acordo com as regras eleitorais, são oriundas de benefícios recebidos pelas empresas em troca de financiamento eleitoral. A rigor, como o mercado age a partir da racionalidade do lucro, é difícil acreditar que essas doações não teriam, por trás de si, alguma vantagem indevida assegurada ou, pelo menos, prometida. Mas ao contrário do que pensam alguns procuradores, não se pode formar culpa apenas a partir da convicção. E a coisa pode ficar mais complicada: no caso de candidatos que receberam recursos ilegais oriundos dos diretórios nacionais e estaduais, como comprovar que o beneficiário final do esquema de corrupção tinha conhecimento da origem ilícita das doações? Além disso, a simples delação de executivos das empreiteiras é suficiente para determinar a culpa, como foi até agora? Ou agora serão necessárias provas materiais, como se exige de um processo legal que respeita o Estado Democrático de Direito? E em meio a essa complexidade, a operação Lava Jato, que completa três anos em meio a questionamentos no meio jurídico, parece prestes a receber um presente de grego. O “grande acordo nacional” proclamado pelo senador Romero Jucá toma a forma de uma blindagem ao Caixa Dois, separando os recursos oriundos de corrupção daqueles que não foram declarados, mas supostamente não têm origem no desvio de recursos públicos. Afinal, nas palavras de Aécio Neves, acusado de receber R$ 9 milhões em recursos ilegais, “um cara que ganhou dinheiro na Petrobras não pode ser considerado a mesma coisa que aquele que ganhou cem pratas para se eleger”. Além de defender descaradamente a anistia ao crime de Caixa Dois, que prevê pena de até cinco anos de prisão, Aécio e os convíveres do almoço citado no começo deste artigo esperam que a Justiça altere seu entendimento, separando corrupção e Caixa Dois e permita a retomada do financiamento empresarial de campanhas. É claro que a relação entre empresas e governos, e a corrupção daí oriunda, é estrutural no Brasil. Como afirmou o ex-senador e ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado (PSDB), “o esquema ilícito de financiamento de campanha e de enriquecimento ilícito desvendado pela Lava Jato ocorre desde 1946”. O próprio Emílio Odebrecht, presidente do Conselho de Administração da construtora Odebrecht e filho do fundador da companhia, Norberto Odebrecht, disse que o pagamento de Caixa Dois a políticos “sempre existiu” no Brasil. Isso, no entanto, não pode servir para naturalizar essas relações, ainda que os legisladores tenham decidido, em determinado momento, legalizar o escárnio que representa o financiamento empresarial de campanhas. A “operação abafa” liderada pela cúpula de PMDB, PSDB e parte do Supremo Tribunal Federal teve início com a disputa em torno do conceito de Caixa Dois. Tentam convencer a sociedade de que doações ilegais não têm origem ilícita – mesmo sabendo que “não há almoço grátis” – enquanto trabalham pela volta do financiamento empresarial de campanhas, se possível constitucionalizando-a. Se por um lado, é verdade que cabe ao Ministério Público provar que doações legais ou ilegais foram feitas em troca de favorecimento ilegal em licitações ou contratos públicos, por outro, o desespero dos grandes partidos diante da hipótese de incriminação do Caixa Dois, com a defesa de uma anistia geral, demonstra que há algo de podre nas relações entre empresas, governos e partidos no Brasil e que a retomada do financiamento empresarial de campanhas ainda é um risco para o qual devemos estar atentos. juliano medeiros   *Juliano Medeiros é presidente da Fundação Lauro Campos e membro da Executiva Nacional do PSOL.       Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil