“O B de LGBT poderia significar 'banana' que ninguém se importaria”

Chamadas de indecisas e promíscuas, muitas vezes ignoradas pelo movimento LGBT, as pessoas bissexuais lutam por direitos básicos, como o da livre expressão e o de se relacionar livremente com quem dividem afeto ou sentem atração.

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Chamadas de indecisas e promíscuas, muitas vezes ignoradas pelo movimento LGBT, as pessoas bissexuais lutam por direitos básicos, como o da livre expressão e o de se relacionar livremente com quem dividem afeto ou sentem atração

Por Jarid Arraes

Indecisas, promíscuas, que vivem em cima do muro, confusas e infiéis. Muitas pessoas bissexuais já foram catalogadas com termos como esses ao compartilharem algo a respeito de sua orientação sexual. Além de extremamente cansativa, a questão é ainda pior quando gera sofrimento e exclusão.

O problema se deve também à ignorância, fortalecida pela omissão de muitos grupos, ONGs e instituições, que mesmo quando se posicionam favoravelmente, falham em promover informação de qualidade e apresentar as demandas das pessoas bissexuais. Entre protestos e relatos, as pessoas bissexuais lutam por direitos básicos, como o da livre expressão e o de se relacionar livremente com quem dividem afeto ou sentem atração.

Compreendendo a si

[caption id="attachment_57625" align="alignleft" width="300"]Jamille Nunes (Foto: Arquivo pessoal) Jamille Nunes (Foto: Arquivo pessoal)[/caption]

“Não lembro ao certo quando 'descobri' a identidade bissexual, porque lembro que passei por um grande período de confusão. Acreditei que eu era lésbica boa parte da minha adolescência, por não conhecer nenhuma referência de que bissexualidade sequer existia. Eu achava que ou alguém era hétero ou homossexual”, relata Jamille Nunes, feminista e integrante do coletivo Salto. Nunes achava que era uma lésbica que ocasionalmente se interessava por homens, mas ainda um interesse menos intenso do que sentia por outras garotas. “Passei muito tempo tentando suprimir esses desejos por homens, acho que numa tentativa de me encaixar na comunidade lésbica, e não sei ao certo quando compreendi que existia uma identidade que me contemplava, mas lembro que foi perto dos meus 18 anos. Foi um alívio”.

Embora marcada por sua subjetividade, a experiência de Nunes é similar a de outras pessoas que não tiveram a sexualidade perfeitamente definida em uma experiência, com toda clareza; pelo contrário, o processo pode ser muito mais complexo e profundo do que um determinante divisor de águas. Daniela Furtado, ativista do grupo Bi-Sides, cresceu em uma família repleta de mulheres heterossexuais e, embora soubesse da existência de mulheres lésbicas, conta que se enxergava como “depravada demais”, como se sua sexualidade fosse uma suposta “perversão”, algo que pensava acontecer por ser muito precoce. “No fim da adolescência, comecei a ver [a bissexualidade] como uma possibilidade. A tal ‘moda’ (que nunca foi moda, simplesmente repetem isso o tempo todo) me ajudou, até o bi-curious do Orkut me ajudou e no final tive que aceitar. Sair do armário, ficar com a primeira guria e [sentir a necessidade de] militar começou mais ou menos ao mesmo tempo”. Furtado explica que o movimento bissexual a ajudou muito a se assumir e que as falas a empoderavam de um modo que ninguém mais conseguia – “e continua não conseguindo”, adiciona.

Jussara Oliveira, analista de sistemas, também é integrante do coletivo Bi-Sides e uma das administradoras do portal Blogueiras Feministas. Para ela, parte da dificuldade de se compreender como bissexual se deve aos estereótipos disseminados pela sociedade. “De início, houve muita negação. Tiveram que dizer para mim que eu estava me comportando como alguém apaixonada (por outra adolescente na época) para eu me dar conta. E foi um choque, porque não queria fazer parte daquilo que eu conhecia sobre a bissexualidade. Eram um monte de estereótipos sobre indecisão e promiscuidade que eu temia me associar. E como me questionavam muito, ficava me perguntando se em algum momento eu teria que escolher do que ou de quem eu ‘gostava de verdade’”, conta.

Só sabe quem é bi

Os estereótipos a respeito da bissexualidade são bombardeados de todos os lados.  Viver sob constante pressão para atender a uma lógica de enquadramento sexual e lidar com a frequente hostilização derivada do preconceito não é nada fácil. Em um período como o da adolescência, que por si só já carrega mudanças importantes e questionamentos profundos, o preconceito pode resultar em transtornos psicológicos severos. [caption id="attachment_57626" align="alignright" width="274"]Jussara  (Foto: Arquivo pessoal) Jussara Oliveira (Foto: Arquivo pessoal)[/caption]

“É horrível que não acreditem em algo que, ao mesmo tempo, julgam mal – algo que Miguel Obradors chamou de Imperialismo Cultural. É sair do armário e não saber se é pior que não te aceitem ou que não acreditem. E aí podem aceitar, se acham que na verdade você é hetero, e não aceitar, se acham que na verdade você é homo”, explica Furtado.

Entre os equívocos e estigmas mais reproduzidos contra bissexuais, está a ideia de que não servem para relacionamentos estáveis ou monogâmicos e de que são infiéis. Em uma cultura que estimula relacionamentos baseados em possessividade e ciúmes, essa combinação pode ser perigosa, sobretudo para as mulheres, que já enfrentam altas taxas de violência doméstica, estupro e feminicídios – em muitos casos, a violência acontece porque os parceiros são controladores, ciumentos e machistas.

O machismo, aliás, é marca de destaque quando o assunto é bissexualidade, sendo esse um tema relevante para se discutir gênero e direitos da mulher. Para Carina Rocha, articuladora cultural, que além de ser integrante do Bi-Sides é ativista no coletivo Juntas na Luta, a simples existência de mulheres bissexuais torna o tema fundamental para o feminismo. “Mulheres estão sendo violentadas psicologicamente e fisicamente por serem bissexuais e é por essa pauta que militantes feministas de coletivos como o Bi-Sides lutam para que esteja legitimada no movimento feminista”, aponta.

Na ótica de Rocha, a heteronormatividade e o machismo fazem parte do problema: “A tendência é que nossa orientação seja apagada e a gente fique no armário hétero a vida inteira, infelizmente. A gente se bloqueia para ter relações homoafetivas por conta da homofobia e também porque as pessoas não vão entender que a gente não virou lésbica/gay, que a gente é bi”.

Além das pessoas heterossexuais, Rocha lembra que grande parte das lésbicas também não confia nas mulheres bissexuais, já que também sentem atração por homens. “A sociedade nos enxerga como promíscuas, indecisas, safadas ou que só ficamos com mulher pra fazer charme para os homens, que por sua vez fetichizam nossa sexualidade”, coloca. De fato, a bissexualidade feminina é um dos fetiches mais comuns entre os homens – o machismo em nossa cultura incentiva as pessoas a acreditar que a sexualidade e o corpo das mulheres existem para o prazer masculino.

O protesto contra a objetificação sexual é evidenciado nas falas dessas mulheres. “Como mulher, a sociedade constantemente põe dificuldades em nossas sexualidades. Mas especificamente com bissexuais, somos ainda mais objetificadas e vistas como isca para aventuras sexuais por homens héteros”, afirma Jamille Nunes. “Além disso, existem mais desculpas para invalidar minha sexualidade, como o fato de que supostamente me declaro bissexual só para 'chamar a atenção' de outros caras, ou porque está 'na moda' ou é 'moderno'".

Ela completa: “Todas as sexualidades que fogem da heteronormatividade e englobam a mulher e a relação entre mulheres são importantes para o Feminismo. É combatendo a misoginia que a gente desconstrói a exotificação, estigmatização e hipersexualização da nossa sexualidade. Ninguém questiona a validade dos nossos relacionamentos heteroafetivos, mas se não combatemos esses estereótipos, nossos relacionamentos homoafetivos são vistos como 'incompletos', como se não quiséssemos ou pudéssemos estabelecer relacionamentos sérios e duradouros com outras mulheres, ou como entretenimento para homens, entre outros discursos bifóbicos”. Nunes finaliza sua fala lembrando que a situação é ainda mais violenta para as mulheres bissexuais negras, vítimas diárias da hipersexualização, e que é necessário interseccionar os debates.

E os homens? [caption id="attachment_57627" align="alignleft" width="213"](Foto: Arquivo pessoal) Paulo César Góis (Foto: Arquivo pessoal)[/caption]

Há algumas semanas, Paulo César Góis, também do Bi-Sides, publicou em suas redes sociais uma interessante reflexão sobre o ponto de vista masculino da bissexulidade, e como a relação de muitos homens heterossexuais diante dela pode envolver o medo de se descobrir não tão hétero assim. “Considerando-se a bissexualidade, o argumento do ‘eu, hétero, machão’ e ‘eles, os viados’ fica muito mais fraco. Essa binária machista, homofóbica e bifóbica vai pelos ares, porque se um cara que sente atração por outros caras (um ‘viado’) também pode sentir por mulheres, o que os livra dessa possibilidade?”, indaga. “Os limites rígidos da sexualidade tornam-se subitamente menos significativos. Não existe mais um ‘eu’ e ‘eles’ bem delimitado e isso é ameaçador”.

Mas se sentir atração por mulheres não exclui a possibilidade de um homem se atrair por outros homens, o que fazer? Nas palavras de Góis, a vida é uma miríade de experiências e isso definitivamente não é um problema, caso aconteça. E acontece bastante. No entanto, a experiência de homens e mulheres bissexuais difere em alguns pontos, ainda que a marca do machismo se faça presente: “Existe uma diferença na forma como a sociedade encara a bissexualidade quando se trata de um homem e uma mulher. O homem bissexual é uma entidade fantástica ainda esperando ser documentada; é sempre o gay covarde que não se aceita, tendo de lidar com a ridicularização, além da homofobia”, explica.

É nesse ponto que entra a hostilização contra aqueles que não são considerados “homens o suficiente”, em defesa de um padrão masculino que não consegue se sustentar. “Existe um esforço impressionante para que a bissexualidade não seja aceita como uma sexualidade legítima e real, porque ela rompe com uma rígida categorização das experiências sexuais e afetivas”, argumenta Góis. “Isso fica ainda mais evidente quando falamos sobre homens cis heterossexuais, cujos privilégios só são páreos para a insegurança latente.”

O que o movimento LGBT fala disso?

Essa pergunta é repetida exaustivamente em forma de protesto pelos grupos ativistas bissexuais. Carina Rocha é a primeira a falar: “O movimento LGBT num modo geral é bifóbico pra caramba, o público LG [lésbicas e gays] geralmente acredita que nós somos homossexuais e lésbicas que não querem se assumir realmente, quando não é nada disso! Existe também uma disputa de interesses, porque se a bissexualidade ganhar voz na sociedade, a comunidade LG tem medo de sofrer com ideologias como: 'seu amigo namorava um cara, agora namora uma menina, porque você também não faz isso?'. Eles têm medo de que a sexualidade deles seja mais oprimida ainda em detrimento da nossa. Só que não é justo que eles lutem pra ter sua sexualidade legitimada enquanto a nossa seja apagada e inferiorizada e continue sendo oprimida”, salienta. “Se for assim, não faz sentido ter o 'B' na sigla LGBT. Aliás, o B é pura fachada. O movimento LGBT mal fala da bissexualidade e da bifobia. Cartilhas das secretarias dos órgãos públicos que mal falam do B e quando falam não explicam nada, só citam a palavra 'bifobia'; isso não é combater bifobia, isso é fingir que estão contemplando um grupo, quando não estão”.

Segundo Jamille Nunes, gays e lésbicas muitas vezes acabam sendo tão opressivos quanto os heterossexuais de fora do movimento LGBT. “Acho que muito disso acontece por não compreenderem a bissexualidade. A nossa existência tira muitas pessoas LGs da zona de conforto do pensamento ‘eles’ (heterossexuais) e ‘nós’ (homossexuais). Então, essas pessoas repetem discursos violentos para nos deslegitimar, como o de que somos ‘farsantes’. Às vezes fica um pouco desgastante discutir com quem supostamente deveria nos ajudar a termos espaço também”, observa.

É notável que muitas correntes feministas e militantes do movimento LGBT não consideram que a bifobia seja de fato um tipo de discriminação. Jussara Oliveira pontua: “O mínimo de aproximação que tive do movimento LGBT como um todo só me fez internalizar mais preconceito. Com exceção de alguns poucos grupos de lésbicas ou transexuais, não se vê nem mesmo o assunto ser abordado. Nossas demandas são ignoradas com a desculpa que o que sofremos já está englobado na luta contra homofobia e lesbofobia e isso não é verdade. Isso faz com que tenhamos muita dificuldade em encontrar materiais e pesquisas sérias sobre o assunto e tenhamos muito pouco espaço para falar sobre nossas demandas”, explica. Para Oliveira, o preconceito contra as pessoas bissexuais é visto como menor e menos importante e muitos sequer se dão conta que a discriminação que elas sofrem é diferente. [caption id="attachment_57628" align="alignright" width="300"]Daniela (Foto: Arquivo pessoal) Daniela Furtado (Foto: Arquivo pessoal)[/caption]

As duras críticas fazem parte da necessidade crescente de pluralizar os movimentos sociais e atender as especificidades de muitos outros grupos e pautas negligenciadas. “Eu sou bissexual e sou negra. O buraco é mais embaixo. Eu sou fetichizada por ser mulher negra e bissexual, eu sou objetificada pela opressão bifóbica e racista, eu sou fetichizada por homens e rejeitada na comunidade les/bi por não corresponder ao padrão de beleza branco, eu não vejo representatividade bi na mídia e muito menos bi negra. Eu passei a época da faculdade inteira me bloqueando pra relações homo porque as meninas me rejeitaram quando adolescente porque eu era a ‘feia que não arrumava o cabelo’, os caras sempre quiserem uma ‘mulata’ (termo racista né, mas é assim que eles falam) pra ‘comer’, mas as garotas não... Elas não me queriam nem pra sexo e essa minha vivência foi mega violenta pra mim, só compreendi que sofri uma opressão racial e bifóbica quando me entendi como mulher negra. São dois empoderamentos diferentes que estão interligados e na minha vida não podem ser tratados separadamente”, enfatiza Carina Rocha.

Paulo César Góis completa falando que as pautas lembradas são geralmente as que contemplam homens gays, cis e brancos, criando-se uma minoria dentro da própria minoria. “Não há acolhimento de pessoas bissexuais; o que fazem é nos deixar ainda mais expostos a um mundo homofóbico e bifóbico através da trivialização, silenciamento e exclusão”, destaca. Góis nota que, além da falta de representação, quando as pessoas bissexuais se unem com um objetivo, quase ninguém se move para apoiá-las. “O B de LGBT poderia muito bem significar 'banana' que ninguém se importaria”, finaliza.

Sem muros, uma batalha em campo aberto

Se gays e lésbicas já sofrem com a invisibilidade e falta de representação de qualidade na mídia, a temática da bissexualidade não consegue fugir das polarizações. Com péssima representatividade, não é nenhuma surpresa que pessoas marginalizadas acumulem problemas de autoestima e outros resultados que interferem de forma nociva em suas vidas.

A mídia carrega grande responsabilidade pelo apagamento bissexual. “Recentemente, o desenho Avatar: A Lenda de Korra retratou um casal de mulheres bissexuais (envolvendo a protagonista, que inclusive não é branca!) e, se de um lado o público hétero via ‘apenas amigas’ e nos chamava de exagerados, do outro a pressão para dizer que elas eram lésbicas durou até que os próprios autores da série disseram que são bissexuais de fato e que, sim, a gente existe”, conta Góis. “Mas imaginemos que isso não aconteça, afinal, pouquíssimos autores se posicionam sobre isso: continuaríamos achando que as personagens são héteros ou lésbicas quando na verdade são bissexuais. E isso acontece em grande escala, não só em ficção como no mundo real, nos deixando sem exemplos positivos”. Enxergar-se de forma positiva é fator fundamental para a boa saúde mental e o contrário pode ser devastador. “Algumas pesquisas já apontaram que pessoas bissexuais têm altos índices de pobreza, depressão, suicídio, automutilação e alcoolismo. Se você adicionar outros fatores, como gênero e raça, as coisas ficam bem difíceis”, Góis pontifica. Para promover uma imagem real, garantindo o fim dos estigmas e clichês preconceituosos, os ativistas reivindicam mais espaço e mais oportunidades para que possam falar sobre a bissexualidade sem tabus e mentiras. O objetivo é conquistar espaço e ajudar outras pessoas bissexuais no processo de se compreenderem melhor e construírem melhores relações, tanto consigo quanto com potenciais parceiros e parceiras. Para aqueles que precisam de algum apoio, Paulo César Góis lembra: “Não existe maneira correta de ser bissexual. Bissexual não é somente a pessoa que sente atração 50% por mulher e 50% por homem; estas sequer são as únicas possibilidades de gênero e certamente a sexualidade é muito complexa para ser definida dessa forma rasa e rígida". Sua mensagem é, afinal, de encorajamento - algo que brota da luta genuína: “Se você é uma pessoa que reconhece em si mesma o potencial para se atrair por mais de um gênero, não se sinta com medo de usar a palavra com B. Não tenha medo de ser quem é. A vida é muito curta pra isso. Sim, é difícil — às vezes vêm golpes de onde a gente menos espera —, mas a liberdade também é gloriosa.”