O custo social da especulação alimentar

A mercantilização deixa a segurança alimentar à mercê do mercado. Não há nenhuma supervisão central global ou planejamento para garantir estoques suficientes

Escrito en GLOBAL el
A mercantilização deixa a segurança alimentar à mercê do mercado. Não há nenhuma supervisão central global ou planejamento para garantir estoques suficientes Por Glenn Ashton, do site The South African Civil Society Information Service. Traduzido pelo Canal Ibase por Isis Reis Os preços dos alimentos estão rapidamente indo em direção a um novo recorde, e há muito mais em jogo do que uma simples seca no Centro-Oeste dos EUA. Há implicações sérias, especialmente para nações com altas taxas de desigualdade e pobreza. É quase certo que iremos enfrentar uma fome em escala global potencialmente catastrófica nas próximas décadas. A principal razão pela qual já existem mais de sete bilhões de pessoas na Terra é em grande parte devido ao surgimento de duas tecnologias distintas. Em primeiro lugar, os combustíveis fósseis baratos nos permitiram cultivar alimentos em escalas industriais. Atualmente precisamos de cerca de dez calorias de energia de combustíveis fósseis para produzir uma caloria de comida. Há um século, cada caloria de energia gasta produzia duas calorias de alimentos. Em segundo lugar, os avanços na área da saúde, principalmente antibióticos e vacinas, têm aumentado a duração da vida humana. É um desafio crescente alimentar essa população que aumenta exponencialmente. Nós produzimos o bastante para todos na Terra terem o suficiente de comida, mas, apesar desta abundância, uma proporção significativa de pessoas não tem dinheiro para se alimentar de maneira adequada. Por quê? Há três razões principais para isso. Em primeiro lugar, a distribuição desigual da riqueza. Em segundo lugar, o consumo de carne tem crescido à medida que a riqueza aumenta. A área de pastagem para a produção de carne, principalmente bovina, utiliza mais de um quarto da superfície livre de gelo da Terra. Além disso, mais de um terço de todas as terras é usado para cultivar colheitas para a alimentação do gado. Esta é produzida por meio de práticas agrícolas industriais com utilização intensiva de energia. Em terceiro lugar, os riscos associados a fontes de energia não renováveis incentivou os governos ricos a promover a produção e o consumo de “biocombustíveis”. Estes são produzidos a partir de recursos agrícolas, como cana-de-açúcar, beterraba, milho, soja e oleaginosas, como o dendê e a canola. Este foco em biocombustíveis – que oponentes preferem chamar de agrocombustíveis devido a sua propensão de desviar os escassos recursos agrícolas em direção à produção de combustível – causou uma mudança sem precedentes no foco na produção agrícola dos alimentos para o plantio de safras destinadas à produção de combustíveis. Como resultado, faixas de ecossistemas sensíveis foram destruídas para serem plantadas por monoculturas como dendê, cana-de-açúcar, milho e soja. Altos preços do petróleo deram um incentivo econômico potente para sustentar essa mudança ecologicamente desastrosa. Essa destruição está ocorrendo desde em selvas da Indonésia – deslocando espécies emblemáticas como orangotango – até a África Ocidental, onde as comunidades locais são expulsas a fim de atrair “o investimento estrangeiro” e plantar safras para a produção de agrocombustíveis. A produção de biocombustíveis tem um claro impacto sobre as reservas mundiais de alimentos, que estão atualmente se aproximando de baixas históricas. No ano passado, quase 40% da safra de milho dos EUA se tornou combustível etanol. Como os EUA são o maior produtor mundial de milho, isto tem sérias implicações para o comércio mundial de alimentos. Isso é especialmente verdade à luz da grave seca deste ano em todo o Centro-Oeste americano. Os preços do milho atingiram níveis recordes, quase o dobro do ano passado. Altos preços do petróleo vão manter a demanda por etanol de milho, perpetuando a insanidade da utilização de alimentos como combustíveis. O comércio global de commodities destas culturas é dominado por três empresas – Cargill, Bunge e Archer Daniel Midland – cada uma profundamente envolvida tanto na produção de etanol quanto na cobertura de mercado e especulação. Essa mercantilização dos alimentos deixa a segurança alimentar à mercê do mercado. Não há nenhuma supervisão central global ou planejamento para garantir estoques de alimentos suficientes. O alimento é controlado pelo mercado, e não pela lógica, e certamente não pela benevolência. Uma solução proposta pelos interesses neoliberais, como o G8 e o elitista Fórum Mundial Econômico, é modernizar a agricultura em todo o mundo em desenvolvimento, particularmente na África, onde a produção tem ficado historicamente defasada das normas internacionais. Esta solução segue o modelo da imposição de alto custo e de práticas agrícolas intensivas, dependentes de fertilizantes, de sementes híbridas e geneticamente modificadas, do aumento da mecanização e do uso de pesticidas e produtos químicos sobre vulneráveis sistemas econômicos e agrícolas. Os pobres tornam-se inevitavelmente vítimas dessa desigualdade. Camponeses são forçados a recorrer a empréstimos para garantir a sua posição sobre a esteira industrial agrícola. Quando as culturas falham, sua terra é perdida para interesses industriais agrícolas consolidados, que espremem a terra para obter lucros ao custo da biodiversidade e da estabilidade social. Enormes faixas de terra já foram absorvidas em ocupações de governos estrangeiros, entidades privadas e especuladores para a plantação de biocombustíveis ou de alimentos para animais. Agricultores deslocados migram para áreas urbanas em busca de trabalho, já que seus empregos são perdidos por conta da mecanização. A maioria pobre é, consequentemente, forçada a uma realidade cada vez mais desoladora para aceitar essas soluções para a fome ditadas pelo mercado, que por sua vez aniquila a delicada dinâmica social e econômica sustentada por incontáveis gerações. No oeste da África do Sul, as famílias gastam 15% da renda em alimentos – no sul esse percentual sobe para 80%. No entanto, o modelo econômico dominante afirma que, em pequena escala, fazendeiros autossuficientes não fornecem qualquer rendimento para pagar impostos ou acrescentam algo à balança nacional de pagamentos. Portanto, o dogma neoliberal insiste que esses agricultores “inúteis” modernizem e adotem a agricultura intensiva. E, lembrem-se, esses agricultores “sem valor” representam quase um terço da população do mundo e alimentam ainda mais. Estas mudanças somam-se às já profundas ameaças para a segurança alimentar, para a coesão social e para metas de desenvolvimento do milênio, como a redução da pobreza. Ironicamente, projetos de agricultura de pequeno porte são muito mais resistentes à instabilidade climática do que o modelo industrial intensivo que está sendo promovido. Por sua vez, a mudança climática está cada vez mais relacionada à instabilidade na produtividade agrícola. Níveis acentuadamente elevados de dióxido de carbono e, mais recentemente, de metano, lançados enquanto as bordas do Ártico derretem rapidamente, exacerbaram essa incerteza. Esta espiral de feedback coloca a produção agrícola em outros riscos diretos. A mudança climática é mais sobre os eventos climáticos cada vez mais extremos e imprevisíveis do que simplesmente o “aquecimento.” Os arautos destas mudanças são eventos como secas no Centro-Oeste dos EUA, Rússia, Sul da Ásia, o derretimento do gelo e da calota polar do Ártico e inundações no Paquistão, Birmânia e Coreia do Norte. Adicione a esta mistura volátil os instintos predatórios dos negociantes de commodities que buscam lucros de curto prazo na economia especulativa e, é claro, os pobres que estão expostos a níveis crescentes e cínicos de risco. Ativismo contra esta exploração fizeram com que o Commerzbank e vários outros bancos alemães cessassem esse comércio imoral. No entanto, comerciantes especulativos de outros lugares não têm tais escrúpulos. Todos esses fatores cumulam numa tempestade perfeita. Os preços do milho e da soja estão em níveis recordes, acima até mesmo dos preços que chegaram em 2008, com a bolha especulativa. O trigo está indo na mesma direção, como muitas outras culturas importantes. Todos nós vamos sentir o impacto desta tempestade perfeita, mas, mais uma vez, serão os mais pobres entre nós os mais seriamente afetados. Isto tem sérias implicações para a estabilidade social, especialmente nas nações assoladas pelos desafios da pobreza e da desigualdade. Leia também: As raízes da crise alimentar A geopolítica da fome Da fome à obesidade