O fim da era Kofi Annan

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A partir de 1o de janeiro o atual secretário-geral da ONU passará adiante seu cargo após dois mandatos, mas terá deixado sua marca mesmo tendo enfrentado a oposição dos Estados Unidos

Por Por Camila Campanerut   Sua trajetória ficou nitidamente marcada por momentos de aplausos e, em outras ocasiões, pairou sobre ele a desconfiança e a impressão de que ele pouco ou nada poderia fazer. Na prática, ocupou um dos cargos mais relevantes do planeta, o de secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), justamente em um período em que o próprio papel de um dos mais antigos e importantes organismos multilaterais foi duramente questionado. Mas seu tempo nessa função está chegando ao fim. A partir de 1º de janeiro, o economista ganês Kofi Annan deixará seu posto e será substituído pelo chanceler sul-coreano Ban Ki-Moon. Kofi Annan, de 68 anos, dedicou 44 deles à Organização como funcionário de carreira e, só em sua última função (foi o sétimo secretário-geral, desde a criação da entidade, há 60 anos), ficou por dois mandatos consecutivos, que totalizaram dez anos. Sua gestão no cargo máximo da ONU se destaca por uma série de ações, como visitas a diversos países para discutir e incentivar ações nas áreas da saúde, meio ambiente, ajuda a refugiados, entre outros assuntos, com ênfase para o problema da Aids, em relação ao qual manifestou especial interesse por ser também uma causa pessoal. Mas Annan não teve vida fácil em um contexto em que aconteceram mudanças intensas de todas as ordens, políticas e diplomáticas, incluindo conflitos e intervenções militares em todo o mundo. “Ser secretário-geral da ONU é uma das funções mais complicadas que existem no mundo. Depois de eleito, você não tem um ‘partido’ a seu favor. Tem que construir apoios”, definiu o ex-embaixador do Brasil na ONU (1999-2003), Gelson Fonseca Junior, que é atualmente cônsul geral do Brasil em Madri (Espanha). Outra questão fundamental para se avaliar o desempenho da entidade são os seus limites de atuação direta, pequenos em relação às expectativas da opinião pública mundial. “É natural que isso gere frustração. Nesta década, ele passou por um período pior do que o imediato pós-Guerra Fria”, explica o coordenador do curso de Relações Internacionais da PUC-SP e professor da Unesp e Unicamp, Reginaldo Nasser. “O problema mais grave foi a crise dos Bálcãs. Porém, o que marcou o perío¬do foram os vários conflitos civis, as guerras étnicas e o terrorismo. Fatos e processos para os quais a ONU não foi pensada”, avalia. Fonseca Junior destaca duas fases da gestão de Annan, uma boa, outra nem tanto. A primeira, que ele considera exitosa, teve seu auge no biênio 2000-2001. Em 2000, Annan lançou aquele que foi considerado um desafio para o mundo: a Declaração do Milênio, com oito macroobjetivos a serem atingidos pelos países membros até o ano de 2015, por meio de ações concretas dos governos e da sociedade, chamadas de Metas de Desenvolvimento do Milênio. Para o assessor para o Desenvolvimento Humano Sustentável do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), José Carlos Libâneo, Kofi Annan ficará na história da instituição justamente pela iniciativa de propor as Metas do Milênio. “É uma agenda mínima de bem-estar social, concisa e ambiciosa, que reuniu em um compromisso um número recorde de Estados (119)”. Um ano depois, foi criado pela ONU um fundo global para saúde e para o combate à Aids em países em desenvolvimento. Por conta de todas essas iniciativas, em 2001, Annan recebeu o Prêmio Nobel da Paz. EUA e autonomia A marca pessoal de Annan à frente da organização foi um traço significativo e até mesmo inesperado de sua gestão. “Ele foi escolhido com apoio norte-americano por ser uma pessoa neutra e pelo fato de ser oriundo de um país em desenvolvimento, mas se tornou uma personalidade com uma postura independente em relação às grandes potências quando levantou, por exemplo, discussões sobre reformas internas na organização”, pontuou o diretor do Observatório Social, Kjeld Jakobsen. Também por conta dessa autonomia, a ONU sofreu diversos abalos. A dita “fase ruim” de Annan é representada de forma exemplar pelo ano de 2004, denominado pelo próprio secretário-geral como annus horribilis, devido a uma seqüência de escândalos envolvendo a entidade, ele e sua família. Na época, verificou-se que soldados da força de paz foram apontados como responsáveis por abusos contra mulheres no Congo e na Libéria. Enquanto isso, no Oriente Médio, uma comissão externa independente da ONU provou que houve desvio de verbas e recebimento de propina por uma série de empresas e até por funcionários da Organização, por meio do Programa Petróleo-por-Comida (Oil-for-Food). O projeto foi criado com a intenção de ajudar a garantir as necessidades básicas dos iraquianos e funcionou de meados de 1996 até 2003, antes da invasão do Iraque pelos Estados Unidos. Entre as empresas citadas no caso estava a suíça Cotecna, onde trabalhava o filho de Annan, Kojo. As avaliações, porém, descartaram o envolvimento do secretário, embora tenham confirmado o desvio de dinheiro. No entanto, o assunto foi usado por parte da bancada neoconservadora norte-americana para desestabilizar a instituição. Segundo o professor Ladislau Dowbor, que já foi consultor da Secretaria Geral da ONU na área de Assuntos Políticos Especiais (1980-81), este episódio não conseguiu abalar a imagem de Annan. “Ele foi uma presença forte da África no cenário internacional, representou melhor os países de Terceiro Mundo dentro da organização. E os EUA, que queriam uma ONU mais dócil, tiveram que vê-la querendo aumentar seu espaço de negociação mundial. Sistematicamente apostaram contra ela”, comenta. Annan já admitiu publicamente suas frustrações, comentando que durante sua gestão conseguiu poucos avanços nas questões de não-proliferação nuclear, desarmamento e na reforma do Conselho de Segurança. “Penso que se pudesse voltar nos últimos anos, uma coisa que eu gostaria de ter visto é que nós fizemos tudo que podíamos para evitar uma guerra no Iraque, a qual trouxe divisão dentro desta organização e na comunidade internacional. E isso é uma coisa que ainda me atormenta, o fato de uma organização internacional como a nossa não ter sido capaz de fazê-lo”, disse em entrevista coletiva anual, dada em 2005. Mesmo assim, a maioria dos especialistas analisa que, dentro das dificuldades e da oposição norte-americana, o ganês cumpriu uma importante tarefa, ampliando as operações de paz internacionais, com negociações e pedidos para manutenção do diálogo entre países, como no caso da Coréia do Norte e Irã com os Estados Unidos. Além disso, a organização teve atuação significativa com ajuda humanitária na África e no Sudoeste Asiático. “Annan deixa um legado de interesse, compromisso e luta social muito importante”, comenta o atual embaixador brasileiro na ONU, Ronaldo Sardenberg. Ele cita como feitos fundamentais a participação de Annan no lançamento da Central Internacional para a Compra de Medicamentos contra Aids (Unitaid), com recursos oriundos da contribuição sobre passagens aéreas, compromisso no qual 18 países, entre eles o Brasil e a França, já se engajaram. Quanto ao futuro secretário, Sardenberg é taxativo: torce para que ele “siga os passos de Annan no campo social”. F