O legado de Sabotage, a saudade de Maurinho

O amor de Sabotage a sua comunidade o colocou no patamar de Alberto Caeiro, pseudônimo de Fernando Pessoa. Se o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela aldeia do poeta, também não há melhor lugar que a Favela do Canão

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O amor de Sabotage a sua comunidade o colocou no patamar de Alberto Caeiro, pseudônimo de Fernando Pessoa.  Se  o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela aldeia do poeta, também não há melhor lugar que a Favela do Canão Por Igor Carvalho (Revista Fórum), José Francisco Neto (Brasil de Fato) e Jorge Américo (Brasil de Fato) Na altura do número 3.100 da Avenida Água Espraiada, no Brooklin, zona sul de São Paulo, uma porta de madeira é o elo entre a imagem projetada pelo poeta e a realidade. Ali, na apertada, acanhada, acolhedora e mística favela do Canão, um corredor de aproximadamente 20 metros é o que liga todas as casas e serve de passagem aos moradores. No final dele, quatro jovens balançam o corpo ao som de “País da fome”, um dos sucessos musicais de Mauro Mateus dos Santos, o Maurinho, ou Sabotage. O amor de Sabotage a sua comunidade o colocou no patamar de Alberto Caeiro, pseudônimo de Fernando Pessoa.  Se o rio Tejo não é mais belo que o rio que corre pela aldeia do poeta português, também não há melhor lugar que a Favela do Canão. Com a força de sua música, Sabotage fez o pequeno vilarejo onde vivem18 famílias ser quase tão conhecido quanto a Favela da Rocinha, com seus 70 mil habitantes. Considerado uma lenda no movimento Hip Hop, Sabotage começou a carreira em 1998, fazendo parcerias com o grupo RZO (Rapaziada da Zona Oeste). A partir daí, com estilo próprio de cantar e criatividade nas composições, o músico disparou até chegar às telas do cinema nacional. Participou do filme “O Invasor” (2001), de Beto Brant, e também de “Estação Carandiru” (2003), de Hector Babenco. Sabotage ganhou, no final de 2002, o Prêmio Hutus como revelação do ano e personalidade do movimento Hip Hop. No entanto, a ascensão meteórica foi interrompida por quatro disparos à queima-roupa há dez anos. “Eu lembro até hoje o que o repórter falou na televisão: ‘Mauro Mateus dos Santos, conhecido como Sabotage, foi assassinado hoje por volta das seis da manhã', lembra Wanderson Rocha, o Sabotinha, de 20 anos, filho mais velho do cantor. A filha do meio, Tamires Rocha, embora tivesse oito anos de idade, ainda recorda com detalhes aquela manhã do dia 24 de janeiro de 2003. Ela conta que estava junto de seu irmão se arrumando para ir à escola. “Foi aí que um vizinho nosso, o Diego, bateu na porta da nossa casa e disse que minha mãe tinha ligado e que era pra gente não sair. Foi quando, na televisão, falou ‘Sabotage’. O pai do Diego desligou a TV e falou pra gente subir para o quarto. Só que a televisão do quarto estava ligada, aí ouvimos a notícia. Meu pai tinha sido baleado”, lamenta Tamires. Na data em que sofreu o atentado, Sabotage viajaria para Porto Alegre (RS), onde, no dia seguinte, seria atração surpresa em uma das atividades do Fórum Social Mundial. Coincidência ou não, no dia 25 de janeiro, em meio aos anseios dos povos por transformações estruturais na sociedade, nascia o jornal Brasil de Fato. Exemplo Chamado Maestro do Canão, Sabotage colecionou afetos no lugar onde viveu. “Nossa comunidade passou a ser reconhecida depois das músicas dele. Ele falava nossa realidade”, relata Tatiane Cristina, 32, moradora do Canão e amiga do rapper desde a infância. “Ele nunca mudou o jeito dele. Sempre foi humilde”, conta Lucilene Santos Almeida, que cuida do único comércio do local, um boteco. “Eu vi ele escrevendo a música ‘Respeito é pra quem tem’. Nossa, Maurinho era foda, chega até a arrepiar”, diz emocionada Vilma Maria, 33, que diz se sentir privilegiada pelo legado que Sabotage deixou à comunidade. “As crianças hoje em dia levam como exemplo as músicas dele. A gente também mudou bastante. A gente leva o que ele deixou no coração como exemplo, e vamos passando para as nossas crianças”, diz. Maria Dalva, viúva do rapper, faz papel dobrado na educação dos filhos. Preocupada com o futuro de Wanderson, Tamires e Larissa, ela enaltece a importância do exemplo deixado pelo marido. “Sempre tem alguém oferecendo um caminho errado, e nessas coisas de rua e de crime o pai sempre é mais ouvido do que a mãe. Então eu não sabia, muitas vezes, como resolver isso. Mas graças a Deus nunca aconteceu nada. A maior herança que ele deixou para os filhos é a imagem dele”, desabafa. Resgatado da “boca” “Um negrinho magrelo andando com um revólver na cintura e um pacote cheio de drogas na mão”. A descrição parece cena de um dos inúmeros filmes brasileiros que retratam o tráfico, mas o protagonista é um personagem da vida real: Mauro Mateus dos Santos, que em pouco tempo ficaria nacionalmente conhecido como Sabotage. Parecia impossível, mas os rappers Rappin Hood e Sandrão foram até o ponto de venda de droga (conhecido como boca) determinados a apresentar uma alternativa ao jovem. “Chamei ele pra ir com nós. Ele perguntou se a gente estava falando sério. Eu falei que era isso mesmo, e que nós íamos fazer uma corrida pra ele gravar um CD”, narra Hood. O assunto se estendeu até chegar ao dono da “boca”. Quando soube que Sabotage ia sair da ilegalidade para ingressar no mundo da música, questionou:“Vocês vão levar o menino. Mas e se um dia ele voltar aqui? Eu não vou dar trabalho pra ele, não”. De imediato, Hood respondeu: “Ele não vai mais voltar.” E, realmente, não voltou. Sabotage começou a cantar nos shows dos grupos RZO, Posse Mente Zulu, Potencial 3 e do próprio Rappin Hood. Quando Mano Brown, do grupo Racionais MCs, o viu cantando, se propôs a ajudar o futuro rapper a gravar seu primeiro CD. “Aí entramos pro estúdio com ele. Junto com o Instituto e toda a rapaziada. Lá ele fez o disco ‘Rap é Compromisso’. Todo mundo participou”, lembra Hood. Em pouco tempo, Sabotage se apresentou na MTV, gravou clipe e ganhou visibilidade. Além da música, Sabotage atuou no cinema nacional, participando do filme “O Invasor”, de Beto Brant, onde conheceu e formou parceria com o músico Paulo Miklos, integrante do Titãs. Na sequência, foi convidado para “Estação Carandiru”, do diretor Hector Babenco, interpretando o personagem Fuinha. Sabota versátil Documentarista destaca as incontáveis possibilidades do artista O cabelo espetado - inspirado no rapper americano Coolie -, o flow (estilo melódico) peculiar, a paquera com o cinema e o linguajar típico da malandragem, transformaram Sabotage em uma personalidade insubstituível no rap. Mas o que mais chamou atenção em seu trabalho foi a versatilidade e a capacidade de dialogar com outros ritmos musicais. Tais qualidades são destacadas pelo documentarista Ivan Vale Ferreira, que vem trabalhando no documentário “Sabotage, o Maestro do Canão”, que retrata a vida e carreira do rapper. Ferreira compara a morte de Sabotage com a de renomados artistas. Para ele, Maurinho, como era conhecido entre os amigos, tinha muito a doar para a música brasileira. “Pra mim é como se ele fosse Cássia Eller, Chico Science, pessoas que morreram no auge da carreira. Essa talvez seja a maior falta que ele faz, por ter pensado muito em fazer coisas diferentes e não ter tido tempo suficiente para realizar. A música nacional foi quem mais perdeu”, ressalta. O documentário, que sairá pela 13 Produções, tem previsão de ser lançado ainda neste semestre e trará depoimentos de diversos músicos e pessoas ligadas a ele. O objetivo, segundo Ferreira, é demonstrar “a importância desse artista que misturou estilos e se tornou uma lenda após sua morte.”

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