O Multiculturalismo de resultados

Esse multiculturalismo que se apresenta como exemplo a partir do esporte não corresponde a realidade para quem é negro, filho de imigrante africano, árabe ou de origem hispânica nos chamados países desenvolvidos e até mesmo no Brasil

Foto: FRS RU
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Por André Lobão O bicampeonato da França na Copa do Mundo da Rússia chamou mais atenção pela quantidade de jogadores de origem africana no selecionado de Didier Deschamps do que propriamente pela qualidade de seu futebol. Da mesma forma que aconteceu na Copa de 1998, na mesma França, quando o herói da primeira conquista dos ‘bleus’ era o craque de origem argelina, Zidane, que mostrava como um país de imigrantes poderia ser um exemplo de como o futebol poderia congregar pessoas de diferentes origens e vencer os radicais xenofóbicos. E depois de 20 anos daquela memorável conquista de Zidane, Thuram e cia., a França mais uma vez tenta mostrar que é um país de iguais possibilidades para todos que vivem lá. Apesar de Monsieur Macron, atual presidente francês implantar uma agenda neoliberal de cortes na área social e diminuir o papel do Estado na vida dos franceses. Mas infelizmente basta lembrar da família Le Pen e da extrema-direita francesa para perceber que naquele país as coisas não são tão coesas como seu triunfal time de futebol. Mas deixando de lado essa questão francesa gostaria de relembrar como determinados países considerados potências usaram o esporte para vender a imagem do multiculturalismo e da integração racial através do esporte. Mas que na verdade usam esse conceito apenas como forma de melhorar a imagem de determinado país através de resultados no esporte. O maior exemplo disso, sem dúvida, são os EUA com o atletismo, boxe e basquete, sem esquecer do seu futebol local, ou rugby. A partir dos anos 1960 , período de grandes tensões raciais e luta por direitos civis pela população negra, o que se viu naquele país foi a crescente utilização de atletas negros nessas modalidades e construção de ídolos como Muhammad Ali. Este, aliás percebeu isso, e se revoltou contra o mainstream e sofreu consequências severas por isso, como até um período prisional e tentativa de destruição de sua imagem. O esporte obviamente ao longo do tempo se transformou em um grande negócio do entretenimento. A competitividade e meritocracia mais do que nunca reforçam o ideário do capital nos corações e mentes. E para isso, o negócio precisa de corpos. A velha máxima romana do grande Coliseum de que só os fortes sobrevivem ganha densidade midiática com a inclusão de atletas negros. Jesse Owens foi o “americano” que calou Hitler em 1936, nas Olimpíadas de Berlim, no auge do regime nazista. Pelas quatro medalhas que conquistou nunca foi recebido por qualquer chefe de estado americano e até meados dos anos 1960 continuou não pegando seu ônibus pela porta da frente. No Brasil A própria história do futebol no Brasil mostra como o povo negro se tornou “útil” para a prática do esporte no Brasil. Segundo o site ‘História do Futebol’, no Rio de Janeiro do início do Séc. XX , os negros e mulatos não eram bem vistos para participar das atividades nos clubes que surgiam como o Fluminense e Flamengo. Em 1907, a Liga Metropolitana havia proibido a inscrição de jogadores negros nos clubes filiados. O Bangu repudiou a proibição e abandonou a Liga. O mesmo aconteceu com o Vasco. Fluminense, Flamengo, Botafogo e América deixaram a Liga em 1924 em represália ao Vasco e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), a qual barrou a filiação do Vasco sob o argumento de que o clube não possuía estádio próprio. Na verdade, a AMEA havia proposto ao Vasco a exclusão de 12 de seus jogadores, por coincidência os negros e os operários, em troca de sua entrada na entidade. Mas o Vasco não foi o primeiro clube campeão com jogadores negros e, sim, o Bangu. Nas décadas de 20 e 30 do século passado foram realizados em São Paulo anualmente os jogos Pretos x Brancos, que reuniam jogadores exclusivamente destas raças em lados opostos. Em texto publicado na Carta Capital em abril de 2015, a pesquisadora e filósofa Djamila Ribeiro escreve que em 1950, na final da Copa da Mundo entre Brasil e Uruguai no Maracanã, além da derrota, o Brasil criou um estereótipo: o de que negro não podia ser goleiro. Moacyr Barbosa, mais conhecido como Barbosa, era o goleiro da então seleção brasileira e foi eleito o grande culpado pelo vice-campeonato. Apesar de ser considerado um bom goleiro, Barbosa, que era negro, carregou até o fim da vida, em 7 de abril de 2000, aos 79 anos, o fardo dessa derrota. A partir desse fato criou-se o mito racista do goleiro negro. Era muito comum ouvir comentaristas de futebol, artistas falando de forma taxativa: “goleiro negro não, não lembram do Barbosa?” Em 1958, a comissão técnica da seleção brasileira foi aconselhada a não escalar Pelé e Garrincha durante Copa. O motivo, segundo o psicólogo da seleção: “Pelé era infantil e carecia de espírito de luta, enquanto Garrincha não tinha a responsabilidade necessária para disputar uma Copa do Mundo”, revela a jornalista e mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Angélica Basthi, na obra “Pelé estrela negra em campos verdes”, um dos livros da coleção personalidades negras, lançada editora Garamond. O fato é que a teoria essa tinha um viés racista e não foi levada a sério pelo então treinador, Vicente Feola. Mas se novamente o Brasil não tivesse conquistado aquela Copa? Sem o esporte, uma realidade diferente Mas de volta ao futebol internacional contemporâneo, outros exemplos de seleções europeias que apresentaram uma considerável quantidade de jogadores negros, descendentes de imigrantes africanos, além da França, foram Inglaterra e Bélgica, que figuraram entre as quatro melhores da Copa da Rússia, junto a Croácia, que por sinal era única das quatro finalistas a não possuir um jogador de origem negra. O fato é que esse multiculturalismo que se apresenta como exemplo a partir do esporte não corresponde a realidade para quem é negro, filho de imigrante africano, árabe ou de origem hispânica nos chamados países desenvolvidos e até mesmo no Brasil. Se o recém-campeão do mundo Canté não jogasse bola teria uma vida diferente de 20 anos atrás quando ainda catava lixo pelas ruas de Paris? Assim como Michael Jordan, Magic Johnson, Pelé, Garricha, Zidane, Pogba, Mbappé, Lebron James, Karl Lewis, Mike Tison e tantos outros não corressem, arremessassem, chutassem ou dessem socos teriam alguma oportunidade em pé de igualdade com seus compatriotas brancos?