O partido do evento

Ser de esquerda hoje não tem a ver com declarar-se (ou não declarar-se) como tal, ou pertencer a uma organização que teve esta ou aquela trajetória. É tomar o partido do evento; participar de sua continuidade e expansão, intervindo nele por dentro

Goste-se ou não, pautas como a desmilitarização da polícia ou o respeito aos direitos indígenas, para se realizarem, terão de passar também pelas mediações da política institucional. (Foto: Mídia Ninja)
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Por Rodrigo Nunes*

Jacques Derrida propôs uma distinção bastante conhecida entre “futuro” e “por-vir”: enquanto o primeiro é aquilo que podemos, desde o presente, projetar como esperado ou previsível, o segundo se refere ao inesperado, ao imprevisível, àquilo que chega de surpresa, que nada nos fazia aguardar ou antever. [caption id="attachment_32408" align="alignright" width="360"] Goste-se ou não, pautas como a desmilitarização da polícia ou o respeito aos direitos indígenas, para se realizarem, terão de passar também pelas mediações da política institucional. (Foto: Mídia Ninja)[/caption] Num certo sentido, o verdadeiro evento é aquele que cria seus próprios antecedentes. É apenas retrospectivamente, à luz da eclosão de junho, que podemos descobrir os sinais que anunciavam sua possível chegada: os protestos contra Belo Monte e a reforma do Código Florestal, os milhares de “Guarani Kaiowá” adicionados aos nomes nas redes sociais, a resistência às remoções causadas pelos megaeventos, os ataques aos mascotes da Copa, comemorados neste fim de semana em Porto Alegre com a consigna “O Tatu Não Morreu Em Vão”. Isto porque, embora nos pegue de surpresa, o evento não vem do nada: ele é o momento em que se registra, de maneira inequívoca, que uma transformação dos corpos, das sensibilidades, das palavras e dos desejos ocorreu. É também por isso que ele gera naqueles que afeta um sentimento de transformação irreversível, de que o tempo se divide em um “antes” e um “depois”. Não que tudo mudou, mas que uma coisa mudou, jogando luz nova sobre tudo mais, e criando possibilidades antes inexistentes. Desta forma, o evento gera uma divisão entre um “nós” e um “eles”: aqueles para quem algo de incontornável se produziu, e aqueles que acreditam que nada mudou, que negam que algo tenha mudado, ou que admitem a mudança, mas buscam confundir seu significado. Há exatos quatro meses do início das “jornadas de junho”, este é o antagonismo mais fundamental que recorta a política brasileira hoje: ou se toma o partido do evento, ou se está contra ele. Tomar seu partido significa continuar a extendê-lo no tempo e no espaço, permanecer nas ruas, seguir – das mais diferentes formas, e certamente não de maneira acrítica – participando da construção desta coletividade, deste “nós”, que o evento criou. Acima de tudo, é lutar para manter abertas as possibilidades que ele criou. Ser contra o evento pode assumir várias formas: negar as questões mais profundas que ele coloca e tentar neutralizá-lo com mudanças cosméticas; apostar que nada vai parar o business as usual de uma classe política que se acerta entre si em flagrante desrespeito à vontade expressa nas ruas; reduzir o dissenso a uma questão de ordem pública e tentar calá-lo pela força bruta e pela intimidação; tratar os protestos como sintoma de nada mais que uma incoerência juvenil perfeitamente ignorável até que os “adultos” (partidos, sindicatos e movimentos tradicionais) entrem em cena; corroborar sua desqualificação midiática; omitir-se diante de sua repressão. Uma das marcas principais do novo momento que se abriu em junho é justamente ser o primeiro fenômeno de massa a gestar-se independentemente das organizações de massa que protagonizaram o ciclo político iniciado com a abertura do regime militar: partidos como o PT, sindicatos como a CUT, movimentos como o MST. Isto não significa que os membros destas organizações, em alguns casos as próprias organizações, não tenham apoiado os protestos ou se somado a eles em momentos; mas sim que nunca tiveram seja maioria numérica, seja hegemonia sobre seu conteúdo. Também por conta disso, a visão dos protestos que teve “a esquerda” – isto é, a esquerda institucional, as organizações tradicionalmente reconhecidas como tal – foi desde o início ambivalente. Independentemente do juízo de valor – se é bom ou ruim que o centro do protagonismo tenha passado para outra geração, para fora da política representativa etc. – estamos tratando de um fato. Goste-se ou não, julgue-se as organizações de massa obsoletas ou não, esta é uma das coisas que o evento modificou radicalmente: daqui em diante, a situação em que nos movemos se caracterizará por uma coexistência entre as organizações tradicionais e as frentes, coletivos e redes mais ou menos informais que foram e tem sido os principais atores deste processo. Uma das questões em jogo é, justamente, que forma dar a esta coexistência – complementaridade, competição, tensão, antagonismo? Na verdade, a ambivalência das organizações tradicionais em relação aos atores principais do processo é simétrica à ambivalência destes em relação a elas: não são apenas os limites do estado que estão em questão, mas os limites de um governo de coalizão liderado pelo principal partido da esquerda institucional; não é apenas o sistema político que está sob questão, mas a esquerda institucional enquanto parte deste sistema; não são apenas os mecanismos de representação que estão em questão, mas a representação em si; e assim por diante. É exatamente a radicalidade com que se afirma o problema que põe a esquerda institucional – que, neste ponto, efetivamente teme que algo tenha mudado irreversivelmente – na defensiva. Com sua legitimidade questionada tanto de fato (pelo protagonismo) quanto de direito (pelas críticas diretas ou indiretas), ela acusa os manifestantes de jogar o bebê fora com a água do banho. Na busca quixotesca por uma política sem mediação ou mediadores, dizem, os manifestantes nivelam a política por baixo, tratando “os políticos” e “as instituições” como indiferenciados entre si, opondo-os ingenuamente a um “povo” a quem bastaria que se levantassem os “obstáculos” da representação para que se expressasse e realizasse livremente, flertando assim com um populismo que beiraria – esta palavra tão abusada ultimamente – o fascismo. O problema é que a acusação incorre no mesmo erro que critica: nivelando os protestos por baixo, ouve apenas um marulho sem sentido onde há pautas claramente articuladas (a criação ou defesa de direitos e comuns: mobilidade urbana, direito à cidade, direitos indígenas, desmilitarização da polícia); confunde deliberadamente a desconfiança legítima em relação às instituições com a violência pontual contra militantes partidários ocorrida em junho; deixa de entender os manifestantes nos seus próprios termos para aplicar-lhes uma lógica capaz de descrevê-los apenas pelo que não são (sem direção, sem organização formal, etc.); com frequência reproduz a representação que a mídia corporativa faz do movimento e, no limite, contribui direta ou indiretamente com sua criminalização. Há, aliás, uma curiosa convergência entre uma grande parcela da esquerda institucional e aquilo que ela costuma chamar de  “PIG” (“Partido da Imprensa Golpista”): para ambos, a verdade do movimento estaria não na luta pelo passe livre e contra as remoções da Copa, nas ocupações de câmaras de vereadores e nos protestos indígenas, mas no breve momento em que a agenda pareceu se dissolver num genérico “contra tudo o que está aí”. Tanto a mídia corporativa, que promoveu ativamente a confusão, quanto esta esquerda institucional, que joga com a chantagem de “ou nós, ou a direita”, se comprazem em reduzir o evento a este breve momento – que, infelizmente (para uma) ou felizmente (para a outra), já passou. É importante, contudo, não perdermos de vista o antagonismo real: a oposição importante não é entre “movimento” e “esquerda institucional”, mas entre o “partido do evento” e o “partido da ordem” – no sentido exato de status quo ante, o estado de coisas anterior ao evento. Este antagonismo também atravessa a esquerda institucional, e não apenas o “partido do evento” é o único caminho para aqueles na esquerda institucional que ainda sonham com transformações mais profundas, como estes podem ter uma contribuição importante a dar. Goste-se ou não, pautas como a desmilitarização da polícia ou o respeito aos direitos indígenas, para se efetivarem, terão de passar também pelas mediações da política institucional. Por isso, pelo menos no futuro próximo, a complementaridade entre o movimento e quem quer que se demonstre digno de confiança para ajudar nestas mediações parece uma necessidade. Isto implica uma dupla ironia. Por um lado, os manifestantes terão que depositar alguma confiança em quem, por princípio, não confiam. Por outro, os “representantes” terão de aceitar que a fonte de sua legitimidade está em sua relativa ilegitimidade – que não são protagonistas nem possuem carta branca, mas tem um mandato limitado, condicionado a sua capacidade de servir ao movimento como instrumento institucional. Não se pode tomar o partido do evento sem tomar o partido dos sem partido, isto é, daqueles que foram até aqui os principais protagonistas; só serão bem-sucedidos os interlocutores que souberem respeitar a diferença entre movimento e institucionalidade. Na treva da incivilidade política e policial que se viu no Rio de Janeiro na semana passada, um raio de luz foi o reconhecimento mútuo que se instituiu entre o Sindicato dos Professores em greve e os militantes autônomos e Black Bloc. Mesmo se organizando de formas bastante distintas, com objetivos, táticas e visões de mundo diversas, eles foram capazes de se compreender como parte do mesmo “nós”. Esta mudança faz toda a diferença. Enquanto não reconhecemos o outro como um dos nossos, não falamos para ele, falamos dele; e se falamos dele, falamos dele para um terceiro – para a mídia ou o público, quando nos distanciamos dele, aceitando a traiçoeira fronteira entre “bons” e “maus” manifestantes (hoje entre os “bons” professores e os “maus” Black Bloc, amanhã entre o “mau” sindicato e os “bons” fura-greves etc.); no limite, para a policia, contribuindo para a sua repressão (“nesses pode bater à vontade, porque nem os outros apóiam eles”). Mas se nossas diferenças se expressam sobre o pano de fundo de um destino comum que está em jogo, estamos muito mais aptos a desenvolver a confiança que nos permite, não simplesmente aceitá-las como são, mas criticá-las se necessário, negociá-las, articulá-las, compô-las de maneiras vantajosas para o comum. O cálculo é simples: se transformar a sociedade é aquilo que a esquerda se propõe a fazer, e o ciclo que se abriu com os protestos de junho é a melhor oportunidade para promover transformações profundas aparecida em décadas, no Brasil, ser de esquerda hoje não tem a ver com declarar-se (ou não declarar-se) como tal, ou pertencer a uma organização que teve esta ou aquela trajetória. É tomar o partido do evento; participar de sua continuidade e expansão, intervindo nele por dentro; entender que ele pertence em igual proporção a todxs que o constroem; e criticá-lo como quem resolve diferenças com iguais, não como quem chama a polícia. Se o evento somos “nós”, aliás, talvez este seja o nome mais apropriado para “eles”: seja de farda, seja de terno, todos os que apostam que nada ocorreu, ou que em breve será como se nada tivesse ocorrido, merecem cada vez mais o nome de “polícia”. Rodrigo Guimarães Nunes é professor de filosofia na PUC-Rio, coordenador do grupo de pesquisa Materialismos (www.materialismos.tk) e membro do coletivo editorial de Turbulence (www.turbulence.org.uk).