O peso político do Fórum

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Por meio do FSM, os movimentos sociais se tornaram um ator fundamental para as decisões no mundo de hoje. Os governos têm de considerá-los, queiram ou não?

Por Renato Rovai   Luiz Dulci, mineiro, professor, ex-sindicalista, intelectual e um dos mais importantes ministros do atual governo brasileiro, é figura carimbada nos FSMs. Com exceção da edição indiana, esteve em todas as outras. E é possível vê-lo sempre em diversas atividades. Em Porto Alegre, por exemplo, no ano de 2005, estava na mesa com José Saramago e Eduardo Galeano discutindo a utopia em Dom Quixote. Agora, no Quênia, debatia o futuro do FSM. É curioso como mesmo sendo um membro do governo, sua presença já é tida como a de um ativista. E é com o ativista Luiz Dulci que foi realizada a entrevista que segue, que trata apenas do processo do Fórum. Fórum – Do ponto de vista da participação brasileira neste Fórum, qual a sua avaliação? Luiz Dulci – Considero que este FSM foi um êxito. Havia muito preconceito, muitas dúvidas sobre a viabilidade de se fazer um Fórum na África. Alegavam-se razões logísticas, distâncias etc., mas foi um bom Fórum. Teve uma grande participação de todos os continentes e claro que, sendo realizado aqui, permitiu uma participação mais expressiva dos africanos. Uma presença qualitativa e quantitativa que eles não puderem ter nos Fóruns anteriores por razões materiais. Então foi uma decisão acertada do Conselho Internacional do Fórum tê-lo trazido para cá. Quero também destacar que, para mim, este Fórum foi um êxito não só do ponto de vista da participação, mas também da qualidade dos debates. Naqueles em que pude participar, na mesa, ou aqueles a que pude assistir, foram de alto nível. A presença brasileira também foi marcante. Tivemos mais de 400 pessoas representando o nosso movimento social, os sindicatos, os trabalhadores rurais, os movimentos feministas, de combate ao racismo, pelo meio ambiente, juventude, economia solidária, agricultura familiar, luta contra a Aids, pastorais e tantos outros. Nossa delegação não só foi grande, como muito representativa. Todas as principais ONGs brasileiras estiveram presentes. Talvez tenha sido a maior delegação, fora as africanas, no Fórum. Também acho que nenhum governo teve uma delegação tão grande e representativa como o governo brasileiro. Cerca de 30 companheiros e companheiras de variados ministérios. Todos vindos a convite de entidades. E vieram para trabalhar. Nós sempre participamos do Fórum, desde o primeiro, para trazer nossas experiências, mas não como modelo e sim como contribuição. E para conhecer as dos outros. Mais uma vez pudemos constatar que há um interesse enorme pela experiência brasileira. Tanto dos movimentos sociais como dos governos, sobretudo nas políticas sociais e na política externa, o que é um reconhecimento e uma valorização muito grande ao papel internacional do Brasil. Também vimos experiências de cooperativismo e apoio social na África, de países mais pobres do que o Brasil, que são muito expressivas, das quais poderemos tirar ensinamentos importantes. É com esse espírito que participamos do Fórum, sabendo que ele é da sociedade civil. Mas já que a sociedade civil internacional nos convida e o faz porque tem interesse na experiência brasileira, estamos e estaremos sempre presentes, respeitando a autonomia dos movimentos, do Fórum, mas, ao mesmo tempo, valorizando-o. Uma das formas dos governos valorizarem o Fórum é participando deles, porque isso também é um reconhecimento que nunca a sociedade civil internacional teve tanto protagonismo, tanta importância nas decisões mundiais. E isso se deve sobretudo ao Fórum Social Mundial. Fórum – O senhor participou de praticamente todos os Fóruns, com exceção do da Índia. Como o senhor avalia o atual momento do FSM? E qual a sua opinião a respeito do debate que se dá no Conselho Internacional sobre o futuro do FSM? Essa é uma pergunta para o Luiz Dulci, pessoa física, não para o ministro... Dulci – Participei inclusive de uma mesa a respeito disso. E que bom que você disse que a pergunta é para a pessoa física [risos]. Essa é uma opinião pessoal, de indivíduo, de participante. Acho que o Fórum Social Mundial se consolidou como o principal instrumento de reflexão da sociedade civil no mundo e isso é irreversível, na minha opinião. Às vezes tem mais gente, menos gente, dependendo das condições logísticas, do continente, mas isso não é o principal. Ele é imenso e riquíssimo do ponto de vista intelectual, político, espiritual, social, em todas as suas sete edições. Acho que o Fórum já produziu resultados concretos muito mais significativos do que alguns dos seus críticos imaginam. Ele já tem um peso político inédito nos movimentos sociais, na vida econômica e político-cultural do mundo. Por meio do FSM, os movimentos sociais se tornaram um ator fundamental para as decisões no mundo de hoje. Os governos têm de considerá-los, queiram ou não. O governo conservador espanhol caiu porque desconsiderou a opinião pública e os movimentos sociais da Espanha no que diz respeito à guerra do Iraque. Na França, houve uma tentativa de modificar, numa perspectiva liberal, o sistema público de ensino e ela foi barrada pelos movimentos sociais. E poderíamos citar inúmeros exemplos de outros países. Antes do FSM, os movimentos sociais estavam restritos às fronteiras dos seus próprios países, enquanto o capital há muito tempo já estava globalizado. O poder político conservador já estava globalizado. E os movimentos sociais e de resistência ao neoliberalismo estavam restritos aos seus países. Hoje eles são atores políticos presentes nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), também presentes, mais ou menos institucionalizados, na reforma das Nações Unidas, nas discussões sobre os organismos multilaterais. Isso já é uma conquista extraordinária. Só ela já justifica o FSM. Por isso, na minha opinião, o Fórum deve continuar sendo, no conteúdo e na forma, basicamente aquilo que ele já é. Ele não deve buscar um programa do tipo que têm os partidos políticos, nem penso que ele deva criar estruturas de direção hierarquizadas, centralizadas, baseadas no voto, por exemplo. O que acredito é que ele pode se tornar, se essa for a vontade dos movimentos sociais que dele participam, mais operacional em alguns aspectos, mas de acordo com sua vocação, que é de máximo pluralismo, numa estrutura de mosaico, com pontos de vista diferentes. O que se poderia fazer é que em torno dessas bandeiras do Fórum, que já são comuns e unificam essa rica diversidade de movimentos que participam do Fórum, poderia haver campanhas e mobilizações entre um evento e outro, o que de certa forma já acontece. A riqueza do FSM está em ser da sociedade civil como um todo, por onde transita sua agenda, que não é necessariamente a agenda dos partidos nem dos governos. Isso é bom. Em muitas questões não há sintonia e nem é obrigatório que haja sintonia entre essas agendas. Os governos têm mandatos, que se dão por um período e apresentam aos seus eleitores um plano de ação para ele. O FSM trabalha algumas questões que são para os próximos 20 ou 30 anos. Ou lutas que são ideais civilizatórios, que não serão conquistadas a curto prazo e nem por isso deixam de ser importantes. E o FSM não deve e não pode reduzir o seu horizonte utópico. O que nós devemos buscar, entre os movimentos que fazem o FSM, os partidos políticos de esquerda e os governos progressistas, é uma parceria naquilo que é comum, mas acredito que o FSM deve radicalizar a sua própria vocação a favor da agenda da sociedade civil, pressionando governos e partidos políticos naquilo que ele achar que deve. Fórum – O senhor já está há quatro anos na Secretaria Geral da Presidência da República que coordena a relação do governo com os movimentos sociais. O senhor teria condições de fazer uma avaliação se o FSM mudou a cultura política do movimento social na perspectiva de diálogo e na construção de alternativas políticas? Dulci – Assim como o movimento social de diferentes países contribuiu para criar o Fórum, esse mosaico de culturas políticas, experiências e valores, também contribuiu para enriquecer a cultura política do movimento social de cada país. No caso brasileiro, o que aconteceu – isso é uma opinião também – é que a participação dos movimentos sociais deu a eles uma percepção da importância da luta social internacional. Nossa turma saiu, fez parcerias, acordos de cooperação com o movimento sindical internacional, com ONGs. Por outro lado, os nossos movimentos sociais conheceram outros movimentos que têm experiências maiores que as nossas. E isso às vezes reforça ou faz refletir sobre as suas posições. É um processo de aprendizado, pelo contato direto com outros movimentos, que não pode ser substituído pelas notícias esporádicas da imprensa ou pela leitura de textos. Agora, o movimento social brasileiro já é bastante politizado no bom sentido. É muito independente, muito autônomo. Mesmo quando apóia uma candidatura, como quase todos os movimentos fizeram em relação à de Lula, isso não significa que ele abre mão de sua autonomia. A mesma entidade que propôs o voto nele, no primeiro dia de governo pode estar criticando alguma de suas iniciativas, pode vir a cobrar alguma coisa, às vezes com o dedo no nariz do governo. Nossa sociedade civil, ao contrário das de outros países, consegue dialogar com o governo. Participa das conferências, dos conselhos, de todos os canais que o governo cria pra elaboração de políticas públicas, sem abrir mão de sua coerência e espírito crítico, do seu direito de criticar e mobilizar. Os movimentos que estão aqui são críticos ao governo em diversos aspectos. O que percebo é que essa é a principal contribuição do movimento social brasileiro nos debates do Fórum.