O aborto dos outros

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Embora o aborto seja considerado crime no Brasil, mesmo com todas as conseqüências que isso traz, em duas circunstâncias a legislação brasileira garante o direito
à interrupção da gravidez. No caso de violência sexual (estupro) – desde que consentido pela gestante ou representante legal em caso de incapacidade – ou em situações de risco à vida da mulher. Porém, a desinformação e o preconceito que cercam toda a discussão sobre o aborto acabam impedindo que as pessoas tenham acesso a um serviço que é um direito, além de gerar dúvidas e questionamentos até mesmo nos profissionais envolvidos nesse procedimento.
Em 2005, o Ministério da Saúde reeditou a norma técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes – a primeira versão
é de 1999 –, e trouxe como principal novidade a não-exigência da apresentação do boletim de ocorrência (BO) pelas vítimas de violência sexual para a realização do aborto legal e o acompanhamento social, psicológico e médico necessários.
A decisão de interromper ou não a gravidez cabe a uma junta médica após ouvir as vítimas e apurar as informações.
A nova norma técnica faz parte de uma estratégia do governo federal de distribuir manuais técnicos e cartilhas a gestores de políticas públicas, médicos e hospitais para orientá-los no atendimento à mulher nesta situação, que também inclui a disponibilidade da “pílula do dia seguinte”. Acompanhando exatamente o cumprimento dessa norma, a diretora Carla Gallo realizou uma longa pesquisa e produziu um documentário sobre mulheres que optaram pela interrupção
da gravidez nesses casos.
O filme O Aborto dos Outros, que estreou no dia 5 de setembro nos cinemas brasileiros, retrata a situação das mulheres que, amparadas pela lei, interromperam a gravidez, além de outras que fizeram abortos clandestinos e sofreram as duras conseqüências. Em uma das entrevistas do filme, o médico Jefferson Drezett calcula que 70 mil mulheres morram por ano no mundo em decorrência de abortos inseguros. Uma a cada sete minutos. Confira abaixo a entrevista com Carla Gallo, que dirigiu também outros documentários independentes como Tom Zé ou quem irá colocar uma dinamite na cabeça do século e Hijab – Além do véu.

Fórum – Você acompanhou adolescentes e mulheres em processo de abortamento legal em hospitais públicos em São Paulo. Como foi a construção deste filme sobre um tema tão polêmico?
Carla Gallo –
Tive um tempo longo para produzir o filme. Foram três anos de pesquisa, e nesse período conheci muitos médicos, psicólogos e assistentes sociais que trabalhavam no serviço de atendimento à mulher vítima de violência. Quando comecei a entrar no processo de produção, no início das filmagens, já tinha falado com algumas pessoas que conheciam meu trabalho, sabiam que era uma pesquisa séria e realizamos uma espécie de acordo com eles. Assim, sempre que chegasse uma mulher no atendimento por conta de aborto, eu apresentava o projeto e dizia quais eram as intenções. Elas escolhiam de que forma seria feito o registro no filme, mostrando o rosto ou não, só com a voz e uma parte do rosto etc. e a partir daí cada mulher registrada no filme teve um foco diferente. Muitas outras questões envolvem o aborto, como a vergonha, medo da represália da sociedade e, nos casos de estupro, do agressor também.

Fórum – E quanto à relação com os profissionais de saúde, qual foi a reação deles?
Gallo –
Foi uma coisa bem heterogênea, muitos se abriram e ponderaram que era interessante a possibilidade de discutir esta questão. Mas houve também outros profissionais que não aceitaram ser filmados, porque alguns desses médicos, que trabalham no atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, suas famílias ou mesmo amigos e vizinhos não sabem de seu trabalho, que fazem abortos legais. Para eles também é uma situação complicada e muitos têm medo da exposição.

Fórum – Muitas mulheres quando procuram agentes de saúde ou de segurança com uma situação de violência sexual ou com dúvidas quanto ao direito ao abortamento legal recebem orientações errôneas ou são coagidas a não procurar seus direitos. Como foi seu contato com esses casos e como dialogar para evitar esses problemas?
Gallo –
Infelizmente é comum, no filme mesmo há situações deste tipo retratadas. Mas existe muita desinformação. No processo de pesquisa e produção do filme entrevistei um delegado que sequer sabia do artigo 128 do Código Penal, que garante o direito da mulher ao abortamento no caso de violência sexual ou quando é a única possibilidade de salvar a vida dela. Falta obviamente educação e possibilidades das pessoas cuidarem de seus direitos reprodutivos, conhecerem os métodos contraceptivos. O Estado precisa estimular isso.
O assunto é polêmico, mas se você pensa mundialmente a questão rapidamente chega à conclusão de que os países em que há o aborto legalizado junto a políticas públicas de direitos reprodutivos e educação o número de abortos é menor. No Brasil, ao contrário, temos um número enorme de casos. A pergunta correta é: criminalizar o aborto está resolvendo? Os dados apontam que não, nosso país é um dos que mais aborta no mundo. Na Holanda, Alemanha, Itália, Inglaterra e vários outros, o aborto é legalizado e as taxas de realização dele são infinitamente menores.

Fórum – Esses países que você citou tratam a questão do aborto como saúde pública, mas nem por isso eles são menos ou mais religiosos. Exatamente o contrário do que acontece aqui, que o diálogo é extremamente difícil. Baseado em suas pesquisas e na realização do filme, como você analisa esta situação?
Gallo –
Falta as pessoas baixarem um pouco a guarda em relação à religião e à moral porque isso acaba travando o debate. Como exemplo, sempre cito a pílula do dia seguinte, que não é abortiva. A OMS [Organização Mundial da Saúde] já disse isso e a Federação Brasileira de Ginecologia também. A pílula impede o encontro do espermatozóide com o óvulo ou atrasa a ovulação, mas muitos fatores alimentam os mitos, como a parte da mídia que continua a afirmar que a pílula é abortiva. Isso alimenta toda essa carga de moral e religião e prejudica o debate.

Fórum – Com tantas forças contrárias, o debate sobre o aborto não fica prejudicado a ponto de se inviabilizar?
Gallo
– Acredito que seja um processo lento, existem trabalhos de movimentos de mulheres e de políticos que querem discutir a questão sob outros ângulos. No fundo, somos todos contra o aborto, não queremos que o número de abortos aumente, queremos que as mulheres e os homens tenham seus direitos reprodutivos ampliados. E o que estes movimentos estão tentando fazer é ampliar o diálogo para discutir o quanto é importante falar abertamente sobre o assunto. Legalizar é ter uma política de atendimento amplo, não é incentivar o aborto e sim tirar da marginalidade as mulheres que o realizam e que sofrem conseqüências desastrosas. Condenar alguém por fazer aborto não é justo, e além do mais não adianta nada, mais uma vez os números comprovam.

Fórum – No documentário, a religião é extremamente presente para as pessoas. Você optou por abordar o tema?
Gallo
– Quando comecei a fazer o filme sobre o aborto e com uma perspectiva feminina, a religião começou a entrar pelas próprias mulheres, em momento algum eu perguntava, elas que falavam espontaneamente.

Fórum – Agora você está realizando um ciclo de debates com o filme. Como está sendo a recepção das pessoas?
Gallo
– Por enquanto estamos fazendo em São Paulo e no Rio de Janeiro. Fizemos uma pré-estréia na PUC-SP, mas a PUC-RJ não permitiu. Também realizamos em outras universidades e em comunidades também, como a Nós do Morro, a Cufa [Central Única das Favelas]. O debates estão sendo ótimos, pois por mais que os espectadores tragam resistências eles estão dialogando, o que já é um grande avanço. F

Para saber mais:
Articulação de Mulheres Brasileiras:
www.articulacaodemulheres.org.br
Articulação Feminista do Mercosul:
www.mujeresdelsur.org.uy
Organização não governamental Ipas:
www.ipas.org.br
Católicas pelo Direito de Decidir:
www.catolicasonline.org.br
4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias (2007), filme de Cristian Mungiu
O segredo de Vera Drake (2004), filme de Mike Leigh
O Drama do Aborto: em Busca de um Consenso, de Anibal Faundes e José Barzelatto, Editora Komedi
Direito de decidir: múltiplos olhares sobre o aborto, de Mônica Bara Maia (orgs.), Editora Autêntica