O íntimo da criação de Gilberto Mendes em livro

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A PERSONAGEM PRINCIPAL DO LIVRO VIVER SUA MÚSICA – COM STRAVINSKY EM MEUS OUVIDOS, RUMO À AVENIDA NEVSKIY (Edusp/Realejo), do compositor e maestro santista GILBERTO MENDES, é, sem sombra de dúvidas, a própria música. Em alguns momentos, o belo relato de memórias é um caderno de viagens; em outros, um guia da música do século XX e em alguns casos é até um relato histórico. Mas, em todo o tempo, quem transita pelos fatos, evolui, vai e volta são os sons. Todos eles pelos ouvidos e, principalmente, pela construção do próprio Gilberto.

E, para chegar aos sons, ou até para mostrar o caminho até eles, Gilberto nos dá a chave de alguns lugares, obras e homens imprescindíveis. A célula-mãe de toda a narrativa é Santos, terra natal do compositor, onde através do imenso cais o autor chega ao mundo, particularmente a seus lugares mitológicos e antagônicos. O compositor, comunista, em plena Guerra Fria consegue amar e enxergar Nova Iorque e a importância da cultura estadunidense, os filmes, seus atores e as suas trilhas, os irmãos Gershwin, Jerome Kern, Richards Rodgers. Como também percebe o legado soviético na cidade de São Petersburgo, da música soberba de Stravinsky e Rimsky e a literatura de Nicolai Gogol e Dostoievsky. Com a sua música e sabedoria, Gilberto nos escancara as fronteiras de um mundo entrincheirado. Para ele, tudo é linguagem e toda a linguagem acaba em música.

É surpreendente perceber a sua deferência a ícones da cultura. Assume que visitou tal cidade só porque Stravinsky compôs lá uma determinada obra, se mostra emocionado de estar em tal estúdio de cinema imaginando que por ali estiveram tais e tais atores, compositores e diretores. Se entrega a seus ídolos como um fã de música pop. A eles e consequentemente a seus lugares, deve a sua vida e obra.

Ao mesmo tempo em que passa pelos lugares, compreende cada momento histórico e onde se percebe inserido nele. O drama interno que se estabelece quando ele, comunista, se vê em 1968, em Praga invadida pelas tropas soviéticas causa tanto impacto no leitor quanto a própria aventura em si de ter que escapar do país. Neste momento o autor está dentro de um filme e assume de vez o protagonismo da sua vida.

E a sua vida é a sua música. E é nela que, com o passar do tempo, o maestro se torna uma dos maiores artistas brasileiros contemporâneos. A destreza e a modéstia com que nos revela isso chega a ser desconcertante. Viver sua Música é um diário, um caderno de anotações, onde a alma do criador é devassada pelo próprio. De forma rara nos revela como chegou a tal obra, como elaborou determinado concerto ou trecho e por aí afora. Poucas vezes alguém mostrou tanta intimidade criativa quanto neste livro.

Num primeiro momento, o autor coloca como protagonista principal a música de outros compositores e todas as influências que recebeu. A grande aventura criativa do livro, no entanto, começa de fato quando discorre sobre a sua obra e, principalmente, como chegou a ela.

Antes de tudo, Gilberto emite vários conceitos sobre música e arte de maneira geral que são instigantes, tanto para quem deseja entender a sua obra quanto para quem quer ampliar a sua compreensão do mundo. O compositor, por exemplo, desmorona com o clichê que apregoa a imprensa moderna de que não haveria diferenças entre a música popular e a erudita. Para ele há sim, e muita. E vai mais longe ainda, tanto na demonstração das diferenças quanto quando afirma que a música é a única arte que estabelece esta fronteira.

A partir disso, detalha trechos de sua obra de forma estrutural, colocando todos os atalhos que o levaram a cada uma das notas e passagens. Em muitos casos acompanha o fac-símile da partitura, para elucidar o leitor. Mas que não se assustem os que não são músicos. Toda a trama é construída de forma interessante e acessível e a leitura vale também para quem não é iniciado.

Num dos trechos mais reveladores, o maestro diz que é, no mínimo, três compositores diferentes. Um de vanguarda, que compôs obras irreverentes que chacoalharam principalmente a década de 60; outro clássico moderno que, ao que parece, é o estilo predominante hoje e um terceiro que beira a composição popular, formato que comparece esporadicamente em sua obra.

Momento emocionante e ao mesmo tempo intrigante é o seu relato sobre uma série de sete concertos de música erudita brasileira no Carneggie Hall, em Nova Iorque, onde participaram compositores estabelecidos como Almeida Prado, Jocy de Oliveira, Rodolfo Coelho e ele mesmo, até outros mais novos, como Flo Menezes, Arrigo Barnabé, Tim Rescala e Egberto Gismonti. O maestro não esconde o desapontamento com a falta de informação sobre o evento no Brasil, já que por lá todos os concertos foram sucesso de público e mídia.
A chave da obra, no entanto, está mesmo onde tudo se cruza, ou seja, na realização do Festival Música Nova, que acontece em Santos, cidade natal do maestro, e também em São Paulo. Gilberto Mendes é o grande responsável pela longevidade do festival, que teve a sua primeira edição em 1962. Tudo o que se passa em sua vida, num momento ou outro, obras, amigos, viagens etc. ao menos esbarra no Música Nova e é detalhado no livro.

Gilberto Mendes é uma referência. O curioso é que quando resolve contar a sua vida toma todos com quem se relacionou e que tiveram relevância como referência para si próprio. Deixa claro, ao fim do seu relato, que não seria nada sem os outros. E, a despeito da sua modéstia, percebemos também que não seríamos os mesmos sem ele nesse mundo.