O Santo Daime e o terrorismo midiático

Por que a grande mídia preferiu reduzir a religião do Santo Daime ao uso do chá e ignorou princípios cristãos que são amplamente aceitos na sociedade.

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Por que a grande mídia preferiu reduzir a religião do Santo Daime ao uso do chá e ignorou princípios cristãos que são amplamente aceitos na sociedade.

Por Marília Melhado

A religião do Santo Daime virou assunto nas últimas semanas desde o assassinato do cartunista Glauco Vilas-Boas e do seu filho, Raoni. Canais de televisão, jornais e revistas noticiaram que o estudante Carlos Eduardo Sunfeld Nunes teve um quadro psicótico que o motivou a praticar o crime e cansaram de fazer ilações com o uso do chá do Santo Daime - mistura de duas plantas nativas da Amazônia.

Por e-mail, a antropóloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoactivos (NEIP), Beatriz Labate, disse estar farta de toda a exploração leviana sobre o tema. A pesquisadora se diz incomodada principalmente por conta de reportagens como a que virou capa da revista Veja sob o título “Alucinação Assassina” e da nota “Liberado”. Na última estava escrito, em tom de deboche, que o governo federal deixou o pessoal ficar “viajandão” no Daime para respeitar a liberdade religiosa. “Se alguém criasse uma religião batizada, digamos, Santo Pirlimpimpim, baseada em aspirações mágicas da cocaína, o Planalto também oficializaria o consumo?”, publicou Veja.

Beatriz lamenta que, entre outras coisas, a revista ratifique estereótipos culturais “bastante negativos ao se referir à ayahuasca  como alucinógeno e a este movimento religioso como seita”. A pesquisadora frisa que a discussão sobre o que levou o estudante a matar o cartunista e o filho deveria respeitar a pluralidade de religiões, lembrando que, logo após a morte de Glauco, a imprensa foi até respeitosa ao procurar tentar conhecer o lado de líder religioso do famoso cartunista. “Parecia que era a primeira vez que o Daime era retratado na mídia não como um problema, mas como uma religião legítima”. Porém, com a revelação de que o assassino já tinha frequentado a igreja, ressurgiu a velha abordagem eivada de preconceitos.

A professora-doutora em Comunicação e Semiótica, Malena Segura Contrera, avalia que a grande mídia perdeu a noção dos compromissos que ela tem com a sociedade. “Um deles é de não ser tablóide meramente. Acho válido alguém debater ou até mesmo falar mal da ayahuasca, mas não na mídia. Esse espaço deveria ser preservado para a discussão e a diversidade social”, defende. Malena também acredita que faltou profundidade e isenção dos meios de comunicação.

Além da influência xamânica do chá de ayahuasca, o Santo Daime tem influências cristãs. O exemplo de conduta cantado nos hinos daimistas também é ensinado no catolicismo e protestantismo, como “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”. O nome da igreja fundada pelo cartunista Glauco, por exemplo, é “Céu de Maria” – Maria é mãe da figura central do Cristianismo. Por que então as reportagens da grande mídia ignoraram esses princípios que são amplamente aceitos pela sociedade? “Foi apenas explorada a bebida ayahuasca. Como se o Santo Daime fosse só o chá. Acho que essa simplificação da religião criou uma visão destorcida. A mídia trouxe reportagens totalmente impregnadas de valores de pessoas que abominam qualquer tipo de religião que não seja a sua”, critica Malena, que lembra que hoje a grande imprensa é essencialmente católica ou evangélica.

Para Edward Macrae, pesquisador e autor do livro Guiado pela Lua - Xamanismo e Uso Ritual da Ayahuasca no Culto do Santo Daime, a abordagem da mídia reforça a tentativa dos conservadores de promover uma campanha de proibição total e irrestrita contra as drogas. “A proibição em si não funciona. Cada substância tem que ser encarada de uma forma diferente. Como o Daime é um exemplo de regulamentação, eles estão atacando isso”, pontua Macrae.

O que pouco se comentou é que o assassino confesso do cartunista e do filho tinha uma provável herança genética ligada a esse transtorno mental. A mãe e a tia-avó do estudante sofrem de esquizofrenia, e segundo relatos do pai – publicados pelos meios de comunicação –, Cadu estava apresentando os mesmos sintomas. Malena explica que o chá não pode ser encarado como a causa do transtorno do jovem. “Ninguém vai se tornar esquizofrênico porque tomou o chá. Há muito tempo a ayahuasca existe e isso nunca aconteceu. Ou seja, a bebida caiu na mão de alguém que já tinha um quadro de psicose em potencial e tudo se desencadeou. Como poderia ser com a maconha ou com o álcool”.

Ela lembra ainda que a dependência do álcool gera inúmeras tragédias e mesmo assim a imprensa não repudia a bebida com uma enxurrada de matérias. “Isso porque existe uma grande indústria desse produto que paga os salários da mídia”. Beatriz Labate concorda. Ela acredita que o quadro problemático do assassino – com casos de esquizofrenia na família e usuário abusivo de drogas – poderia ter sido, no máximo, agravado pelo consumo da ayahuasca.

Frequentador daimista há seis anos, Marcos Cruz afirma que a sociedade conservadora ataca o uso do chá por causa da falta de informação. “A substância ajuda os adeptos a transcender o autoconhecimento, mas muita gente não entende isso”, analisa. “E o chá não é viciante”, garante Cruz. Ele explica que a maioria dos adeptos que têm algum vício encontram no chá a consciência necessária para abandonar a dependência química.

Cruz diz que todas as igrejas do Daime fazem uma entrevista com as pessoas que têm interesse em participar do ritual. Quem toma remédios controlados ou sofre de algum transtorno mental não é liberado para tomar a ayahuasca. “As pessoas esquizofrênicas são proibidas de tomar o chá. Provavelmente, o estudante que matou o Glauco omitiu a verdade”, diz Marcos. “E a última vez que o assassino tomou o chá foi três meses antes de matar. Ou seja, ele não estava sob efeito da ayahuasca, porque ela só age por cerca de quatro horas”, explica Marcos.

Estudo aprofundado sobre o Daime A tese de doutorado em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Ceará, de José Erivan Bezerra Oliveira, analisou o fenômeno do Santo Daime – movimento religioso do qual ele faz parte. Nela, Oliveira escreve que há uma certa tendência em tentar reduzir a religião ao efeito do ayahuasca. Ele diz que o efeito da bebida em combinação com os hinos, que trazem ensinamentos de moral e boa conduta, “é responsável em muitos casos pela coesão social do grupo, pela manutenção da ordem e pela estruturação das relações sociais”.

Na tese, Oliveira lembra que a perseguição de parte da mídia sobre o Daime não é nova. Em meados dos anos oitenta, reportagens foram publicadas, no sul do país, de forma preconceituosa. Naquele momento, o Daime passava por uma nova fase, e os primeiros litros do chá foram levados para outras regiões do Brasil, onde novas igrejas eram formadas. O país dava-se conta de que tinha se formado na Amazônia uma nova religião, que alguns acreditavam ser uma seita apocalíptica. Oliveira descreve que havia ainda o medo no governo, recém-saído da ditadura, de que a comunidade Daime do Padrinho Sebastião se transformasse numa nova Canudos.

O autor escreve que o chá é, acima de tudo, um veículo de correção material e espiritual, à custa de sofrimentos, assim como um meio de apreciar belezas e primores da vida. Ressalta que sempre haverá, como em qualquer outra religião, os adeptos rebeldes, os descontentes, os zombadores. “Mas a função do professor do Santo Daime é mostrar o caminho e ensiná-lo aos quiserem aprender”, pontua.

Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum 85. Nas bancas.