Ode ao Magrão

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Há figuras que parecem destinadas a desferir permanentes socos da cara da hipocrisia, e o Doutor Sócrates, o mais brasileiro dos boleiros, é uma delas. Na segunda metade da década de 70, quando despontou no Botafogo de Ribeirão Preto, Magrão era uma ave rara no mundo das já pasteurizadas entrevistas de jogadores de futebol, amestrados para repetir os mesmos lugares comuns do “respeitamos o adversário” e “esperamos conseguir os três [então dois] pontos”. No Brasil da ditadura, Magrão era uma espécie de anúncio do que podia vir, lufada de ar fresco de uma democracia que, ainda hoje, permanece de realização incompleta. A Democracia Corintiana talvez tenha sido o mais importante momento político da história do futebol brasileiro. Que me desculpem Olivetto e Travaglini, mas Magrão foi sua cabeça e alma. Sem ele, nada daquilo teria acontecido. Que me perdoem igualmente os são-paulinos, mas aquela vitória do Corinthians por 3 x 1, na final do Campeonato Paulista de 1982, foi um dos maiores atos de justiça dos deuses do futebol. Não porque a equipe alvinegra fosse superior à tricolor. Aliás, era justamente o contrário: o Corinthians tinha um gênio – o próprio Magrão –, um craque (Zenon) e um artilheiro em grande fase (Casagrande). O resto era puro amor à camisa alvinegra: Wladimir, Biro-Biro, Ataliba, o goleiro Solito. No papel, era pouco ante o São Paulo, que tinha certamente a melhor defesa do Brasil: Waldir Perez, Getúlio, Oscar, Dario Pereyra e Marinho Chagas. Do meio pra frente, mais dois craques, Zé Sérgio e Renato, além de Serginho Chulapa, que saiu queimado da Copa de 1982, mas que sempre foi um demônio em Campeonatos Paulistas. Era a Máquina Tricolor, bicampeã estadual de 1980-81, campeã brasileira de 1977, vice-campeã brasileira de 1981. O jogo foi muito mais difícil que o 3 x 1 te levaria a crer. O primeiro tempo, violentíssimo, terminou em 0 x 0, o terceiro gol corintiano só saiu no finalzinho e o São Paulo teve um gol anulado quando a partida estava 1 x 1. O primeiro gol do Corinthians é uma espécie de alegoria da Democracia Corintiana. Aos trancos e barrancos, capotando, tropeçando, na base do puro amor, Biro-Biro sai na cara do gol e dribla Waldir Perez. Mas é o começo da jogada que importa aqui: Biro-Biro entrega a bola, na entrada da área, para um Sócrates acossado por dois dos maiores marcadores do Brasil, Oscar e Dario Pereyra. De costas para o gol, no meio de um tráfego absurdo, não havia o que fazer com a bola ali, a não ser a jogada que imortalizou Magrão: uma única cutucada de calcanhar e toda a defesa do São Paulo fica paralisada. Biro sozinho na cara do gol. *** Em Londres, certa vez, saímos para tomar umas biritas, só os dois, únicos sobreviventes de uma cervejada oferecida pelo Festival de Literatura da cidade. Como já era mais de meia-noite, não encontramos nenhuma opção para tomar uma cerveja tranquilos, num bar. Só entrando em discoteca. Escolhemos uma com volume e seleção musical mais toleráveis e entramos. Lá pelas tantas, um garoto de não mais de 25 anos (sem idade, portanto, para tê-lo visto jogar), britânico com certeza, reconheceu Magrão e começou um longo discurso de amor pelo futebol do gênio. Enquanto eu fazia o possível para traduzir o português único, irrepetível do Magrão, com Beatles rolando na pista de dança, o garoto me olhou e perguntou: “você viaja com ele ao redor do mundo?”. Meio atônito, digo que não, que tenho meu próprio trabalho. Quando o garoto pergunta qual é meu trabalho, com aquela cara de “o que pode ser mais importante que trabalhar como tradutor de Sócrates?”, respondo que sou professor de literatura numa universidade dos EUA. Recebo de volta uma pergunta com tom de quem está dizendo a coisa mais óbvia do mundo: “por que você não larga isso e fica só de secretário dele?” O garoto, repito, não tinha mais de 25 anos. Seria exagero eu dizer que sou amigo de Magrão, embora ele já tenha insistido com ênfase que mereço a honraria. Nas poucas vezes em que estive com ele, duas coisas me assombraram. A primeira foi a completa de ausência de hipocrisia, até mesmo daquela que rege as nossas banais interações do cotidiano. Não há tema proibido, não há meias palavras, não há aquele cálculo medíocre com que medimos o efeito do que dizemos. Um dos atletas mais políticos da história do esporte brasileiro, Magrão certamente não tem nada de “político” no sentido vulgar do termo: jamais esconde o que pensa – não tem papas na língua para dizer, por exemplo, o que acha sobre o ex-goleiro Leão – e, como tal, não serviria para se candidatar a nada, apesar de conhecer e entender a política melhor que 90% dos nossos representantes eleitos. O meu segundo choque diz um pouco sobre a absurda generosidade de Magrão. Ele não só atende com atenção qualquer pessoa que chegue querendo um autógrafo, uma foto, um bate-papo ou um abraço. Ele jamais faz o movimento de encerrar a conversa, por mais chato que seja o interlocutor. Caminhar com Magrão rumo a um compromisso de hora marcada é algo de enlouquecedor, porque é impossível saber quanto tempo você se atrasará. O lembrete acerca da ojeriza de Magrão a qualquer hipocrisia tem relevância renovada agora, que ele enfrenta complicações de saúde obviamente relacionadas ao seu amor pela birita. Já vi jornalistas escrevendo que as “coisas podem se complicar” porque o tratamento “depende que Sócrates assuma que é alcoólatra”. Isso é de tremendo oportunismo, porque Magrão jamais escondeu que gosta mesmo de biritar. Que sua doença não sirva para que os moralistas de plantão afiem suas garras, porque foi o próprio gênio quem repetiu, já, um milhar de vezes: não se arrepende de nada, faria tudo de novo, viveria do jeito que tem vivido se lhe dessem uma segunda oportunidade. Apoios a ele, por favor, sem moralismos e sem hipocrisia. Magrão é nosso Nietzsche, nosso Zaratustra.

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