Opinião: Os árabes e a mídia

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Na Semana Nacional pela Democratização da Comunicação e da Cultura, entre 11 e 19 de outubro deste ano, que em São Paulo incluiu diversas atividades com a participação de inúmeras organizações da sociedade civil, não ficou de fora o tema da representação dos árabes e muçulmanos pela grande mídia brasileira. Geralmente são apresentados em noticiários como “uma coisa só” e habitantes ou originários de região absolutamente uniforme. Poderia se alegar apenas ignorância de que nem todo árabe é muçulmano – esses compõem universo muito mais amplo – e o dito “Oriente” é uma massa bastante diversa. Não é tão simples assim. Com as generalizações e deturpações, a mídia adere ao discurso capenga e falacioso de choque civilizacional, reavivada nos anos 90 pelo ideólogo estadunidense e conselheiro de Bush, Samuel Huntington e demonstra a visão orientalista denunciada pelo escritor palestino Edward Said em sua obra “Orientalismo”, que neste ano completa 30 anos e se mantém incrivelmente atual. Por essa ótica, nas palavras desse grande intelectual, falecido em 2003, enquanto os “ocidentais” são pacíficos, racionais, lógicos, capazes de ter valores reais, os “orientais” encontram-se no outro extremo. São os “terroristas e extremistas” de plantão, “rebeldes e radicais” prontos a atacar o Ocidente civilizado, que apenas reage e se defende. Coloca-se no mesmo balaio-de-gatos resistência – direito reconhecido pela própria ONU (Organização das Nações Unidas) – e terrorismo.

A forma caricata com que os árabes e muçulmanos são retratados pela mídia, sob uma capa de pretensa imparcialidade, balizada pela confusão e pela omissão histórica, serve de sustentáculo para a dominação do “outro”. As reportagens sobre o mundo árabe normalmente o associam à violência, à barbárie, à opressão às mulheres. A forma espetaculosa e fragmentada leva a crer que essa é sua essência. O teórico Benjamin Abdala Junior lembra que essa estratégia não é nova. A mídia brasileira tende a reproduzir os modelos ideológicos da antiga fábrica de mitos, chamada Hollywood. Já foram vítimas de suas caricaturas grotescas também russos, latinos, negros, índios e um sem número de “outros”, que aparecem em suas produções do outro lado da arma, da espada ou da faca. No caso do dito “Oriente”, em especial após 11 de setembro de 2001, sua representação como o mal a ser destruído ganhou reforço extra. Tenta-se apagar, assim, do imaginário coletivo toda a contribuição científica, cultural e tecnológica dos árabes à humanidade.

Ao lado de outras entidades, o ICArabe (Instituto da Cultura Árabe) vem atuando desde sua fundação, em 2004, para que isso não aconteça. Assim, em suas múltiplas atividades visando promover e divulgar a cultura árabe no Brasil, tem desconstruído o discurso hegemônico da mídia e dado visibilidade ao que não chega às telas da TV. Afora iniciativas pontuais como essa, e que infelizmente ainda não atingem a esmagadora maioria da população, não há contraponto à altura. É o monopólio da informação.

Diversos mitos amplamente em voga, como o de que é necessário levar a democracia aos povos atrasados da região, os quais não teriam capacidade para se autogovernar, encontram sustentação nessa ótica. Com isso, mantém-se o status quo e a produção global de excluídos, como os milhares de refugiados palestinos em todo o mundo. Em seu “O poder da identidade”, o sociólogo e professor Manuel Castells aponta que os interesses dominantes são sustentados pelos fluxos globais de capital, poder e informação. A mídia se transforma na arena em que se realizam os principais embates políticos. Nas suas palavras, na era da informação, “quem ou o que quer que vença a batalha das mentes das pessoas sairá vitorioso”. Democratizar os meios de comunicação é, portanto, urgente e parte essencial para a engrenagem de transformação da sociedade global contemporânea.

Soraya Misleh, jornalista, membro da Ciranda Internacional pela Informação Independente, diretora do ICArabe (Instituto da Cultura Árabe) e secretária de comunicação do Mopat (Movimento Palestina para Tod@s)

*Colaborou: Maria Luzia Carvalho de Barros, mestranda em estudos comparados pela USP (Universidade de São Paulo), bolsista Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)