Opinião: Porque o império dos EUA tolerou a eleição de um afro-americano

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Nunca uma eleição estadunidense repercutiu tanto na opinião pública como a recente que levou à presidência o afro-americano Barack Obama. Mereceu até caderno especial Mais da Folha de S. Paulo (em 09/11) em que um dos artigos afirma taxativamente que Obama não é negro, é “mestiço”. Não foi o que se viu na campanha ultraconservadora dos republicanos, desesperados ante a derrota fragorosa que se avizinhava às vésperas do pleito.

Há também entusiasmos exagerados do outro lado. Alguns militantes do movimento negro brasileiro chegaram a dizer que a eleição de Obama demonstrava que nos EUA há mais “tolerância racial” que no Brasil. A eleição de um operário metalúrgico no Brasil não significa que aqui as relações de classe são mais “igualitárias”. Comemorações à parte, prudência nas reflexões sempre é importante.

Gostaria de fazer uma reflexão sobre este episódio lembrando duas referências teóricas que povoaram o pensamento conservador hegemônico nos Estados Unidos logo após o fim da Guerra Fria, ambos muito bem sintetizados por Perry Anderson em uma conferência proferida no Brasil em 1996 e publicada pela revista Praga (Editora Boitempo, 1997).

O primeiro é o famoso “fim da história”, de Francis Fukuyama, de 1993. O pensador nipo-americano preconizava que a vitória dos EUA na Guerra Fria encerrava o ciclo de combates ideológicos que movia a história e, assim, a humanidade iria desfrutar do triunfo universal do capitalismo. Esta obra foi concebida no Departamento de Estado do governo de Ronald Reagan e serviu como parâmetro tecno-ideológico para a avalanche conservadora que colocou a esquerda na parede – o fim da história significava o fim da Política e a emergência de uma Sociedade Administrada, de que tanto temiam os teóricos da Escola de Frankfurt. Daí a incorporação de valores típicos da esfera econômico-privada no âmbito da esfera política, como eficiência, produtividade e mérito técnico fortalecendo a ocupação dos aparelhos políticos por tecnoburocratas.

Este pensamento não foi unânime no campo da direita. Samuel Huttington, em 1993, lançou a idéia do Choque das Civilizações em que o modelo capitalista poderia ser ameaçado não mais com um inimigo sistêmico, mas sim com sociedades cujos parâmetros culturais e civilizatórios são distintos da tradição ocidental. Huttington afirmava que a grande batalha dar-se-ia entre o modelo ocidental e o “resto” – experiências de sociabilidade que não tenham os parâmetros do individualismo, liberalismo, consumismo, modelo de democracia representativam entre outros. O pensamento de Huttington foi a base para a agressão dos governos republicanos (Bush pai e filho, principalmente) aos países do Oriente Médio dentro da política da “guerra preventiva ao terror”, bem como toda a sorte de xenofobias e modelos reciclados de nazi-facismos não só nos EUA mas em vários países europeus.
Em 1995, Fukuyama lança nova obra – intitulada Trust – em que defende que o capitalismo como modelo universal de sociabilidade é um denominador comum que irá mediar as diferenças culturais de que teme Huttington, podendo absorvê-las institucionalmente. Fukuyama afirma que o conflito se desloca, dentro desta matriz, da esfera da guerra para a pacífica esfera da competição do mercado. O capitalismo seria assim, o processo de “civilização” das diferenças culturais.

Barack Obama percorreu um longo e difícil percurso, desde a sua indicação pelo Partido Democrata até ser eleito presidente. Neste percurso, a questão racial foi sempre lembrada pelos seus adversários, mesmo os seus correligionários. A estratégia para vencer em um país com apenas 13% da população de afrodescendentes e com um histórico de racismo explícito foi tentar se mostrar como “palatável” para os brancos e um legítimo representante do pensamento liberal. Obama contou com uma crise de lideranças crescente na sociedade estadunidense, conforme atesta pesquisas da Universidade Harvard (a imprensa, por exemplo, tida como uma das instituições mais respeitadas pela opinião pública dos EUA, ficou nos últimos lugares no quesito credibilidade).

Os alicerces da sociedade liberal estadunidense estão seriamente abalados. Bush pai e filho tentaram explicar esta crise pela “ameaça” do “resto”, mas esta política – mais próxima do pensamento de Huttington – mostrou seu esgotamento.

Na ausência de alternativas mais progressistas, a saída que se vislumbrou nos EUA foi acreditar que o capitalismo liberal pode ser um elemento que pode absorver as diferenças – e nada mais simbólico que a indicação de um afro-americano para “liderar” este processo. Não é a toa que Fukuyama apoiou Obama. É o novo dentro do capitalismo, mostrando que o sistema capitalista ainda tem fôlego para renovar e se reciclar.

Simbolicamente, este discurso ganhou força. Porém, a sua manutenção dependerá da real mudança que poderá garantir junto àqueles que mais necessitam de uma mudança, as classes subalternizadas. Clóvis Rossi, em sua coluna na Folha de S. Paulo de 14/11/08, informa que os executivos-chefes das 500 maiores corporações dos EUA ganharam em 2007, em média 344 vezes o pagamento médio do trabalhador estadunidense. Os gerentes dos 50 fundos hedge receberam, cada um, mais que 19 mil vezes o salário médio dos EUA. O lema “we can change” de Obama não é apenas a sua figura mas a sua real capacidade de ser um change na vida do cidadão comum, em especial os mais atingidos pela política de brutal concentração de renda dos governos republicanos. Caso contrário, será mais uma desilusão.

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Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, presidente do Celacc e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro (Neinb/USP).
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