Opinião: Sangue e Tinta: agora, sobre a cultura iraquiana

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Se a falsa propaganda e as justificativas políticas da invasão anglo-americana ao Iraque são hoje bem conhecidas do mundo, seus efeitos trágicos e repercussões, além das atuais guerra e ocupação, são quase impossíveis de medir e superestimar. A destruição do Estado iraquiano e de todas as suas instituições resultaram em um caos violento no nível sóciopolítico. Como um Estado e uma sociedade, o Iraque já estava enfraquecido por guerras anteriores, com o Irã, de 1980 a 1990, e com os Estados Unidos, pela primeira vez, em 1991. Vamos nos lembrar que o general americano Schwarzkopf vangloriou-se, em 1991, de os Estados Unidos terem “bombardeado o Iraque até a Era pré-industrial”.

A guerra foi seguida pelas mais severas sanções econômicas da história moderna, de 1990 a 2003, nas quais a classe média iraquiana foi erodida e com as quais foi criado um vazio socioeconômico. Um milhão de civis morreu por causa do embargo e alguns poucos milhões, a maioria de iraquianos educados e uma classe média secular, deixaram o país em uma diáspora que se expandia. Por volta de 2003, o tecido social do país já estava severamente enfraquecido por todos esses fatores e por décadas da ditadura horrenda de Saddam. A invasão e a ocupação removeram a ditadura de Saddam, mas, com uma análise posterior dos fatos, isso parece ter sido uma consequência e não o objetivo.

A ocupação desmantelou o Estado iraquiano e suas instituições (o exército, a polícia e os ministérios) e criou um vazio político por alguns meses antes de ver instalado um sistema político baseado no sectarismo e nas milícias no qual as únicas moedas de valor político são a religião e a etnicidade. Uma guerra civil logo seguiu e milhões, especialmente as minorias religiosas, foram forçadas a deixar o país e tornar-se refugiados. Centenas de milhares perderam suas vidas.

Tudo isso teve efeitos trágicos no nível cultural também. Milhares de escritores iraquianos e artistas escaparam da ditadura de Saddam ainda cedo, nos anos 1970 e 1980, mas muitos mais partiram durante as sanções econômicas nos anos 1990. É difícil subdimensionar as condições calamitosas sob as quais os iraquianos viviam nos anos de 1990. O colapso do dinar iraquiano e da economia como um todo pode ser imaginado com um simples exemplo: o salário de um professor podia comprar dois ovos. O custo do transporte, de ida e volta, ao trabalho por vezes excedia o salário. Escritores e artistas, assim como companheiros cidadãos, foram forçados a tomar outras profissões e vender seus pertences, especialmente livros, para sobreviver. A falta de papel fez com que não fosse surpresa ver um sanduíche shawarma embrulhado por uma página arrancada de um livro. Muitas das publicações, que proviam algum tipo de discussão interna, foram descontinuadas, assim como as oportunidades para publicar ou disseminar o trabalho de alguém. O embargo afetou a habilidade do Iraque conectar-se à Rede Mundial. Igualmente importante e desastroso foi o isolamento em relação ao resto do mundo e a impossibilidade de ter-se acesso a livros, revistas acadêmicas, etc... por parte de escritores e artistas que viajavam e atendiam a conferências e festivais. O senso de isolamento e abandono se manifestaria na produção cultural do período, na forma e no conteúdo, especialmente na escrita.

É importante, também, lembrar o espírito de recuperação e resistência humanas daqueles que se recusaram a serem derrotados pela opressão dual imposta a eles vinda tanto de dentro quanto de fora.

O vazio, político e de outras formas, produzido pela invasão e pela ocupação desde 2003 foi preenchida pelo caos em todos os campos - cultural, institucional e outros - sem exceção. A profusão de jornais e outros escapes e alternativas de mídia são celebrados, por vezes, como uma consequência positiva da situação. Enquanto o crescimento do espaço de expressão e comunicação é sempre positivo em princípio, um breve olhar em muitas dessas publicações e alternativas é suficiente para refletir sobre sua natureza problemática. Apesar de poucas exceções, as tendências tribais e sectárias podem ser facilmente detectadas nos pontos de vista e discurso. O caos e a confusão no campo da política têm eco na cultura também. Infelizmente, as práticas e os discursos de Saddam são recuperados. O conteúdo pode ter mudado, mas não a forma e os métodos. Ironicamente, mas não apenas para a surpresa de alguns de nós, mesmo os Estados Unidos replicaram algumas dessas práticas que fizeram Saddam notório no campo cultural. Tinham, antes mesmo da invasão, seduzido e contratado intelectuais iraquianos e escritores que estivessem dispostos a trabalhar como porta-vozes.

Mais importante, talvez, é que as condições diárias sob as quais os iraquianos vivem, sejam escritores e artistas ou não, deteriorou-se a níveis sem precedentes, fazendo da vida um pesadelo. A falta de necessidades básicas (eletricidade ainda não voltou aos níveis pré-guerra e escritores reclamam disso em websites), a falta de segurança e liberdade de movimento, a violência incessante das milícias e o crime ocasional faz muito difícil o ato de produzir ou comunicar. A destruição do sistema educacional do Iraque sofreu vários golpes sob o Baath e depois por causa das sanções contínuas. Até hoje 350 professores universitários foram assassinados. Este é um número absurdo para um país que já sofreu o êxodo de sua intelligentsia e de seus educadores.

Apesar da falta de eletricidade e do severo sofrimento econômico, é no ciberespaço onde muito do tráfico cultural está tendo lugar, pois obviamente permite discussões mais elevadas. É também no ciberespaço onde os escritores iraquianos de dentro do Iraque e aqueles na diáspora estão encontrando-se mais freqüentemente, mesmo que nem sempre amigavelmente. Há, surpreendentemente, alguma tensão por vezes e algumas embate entre aqueles que ficaram e os que fugiram. Enquanto o ciberespaço permite uma maior liberdade e menos restrições, é também objeto para o caos e a falta de regras.

A cultura iraquiana encontra-se em um paradoxo único. A grande maioria de seus escritores e artistas vive fora do Iraque. Eu não estou de forma alguma menosprezando ou descartando a importância daqueles que estão dentro, mas é uma realidade material que um número desproporcional de escritores e artistas iraquianos, assim como cidadãos em geral, vivem hoje na diáspora. Assim como em outros momentos da cultura da diáspora, muitos desses exilados iraquianos estão interagindo com os países, línguas e cultura que os receberam e enriquecendo-os. Muitos deles iniciaram projetos, instituições e revistas e fazem traduções, nos dois sentidos, entre o árabe e outras línguas. Alguns estão escrevendo nas novas línguas que adotaram.

Em um momento em que o Iraque e suas história e memórias estão sendo engolidos por um gigantesco buraco negro de destruição e desmembramento, a tarefa de escrever, reescrever e preservar as narrativas iraquianas e opor-se ao que o Império e seus escribas, por um lado, estão jogando pelo ralo, e por outro a milícia cultural está tentando institucionalizar, torna-se duplamente importante. Por essa razão, a tarefa e o ônus, para não falar da urgência, da produção cultural atual e futura é ainda mais indispensável preservar a memória e guardá-la. O desafio e as responsabilidades encarando os produtores culturais iraquianos são as de que são os últimos guardiões do significado e da memória, para usar uma frase de Hanna Arendt, e há milhões de fragmentos para carregar e reconstruir dos escombros com a paciência de Sísifo.

Sinan Antoon, poeta nascido no Iraque e tradutor. Publicou o romance I`jaam: An Iraqi Rhapsody, que foi traduzido para o inglês, alemão, norueguês e publicado no Brasil pela Editora Globo como “Morrer em Bagdá”. Antoon retornou a Bagdá em 2003 como um membro de InCounter Productions, como co-diretor e produtor do documentário “About Baghdad”, sobre a vida dos iraquianos no Iraque pós-Saddam ocupado.

Originalmente publicado no Icarabe