Opinião: Virada Cultural é uma quase Noite Branca de Paris

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Olhei a programação da quinta edição da Virada Cultural ocorrida neste final de semana em São Paulo. Na minha caixa de emails, já rolava mensagens alertando que a turma do hip-hop e da black music que tinha sido segregada em 2008 desta vez foi excluída como manifestação cultural legítima da cidade. Mesmo o samba foi diluído. No telejornal de sábado da TV Cultura, a matéria de evocação do evento e do seu criador, o atual governador-candidato José Serra, lembrando que a Virada Cultural de São Paulo se inspira no projeto “Noites Brancas” de Paris. Brancas lá como idéia de noites iluminadas. Aqui, noites sem pretos e pobres da perifa.
Depois de participar das Pílulas Culturais da Feira Preta, no belíssimo espaço da Casa das Caldeiras, na Barra Funda, onde discuti com artistas, produtores e empreendedores negros o significado dos 121 anos da abolição inconclusa, resolvi assistir o show da Maria Rita, no encerramento da Virada. Isto em um domingo em que o futebol selava a redenção de dois ícones populares: o Corinthians, campeão paulista depois de ter que passar o ano passado na segunda divisão do Campeonato Brasileiro; e o seu centroavante Ronaldo, ex-ídolo da torcida brasileira e que passou um período razoável nos noticiários de tragédias – perda de títulos, contusões, ostracismo – e coberturas bizarras, como a sua “saída” com travestis.
Na ida para o palco da Avenida São João, após estacionar o carro na Rua Guaianazes, passei em um quarteirão em que se amontoavam pessoas fumando crack, maconha e outras drogas, junto com mendigos e alguns carroceiros. Avançando adiante, a paisagem mudava e logo compreendi: o policiamento fez um “cordão sanitário” em que os parias do centro – aqueles em que os que defendem a “revitalização” do Centro sonham em exirpá-los do cenário urbano – eram proibidos de entrar. Parecia um acordo: a “crackolândia”, durante a Virada Cultural foi confinada em um quarteirão da Rua Guaianazes. A concentração de fumaça de crack e maconha foi tanta que quase entrei em estado “alfa”.
Maria Rita fez um show “quase preto”, cantou músicas maravilhosas, alguns sambas e a batida da sua banda tinha um forte tom da percussão. Fiquei sabendo que ela está fazendo apresentações com o Quinteto Preto e Branco, não sei se na Virada isto aconteceu. Mas é a síntese do que se pensa para o problema do racismo no Brasil: dar um espaço quase preto, mas sem o protagonismo negro. Como alguns intelectuais que assinaram o manifesto contra as cotas. Alguns deles até estudam a questão racial, outros se dizem simpáticos a causa negra, mas estrilam quando há a reivindicação do protagonismo negro. Pensam o negro como objeto, não como sujeito. Já no caso dos excluídos, a política “humana” é confiná-los em espaços pequenos, como um quarteirão de rua. É uma “quase-democracia”.
Na esquina da Av. São João em frente a Pça. Júlio Mesquita, os prédios deteriorados que no dia-a-dia sediam alguns inferninhos onde putas (putas mesmo, garotas de programa pertencem a outro patamar segundo a Novilíngua do capitalismo neoliberal) fazem programas a preços módicos, eram ocupados por fãs de Maria Rita que faziam das suas sacadas e até das suas lajes camarotes exóticos.
Terminado o show, pouco a pouco o simulacro de um capitalismo excludente sem excluídos – o sonho de toda a elite politicamente correta – vai se esvaindo. O cordão sanitário que confinou os parias se desfaz e volta-se à normalidade. No próximo ano, o entusiasmo da Virada Cultural retorna e durante pelo menos dois dias, poder-se-á ver o centro de São Paulo quase uma noite branca de Paris.

Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, coordenador do Celacc (Centro de Estudos Latino Americanos de Cultura e Comunicação) e membro do Neinb (Núcleo de Pesquisas e Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro). E-mail: [email protected]