Os 150 reais e a desforra dos coxinhas

O que a visão de mundo coxinha tem dificuldade de acomodar é a ação que demanda sacrifício, coloca o sujeito em situação de risco físico, emocional e jurídico, e não tem no dinheiro sua motivação fundamental

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O que a visão de mundo coxinha tem dificuldade de acomodar é a ação que demanda sacrifício, coloca o sujeito em situação de risco físico, emocional e jurídico, e não tem no dinheiro sua motivação fundamental Por Renzo Taddei, colunista do Canal Ibase Tenho vários amigos coxinhas. E devo dizer que eles me ajudam muito a entender o mundo. (Pra quem não sabe o que são os coxinhas: enquanto a classe média conservadora usa o adjetivo para os declaradamente playboys, movimentos sociais e simpatizantes usam o termo para se referir a essa mesma classe média conservadora. Na minha visão, coxinha não é uma essência, mas um estado de espírito). A reação de alguns desses meus amigos ao noticiário essa semana foi esclarecedora em relação à forma como eles (e a mídia corporativa que os entretêm) pensam as manifestações populares. Frente à notícia sobre os 150 reais que supostamente moveram as ações de Caio Silva de Souza e resultaram na morte do cinegrafista Santiago Andrade, da Bandeirantes, pude ver, nas entrelinhas dos comentários e postagens nas redes sociais, que tais amigos tomavam aquilo com certa exultação, com a felicidade de quem acha que, no final das contas, estava com a razão: algo no mundo voltava a fazer sentido; Caio fez o que fez por dinheiro. A ação de Caio, desse ponto de vista coxinesco, é condenável em suas consequências, mas é compreensível em sua natureza. Caio, ou talvez o Caio criado por seu bizarro advogado, sabe-se lá com que intenção, cruzou uma fronteira importante na sociologia coxinha: deixou de ser monstro e virou corrupto. Pode-se entender que o indivíduo faça coisas admiráveis por dinheiro (ou pelas gratificações indiretas que este pode trazer); pode-se entender que o indivíduo faça coisas horríveis por dinheiro (ou pelas gratificações indiretas que este pode trazer); o que a visão de mundo coxinha tem dificuldade de acomodar é a ação que demanda sacrifício, coloca o sujeito em situação de risco físico, emocional e jurídico, e não tem no dinheiro sua motivação fundamental. Com a exceção do amor de mãe, obviamente. Por isso o alívio com que os 150 reais foram recebidos. Que o mundo seja feio, mas previsível. Gente que faz sacrifícios e participa de ações que contradizem, em seus princípios, a ideia de que só se faz sacrifício pela família ou por dinheiro (ou carreira, sucesso ou outros eufemismos para dinheiro), só pode estar sendo enganada por um líder religioso mal-intencionado, ou por um líder político mal-intencionado. Ou seja, é “fraca das ideias”. Ou, uma variação disso, dentro de uma tendência de patologizar (e medicalizar) a diferença, essa gente tem problemas psicológicos ou mentais. Pois, no imaginário coxinha, Caio se safou disso tudo. Ao fazer o que fez por dinheiro, fez uma escolha errada dentro de um universo de opções compreensíveis. A coxinhada então, para sua própria tranquilidade mental, extrapola esse malabarismo conceitual para todos os participantes de manifestações: são todos comprados, há uma “bolsa-manifestação” que tira as pessoas do conforto do seu lar e da sua inércia emocional-televisiva e as leva para as ruas. O ponto aqui é que é incompreensível, no imaginário coxinha, que o sujeito volte pra casa cansado, eventualmente machucado, sem ter ganho nada (materialmente falando), e isso tudo por estar tentando mudar os padrões de como a população se relaciona com a política. É mais fácil entender um ladrão, que corre riscos e pode voltar pra casa cansado e machucado, mas volta mais rico do que saiu (se tiver sucesso). Em geral, um ladrão não quer mudar as regras do jogo, quer apenas infringi-las. (Não me parece que os ladrões concordem com as regras do jogo; imagino apenas que a maioria deles não tem esperança de poder muda-las). Isso me remete a uma análise de David Graeber sobre o conflito entre policiais e manifestantes em protestos anti-globalização nos Estados Unidos. Graeber encontrou ali fenômeno correlato ao que discutimos aqui. “Se você quer que um policial aja de forma violenta”, diz Graeber, “a forma mais fácil é desafiar o direito dele de definir a situação. Isso é algo que raramente um assaltante faz”. Definir ou, melhor dizendo, redefinir a relação: é exatamente esse o ponto central das manifestações. É dentro desse panorama que a criminalização dos movimentos sociais ganha sentido junto à população coxinha. Só há dois crimes no imaginário de tal contingente: matar e roubar. Todas as ações reprováveis existentes têm que ser reduzidas a uma das duas coisas (ou às duas, como de certa forma o caso do Caio é pensado). Faça uma experiência: escolha um coxinha aleatoriamente e pergunte a ele ou ela a razão pela qual o Genoíno está preso, e observe a resposta. Se for minimamente bem informado, vai dizer que é por causa do mensalão. E que o mensalão existiu por causa da briga pelo poder. E a briga pelo poder existe por dinheiro. É inadmissível, para essa forma de pensar, que o dinheiro tenha sido apenas um meio (criminoso) para um fim ideológico louvável. O mundo coxinha se crê isento de ideologias, ao mesmo tempo em que não percebe que seu espírito virou commodity. A frase “Não é por 20 centavos, é por 150 reais!” está bombando na internet. No final das contas, minha impressão é que a coxinhada sente que respondeu os 20 centavos com 150 reais (ou seja, com 75 mil por cento de juros), pra mostrar quem é que manda. Só se esquecem de que, como diz velho preceito da sabedoria oriental, se não estiverem todos felizes, ninguém terá paz de espírito. Menos ainda com essa lenga-lenga que reduz tudo e todos ao seu preço de mercado.  Renzo Taddei é antropólogo e professor da Universidade Federal de São Paulo.