Os esquecidos da Região Serrana

Há um ano, sete municípios da região viviam a pior tragédia climática da história do país. Hoje, moradores ainda convivem com o medo quando começa a chover.

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Há um ano, sete municípios da região viviam a pior tragédia climática da história do país. Hoje, moradores ainda convivem com o medo quando começa a chover.

Por Pedro Venceslau 

Há um ano, sete municípios da região serrana do Rio de Janeiro viviam a pior tragédia climática da história do Brasil. Leia abaixo matéria publicada na edição 105, de dezembro, da revista Fórum, que mostra o atual cotidiano das pessoas que perderam quase tudo e ainda convivem com a leniência do poder público.

Os esquecidos da Região Serrana
Moradores se desesperam ao menor sinal de chuva, desabrigados sofrem com desinformação, obras andam em ritmo lento e corrupção traga recursos da reconstrução. Quase um ano depois, Fórum conta histórias desoladoras da região que protagonizou a pior tragédia climática brasileira
Por Pedro Venceslau
Entre a noite do último dia 11 de janeiro e a manhã do dia seguinte, um temporal de proporções épicas atingiu a região serrana do estado do Rio de Janeiro. Em 24 horas, choveu o previsto para o mês inteiro. Nos dias seguintes, as imagens da catástrofe e o número de mortos não deixaram dúvidas: aquela foi a maior tragédia climática da história do Brasil. Entre deslizamentos de terra e enchentes, morreram oficialmente 800 pessoas. Outras 400 estão desaparecidas e pelo menos 30 mil sobreviventes ficaram desalojados ou desabrigados. Segundo moradores, o número de mortos é muito maior, uma vez que, em meio ao caos, muita gente simplesmente abandonou os corpos de familiares e não registrou ocorrência.
Semanas depois, doenças como leptospirose tomaram de assalto os moradores. Diante do cenário de terra arrasada, representantes dos governos federal e estadual se mobilizaram e prometeram investir o que fosse preciso para reerguer as cidades de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, Sumidouro, São José do Vale do Rio Preto, Bom Jardim e Areal. Quase um ano depois, às vésperas de outro verão chuvoso, Fórum visitou a região para saber o que feito e como estão vivendo os sobreviventes da tragédia.
“Vocês estão medindo minha casa pela metade”
O caminho até o ponto final do Vale do Cuiabá, em Itaipava, distrito de Petrópolis, é longo. São pelo menos 30 minutos de ônibus entre o centro petropolitano e Itaipava, onde fica a fábrica de cerveja de mesmo nome, e outros 40 até a região que foi devastada pelas chuvas de janeiro. O lugar é famoso por abrigar mansões luxuosas de políticos e capitães da indústria fluminense, haras e pousadas chiques.
Moradores contam que, semanas depois da catástrofe, donos de haras ofereceram polpudas recompensas para quem encontrasse pedaços dos cavalos perdidos entre os escombros. Só assim eles poderiam receber os seguros pagos pelos animais. Entre as muitas mortes que ocorreram ali, as que mais comoveram a opinião pública foram oito familiares do economista Erik Conolly de Carvalho, executivo do Icatu. Ele perdeu três filhos, os pais, a irmã, o cunhado e o sobrinho. A casa em que estava o grupo pertencia a Ângela Gouvêa Vieira, cunhada de Eduardo Gouvêa Vieira, presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). Moradora da região desde que nasceu, há 67 anos, a aposentada Edilma Vieira desenha no ar um mapa imaginário do Vale do Cuiabá e mostra onde estava a casa com a família Conolly. “Só sei que era gente importante. Quando os repórteres chegavam aqui, iam direto para lá”.
Edilma, que escapou da morte por um triz, depois de fugir por uma janela do segundo andar, perdeu 22 parentes naquela fatídica noite de janeiro. “As seis casas da nossa família estavam nesse terreno, que foi uma herança”, diz a aposentada, apontando para um descampado coberto de terra. Ela conversa comigo enquanto um grupo de funcionários da Defesa Civil e da secretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro inspeciona casas condenadas e terrenos de moradores que pleiteiam indenização. Em um amplo terreno ao lado das terras da família de dona Edilma, o caseiro José Fonseca bate boca com os representantes do governo, que medem com fita métrica o local onde ficava sua casa. “Vocês estão medindo minha casa pela metade. Ela ia até ali, na beira do rio...”. Ele então abre uma bolsa, tira um álbum de fotos e passa a mostrar imagens da construção que demorou vinte anos para terminar. “Se vocês marcarem errado aí, vou receber menos de indenização. Minha casa estava acabada, prontinha”.
José está inconformado porque funcionários do governo demoliram o que sobrou da casa sem avisá-lo. “Tinha um monte de telha, maçanetas e outros materiais que eu podia ter vendido”. Assim como todos os presentes na hora da inspeção, Fonseca não tem ideia de quando, ou mesmo se vai receber uma casa nova ou indenização do governo, como foi prometido com pompa e circunstância pelo governador Sérgio Cabral no calor dos acontecimentos. Apesar de receberam um aluguel social do governo de até R$ 500, os moradores reclamam que nenhuma das casas prometidas há quase um ano foi construída.
A maneira como agem os representantes do governo também é motivo de revolta. As casas que sobreviveram à tragédia, mas são consideradas condenadas por técnicos, são pintadas com um “X” vermelho. Perto dali, no leito do Rio Santo Antônio, uma cena inusitada causou revolta e gerou polêmica em Petrópolis. Em um terreno que fora devastado pelas chuvas, uma grande casa com piscina está sendo construída com autorização do Instituto Estadual do Ambiente (Inea). “Tragédias por causa da chuva sempre aconteceram em Petrópolis, mas nunca chamaram tanta atenção da opinião pública como essa. A diferença é que, agora, as casas da classe média e dos ricos foram atingidas”, sustenta o ex-vereador petropolitano Marcos Novaes (PV), que disputou a prefeitura da cidade na última eleição.
Solução é sair de casa
Dez meses depois da tragédia, qualquer sinal de chuva causa pânico nos moradores de Nova Friburgo. Quando a água começa a cair com um pouco mais de veemência, mães correm para buscar os filhos nas escolas, comerciantes fecham as portas e o medo se instala no rosto das pessoas. Em Friburgo, os sinais das chuvas de janeiro ainda são visíveis no centro da cidade, que é cortada por um rio. Na Praça do Suspiro, o teleférico, que era a grande atração turística do local, está do mesmo jeito que estava em 12 janeiro. As cadeiras ainda estão lá, como em um trem fantasma abandonado.
Em toda cidade, placas oficiais anunciam obras que nunca foram feitas. Chove muito enquanto caminho pelo bairro de Lagoinha. No trajeto, o cenário é pontuado por casas condenadas e terrenos baldios onde antes havia prédios e casas. Tirando a lama que foi removida do meio da rua, pouca coisa mudou desde a tragédia. Um morador explica que o rio que corta o bairro e passa perigosamente perto de sua casa não existia. “Surgiu depois da chuva. Nunca vieram consertar”.
Mas é em Córrego Dantas que se observa o cenário mais desolador: lama por todo lado, esgoto a céu aberto, entulho, casas condenadas... “Fico muito assustado quando chove porque meu bairro pelo rio Conego. Até hoje não fizeram absolutamente nada no meu bairro. Nenhum tijolo foi colocado”, reclama o recepcionista Wellington Serafim, que vive há dez anos na cidade. “Nos dias depois da tragédia achei que a reconstrução seria rápida. Vieram fuzileiros, montaram hospitais de campanha e tudo mais. Mas até hoje não fizeram nenhuma casa popular. Se vier uma chuva parecida, vai acontecer tudo de novo ou pior. A estrutura está toda abalada”, conclui.
De fato, poucas intervenções urbanas foram realizadas no período, e o ritmo das obras em andamento é lento. Técnicos são unânimes em dizer que não há mais tempo de fazer nada além de preparar um esquema de retirada das famílias de áreas de risco em caso de chuva forte. “As primeiras habitações só ficarão prontas no verão de 2013. Fizemos análises de investimentos e concluímos que não foi investido quase nada em Defesa Civil e contenção de encostas”, afirma o deputado estadual Luiz Paulo Correa da Rocha (PSDB), presidente da CPI da Região Serrana. Ele aponta para o caos político da região, onde dois prefeitos, o de Nova Friburgo e o de Teresópolis, foram cassados, entre outros motivos, por desvios de verbas emergenciais. Mas pontua que falta organização ao governo estadual. “A CPI não achou informações centralizadas sobre o que está sendo feito. As demandas caíram na rotina das secretárias. O ideal era que a operação toda ficasse em um centro”.
Um secretário municipal da Região Serrana que cuida da interface com o governo estadual nos projetos de reconstrução conversou longamente com a reportagem, mas pediu que seu nome fosse preservado. Ele concorda com a avaliação do presidente da CPI e vai além. “Além de o processo estar dividido em muitas secretarias, o estado não divide responsabilidades com as prefeituras. O governador não abre mão do poder político das obras. Ocorre que a máquina do estado é paquidérmica”. Ele cita um exemplo. “Colocaram duas dragas e três caminhões para fazer a dragagem em um trecho de rio, mas mandaram despejar a terra a 30 quilômetros de distância. Resultado: os caminhões são enchidos rapidamente e demoram horas para ir, despejar a terra e voltar. As dragas ficam paradas quase o dia inteiro. O cara que tomou essa decisão está no Rio de Janeiro e não conhece a região”. Ele diz, ainda, que ficará feliz se o estado conseguir construir 380 das 1,5 mil casas prometidas na sua cidade até 2013. Detalhe: todos os prefeitos da Região Serrana são aliados do governador Sérgio Cabral.
O governo se defende dizendo que investiu R$ 678 milhões no programa de recuperação da Região Serrana em um pacote que inclui a construção de 6.840 residências, 69 pontes e a contenção de 37 encostas. Em entrevista para o site do Jornal do Brasil, realizada em agosto, o subsecretário de Obras do Rio de Janeiro justificou a demora das obras dizendo que “subimos e descemos duas vezes o Everest da burocracia”. Já o Instituto Estadual de Meio Ambiente, responsável por obras de barragens e macrodrenagem que somam R$ 220 milhões, alega que a Caixa Econômica exigiu um projeto detalhado para liberar o recurso. “O governador Sérgio Cabral sabe que é mais caro responder do que prevenir. Há dez anos, metade dos municípios do Rio tinha Defesa Civil. Hoje todas as 92 cidades têm”, afirma o coronel Sérgio Simões, secretário de Defesa Civil do Rio Janeiro. Ele conta que o governo equipou as cidades da Região Serrana com um sistema de alarme sonoro com mensagens de voz pré-gravadas que serão acionadas em caso de chuva forte. “Investimos R$ 4 milhões nesse equipamento. O governo também está se instrumentalizando. Compramos uma pick up Mitsubishi 4X4 para cada Defesa Civil municipal, um carro anfíbio e novas aeronaves.”
Pelo ralo
Além da lentidão do governo estadual, as cidades da Região Serrana sofrem com o caos político local. Grande parte dos recursos enviados pelo governo federal para ajudar na reconstrução das cidades escorreu pelo ralo da mais mesquinha corrupção. Relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Controladoria Geral da União apontaram irregularidades em contratos sem licitação assinados pelas prefeituras e governo do estado.
Em Nova Friburgo, nada menos que R$ 10 milhões enviados pelo de Brasília evaporaram. O Ministério Público Federal instaurou dez inquéritos civis públicos na cidade. Em Teresópolis, o MP revelou um esquema entre empreiteiras e autoridades, que cobrava até 50% de propina na execução de obras. Em Nova Friburgo, o TCU mostrou que a prestação de contas enviada pela prefeitura estava cheio de buracos. Nenhuma das prefeituras das cidades atingidas conseguiu fazer uma prestação de contas decente. O Ministério da Integração Nacional enviou R$ 30 milhões para serem divididos entre os municípios.
No dia 2 novembro, os vereadores de Teresópolis cassaram o prefeito Jorge Mario Sedlacek, que foi eleito pelo PT, mas acabou expulso da legenda. Seu vice, Roberto Pinto, morreu de infarte dois dias depois de assumir o cargo. Quem está no poder hoje é o presidente da Câmara dos Vereadores, Arlei de Oliveira, do PMDB. Em Friburgo, o prefeito Demerval Barboza Neto, do PTdoB, e seu secretário municipal de governo, José Ricardo Carvalho de Lima, foram afastados do cargo por determinação da Justiça Federal. Eles são acusados de desvios de verbas, superfaturamento e fraudes na contratação de empresas. Assim como em Teresópolis, eles se aproveitaram do caráter emergencial das obras.
Antes de deixar a Região Serrana, assisti a uma reunião da CPI municipal das chuvas na Câmara dos Vereadores de Nova Friburgo. Apenas sete pessoas, entre elas quatro jornalistas locais, acompanhavam o depoimento do secretário José Ricardo Carvalho. Sentado ao lado de seu advogado, ele tentava convencer os vereadores da mesa diretora que o dinheiro desapareceu por causa do caos da chuva. “As circunstâncias eram muito precárias. Havia dificuldade na oferta de serviço. Não era todo mundo que tinha confiança de receber ou queria arriscar seus equipamentos. Não havia internet. Quando a equipe dizia que a empresa era idônea, eu assinava”. À medida que as perguntas se tornaram mais específicas e passaram a citar nominalmente contratos, valores e erros de procedimento, o advogado passou a bater boca com os depoentes. Formou-se então um grande teatro. Enquanto isso, assessores observavam pela janela a chuva que caía cada vez mais forte...