Os novos episódios do genocídio e o massacre nas prisões (Ou a ginga de branco é tirar o corpo fora)

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Meio milhão de vidas pretas são amontoadas no sistema carcerário brasileiro. O que não demonstra a sua falência, mas sim o pleno funcionamento das engrenagens que operam na lógica do genocídio. A guerra às drogas é diretamente responsável pela formação de uma ampla rede de poder que se articula dentro dos presídios, mas também se articula no Congresso Nacional, através de suas bancadas, e que atua dentro das comunidades, militarizando os territórios pretos e promovendo esse quadro permanente e crescente de corpos negros alvejados Por Dudu Ribeiro*

“uma ideologia de libertação deve encontrar sua experiência em nós mesmos; ela não pode ser externa a nós e importada por outros que não nós próprios; deve ser derivada da nossa experiência histórica e cultural particular”. M. K. Asante

[Cenário 1] Um massacre deixou 56 corpos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, no primeiro e segundo dias do ano. Cinco dias depois, um outro banho de sangue com 31 corpos na Penitenciária Agrícola do Monte Cristo (Pamc), em Roraima. A culpa pelas mortes: a guerra de facção. Uma conta simples: os bandidos maus estão se enfrentando pelo mercado de drogas ilícitas. [Cenário 2] Quatro jovens negros são presos após terem participado de uma agressão a uma pessoa branca nos Estados Unidos. Uma pessoa grita “No more, Trump” e “Fuck withe people” durante a gravação do episódio, e o Twitter registra nos trendig topics #BLMKidnapping (BLMSequestradores –  Acusação feita ao Black Lives Mattter (Vidas Negras Importam), organização negra que mais cresce nos Estados Unidos. [Cenário 3 – uma pequena história] Em 2004, estreou o filme Hotel Ruanda – Uma história real, baseado no episódio que marcou a história daquele país e ficou tratado como um verdadeiro Genocídio. Em 1994, um massacre contra a etnia tutsi e contra hutus moderados deixou um saldo de 800 mil corpos em apenas cem dias. Cerca de 250 mil estupros contra ruandesas são estimados nesse período. Há três anos, o presidente de Ruanda, Paul Kagame, declarou que o legado mais devastador do controle europeu em seu país foi a transformação das distinções sociais. Fomos classificados de acordo com um marco inventado em outro lugar, declarou. Entre os anos de 1884 e 1961, Ruanda foi governada, direta ou indiretamente, pelos europeus, primeiro pela Alemanha e depois pela Bélgica. A era colonial branca foi diretamente responsável pela produção de um sistema de privilégio para uma minoria tutsi, em detrimento da grande maioria hutu, e pela consolidação de sentimentos de ódio e vingança entre as duas. O racismo desempenhou um papel fundamental na internalização da “superioridade” do colonizador pelos colonizados, no acirramento dos conflitos étnicos e na formulação das táticas que tinham centralmente como objetivo explorar e oprimir. O modelo colonial branco é portanto diretamente responsável pelo assassinato de quase um milhão de africanos e africanas em seu próprio país, e nos países vizinhos nos anos seguintes ao massacre, apenas naqueles episódios. No Brasil, registramos mais de cinquenta mil mortes de pessoas negras todos os anos. Enquanto a morte de pessoas brancas diminui, os corpos negros viram números para uns, e arrasam vidas de milhares. Muitas mulheres pretas. Muitas famílias pretas. Meio milhão de vidas pretas são amontoadas no sistema carcerário brasileiro. O que não demonstra a sua falência, mas sim o pleno funcionamento das engrenagens que operam na lógica do genocídio [1]. A guerra às drogas é diretamente responsável pela formação de uma ampla rede de poder que se articula dentro dos presídios, mas também se articula no Congresso Nacional, através de suas bancadas, e que atua dentro das comunidades, militarizando os territórios pretos e promovendo esse quadro permanente e crescente de corpos negros alvejados. O modelo prisional brasileiro e a política de guerra às drogas são portanto diretamente responsáveis pelas vidas pretas destruídas dentro e fora do presídio. A justiça brasileira é uma parte central do empreendimento de criminalização do povo negro no Brasil e opera na mesma lógica que distribui a morte como exercício de poder[2], atualizando o sistema de privilégio para uma minoria branca. Nos Estados Unidos, temos a recente eleição de um presidente simpático a grupos neonazistas e de supremacia branca Trump, que já foi condenado por racismo, e que financiou,em 1989, uma campanha pela aprovação da pena de morte em Nova York contra 5 jovens negros que foram acusados e presos pelo estupro de uma mulher branca. Depois de anos na cadeia, todos foram absolvidos. Existe hoje um processo de precarização da vida da população negra nos Estados Unidos, com a limitação do acesso a serviços básicos como alimentação, saúde e transportes público. Hoje, mais de 70% dos moradores de rua naquele país são negros e negras. O modelo de punição dos Estados Unidos é portanto diretamente responsável pelas tensões raciais que atingem o país [3]. Episódios recorrentes de assassinatos de jovens negros levaram a diversos levantes na comunidade negra, como os casos de Trayvon Martin, Kalief Browder, Mike Brown, Oscar Grant, Eric Garner, Tamir Rice, Freddie Gray, Eric Courtney. Você gosta da Fórum? Então apoie nosso projeto jornalístico e concorra a uma viagem pra Cuba em 2017 Nos três cenários expostos, se constrói um caminho semelhante:a narrativa de que a culpa pelas tensões raciais e pela violência que atinge majoritariamente o povo negro está na própria população negra. Reforça-se a ideia de selvageria, que se opõe a noção branca Ocidental de civilização, simulando que não há relação entre esses episódios e as outras engrenagens que operam para a manutenção dos privilégios da branquitude. Face a resistência dos colonizados, a violência assumiu novos contornos, mais sofisticados; chegando às vezes a não parecer violência, mas “verdadeira superioridade”. É o que nos ensinou Lélia Gonzalez[iv]. E por isso, a luta anti-racista é transnacional.Pois morremos através das balas, nas chacinas dentro dos presídios, mas também nos abortos inseguros, nos espancamentos a céu aberto, nos assassinatos da população LGBT, no aumento da contaminação por HIV, nos suicídios de agentes públicos negros nas forças de segurança e nos conflitos oriundos da ocupação genocida colonial. Construir novas experiências de libertação nos exige conectar as várias experiências negras ao redor do mundo e encarar a engrenagem da supremacia branca como ela é: um empreendimento global de exploração e opressão que arrasa a humanidade a séculos, mas ainda assim, de forma dissimulada, esquiva a branquitude de encarar os corpos deixados pela sua construção histórica nesse caminho. *Eduardo Ribeiro é Professor de História, Coordenador da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política sobre Drogas – INNPD e membro da Rede Latino Americana e do Caribe de Pessoas que Usam Drogas [1] Ver FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Dissertação de mestrado. Brasília: UnB, 2006 [2] Ver MBEMBE, A. "Necropolitics". Duke, Public Culture, 2003. [3] Ver ALEXANDER, Michelle. The New Jim Crow. Mass incarceration in the age of colorblindness. New York: The New Press, 2011. [4] GONZALEZ, Lelia. A categoria político-cultural da amefricanidade. In: Revista TB. Rio de Janeiro, 92/93. Foto: Reprodução