Os dilemas do ensino a distância

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Quando se vê estudantes da universidade mais importante da América Latina andando pelo campus com computadores e televisores na cabeça, é porque algo além da aparência deve estar fora do lugar. Foi desta e de outras formas que alunos da USP resolveram protestar contra a implementação de um projeto de ensino a distância no ensino superior para formação de professores, a chamada Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp). Idealizado pelo secretário estadual de educação, Carlos Vogt, o projeto não existe materialmente enquanto universidade, trata-se de um convênio entre as três universidades estaduais e o governo do estado que teria como objetivo inicial suprir uma demanda de docentes qualificados em determinadas áreas na rede pública de ensino.

A aprovação de cursos de licenciatura a distância no início deste ano pelos conselhos deliberativos das três universidades tornou-se um dos principais motivos da paralisação dos estudantes da USP. Uma das principais críticas aponta para uma precarização da formação do professor que vai trabalhar com a escola pública, traduzindo-se na perceptível queda na qualidade na área. Em 2000, universidades estaduais paulistas, em convênio com as secretarias municipais e estadual de educação, abriram cursos do Programa de Educação Continuada (PEC). O programa era direcionado apenas para professores da Educação Básica que não possuíam formação superior em Pedagogia, atendendo assim a uma exigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Os cursos tinham duração de um ano e o aluno assistia a aulas por videoconferência, participando presencialmente de atividades com a sua turma.

O ensino a distância (EaD) ampliou sua presença a partir de 2005, quando o governo Lula criou a Universidade Aberta do Brasil (UAB), sistema de cursos superiores a distância nas universidades federais já existentes. Seus defensores argumentam que, além da ampliação do número de vagas nas federais, as vagas de EaD democratizam o acesso à universidade pública. A UAB foi criada com o objetivo de atender situações emergenciais, como pessoas com impedimento físico por motivo de saúde, encarcerados, e gente que mora em outro país ou em locais de difícil acesso, como regiões de fronteira. Ou seja, com objetivos bem distintos dos da Univesp que, apesar de ter sido criada com o objetivo específico de formar professores, vai abrir inscrições para o público em geral e dar 9% de bônus no vestibular para professores da rede.

No meio do Amazonas
No município de Autazes (AM), adolescentes prestam atenção à TV onde a imagem do professor de química aparece dentro de um modelo virtual de uma célula, explicando seus componentes internos. A aula está sendo filmada ao vivo a 108 quilômetros de distância, em Manaus, num estúdio construído só para a transmissão de aulas. São estudantes do ensino médio assistindo a uma aula por “mediação tecnológica”, como prefere denominar o secretário estadual de Educação, Gedeão Timóteo Amorim.

“Em português, por exemplo, nossas aulas antes eram ruins. No presencial, os professores não iam”, lembra Maria Izabel Nascimento. A garota cursou todo o Fundamental em escola pública, no primeiro ano do colegial participou da primeira turma de Ensino Médio a distância do estado, e hoje, no terceiro ano, estuda para prestar vestibular para Letras. “Na minha opinião, estou aprendendo muito mais que o normal”.

Não é à toa que o modelo a distância tem sido aplicado no Amazonas. O estado ocupa uma área de 1,6 milhões de km² e tem uma topografia que, dependendo do período do ano, pode ser acessada mais por água do que por terra. “Tem lugares aqui que você não vai de carro, nem de avião, só de barco, e outros que só dá para ir de avião. Outros que se demora 30 dias para chegar”, exemplifica o secretário.

Em estados como o Amazonas, com uma população extremamente dispersa e isolada, levar ensino de qualidade e em todos os níveis é um grande desafio. A solução encontrada pelo governo foi implementar o EaD, começando pelo ensino médio. Neste modelo, o adolescente vai à escola estadual mais próxima e lá, em uma sala com outros alunos e um professor-generalista, ou tutor, assiste ao vivo à aula do professor-especialista na disciplina. Depois da apresentação do conteúdo, é dado um tempo para os alunos fazerem atividades em grupo, e posteriormente os estudantes podem enviar perguntas para o professor-especialista pela internet via satélite. Enquanto isso, o tutor, que deve ter no mínimo Licenciatura, pode sanar dúvidas, organizar os trabalhos em grupo, provas, além de acompanhar de perto a evolução dos alunos.

“Tem biblioteca na escola e internet. Depois da aula os alunos têm um trabalho para fazer, pode ser com fotografia, eles vão pesquisar na cidade. As aulas são bem dinâmicas”, conta Regina Guedes, tutora de uma escola em Autazes. A principal diferença para o ensino presencial é que, à distância, o curso é passado de forma modular, ou seja, ao invés do aluno ter várias aulas de várias disciplinas durante um dia, ele assiste a aulas de somente uma disciplina durante um determinado período equivalente à carga horária exigida pelo MEC.

O professor César Minto, da Faculdade de Educação da USP, critica o sistema modular de ensino. “Ele é, em geral, muito condensado, sintético. É para um indivíduo que não tem condições de acompanhar um curso periodicamente, como quem trabalha em turnos”. A falta de acompanhamento conjunto das disciplinas também interfere na possibilidade de intercâmbio entre as matérias e entre os próprios professores, segundo Cesar. “Às vezes você tem alunos que são bons em uma disciplina e, em outras, não. Se elas são passadas ao mesmo tempo, os professores podem trocar experiências e procurar evoluir o estudante como um todo, não só em uma disciplina”, exemplifica.

Apesar da crítica, César admite que onde, de fato, há impossibilidades de acesso físico a uma escola, o EaD é válido. Alguns dados podem corroborar a tese. Em 2006, o Amazonas era classificado como o segundo pior estado no quesito qualidade de educação, segundo o Ideb. Após o primeiro ano de implementação do EaD, o estado já subiu no ranking e atualmente está em 17º. Neste ano, a secretaria começou a aplicar o modelo no ensino fundamental II, começando com turmas de 6ª série. Em três anos, o modelo já recebeu o Prêmio Learning Impact Awards, que premia os melhores usos da tecnologia como promoção da aprendizagem no mundo. A iniciativa também foi reconhecida inclusive pela Unicef em seu relatório “Situação da Infância e da Adolescência Brasileira 2009 – O Direito de Aprender”.

“Propor algo semelhante em São Paulo, na região Sul, ou até em Minas Gerais, que é um estado grande, não faz sentido. Nestes lugares, onde quer que a pessoa more, não está distante de uma escola”, explica César. Uma de suas críticas ao EaD é a fragmentação do processo educacional imposto pelo modelo. “Tem uma fragmentação porque há um que pensa, o outro que passa as atividades, outro que grava, outro acompanha a evolução do aluno. Vira uma linha de formação fabril”, aponta. Apesar disso, o tutor exerce um papel fundamental que, para o professor Ismar Soares, do Núcleo de Educação e Comunicação da USP, não tem sido valorizado nas políticas de EaD. Ismar acredita que é possível haver ensino a distância com qualidade, desde que algumas condições sejam garantidas. “Se não temos um tutor adequado em formação e remuneração, o EaD fracassa”, coloca.

Mas a qualidade do ensino a distância não se restringe à qualificação dos profissionais. Para o vice-presidente do Conselho Estadual de Educação, João Carlos Palma Filho, ela também depende da infra-estrutura, da qualidade da internet, no caso das aulas serem transmitidas online, se os estudantes têm acesso garantido ao computador e à rede, e se os professores estão capacitados para o método a distância. Ainda assim, ele admite: “certos conteúdos só podem ser feitos para ensino presencial”.

Instrumento de marketing

Ismar acredita que hoje em dia não se pode mais prescindir das novas tecnologias no ensino, mas lamenta que o ensino a distância se dê para alcançar uma rápida expansão de vagas. “Do jeito que está sendo colocado na USP, é uma política de governo com visão de marketing”. O projeto paulista pretendia abrir 6 mil vagas de licenciaturas a distância nas estaduais já neste ano. No ante-projeto está previsto que cada aluno de um curso a distância teriam um custo de 3 mil reais durante todo o curso, enquanto os alunos dos cursos presenciais atualmente custam por volta de R$ 10 mil. “A lógica que orienta a implementação de um curso a distância é o financiamento. É porque é mais barato”, critica Maria Izabel Noronha, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) e membro do Conselho Nacional de Educação (CNE). “A não ser que tenha um acompanhamento sério, que tenha os encontros presenciais, que haja uma biblioteca. Mas esses cursos que estão acontecendo não preveem tudo isso”.

Ismar também acredita que princípios básicos para assegurar a qualidade do curso não estão sendo pensados. “Precisa ser rediscutida a função do curso e a formação dos tutores. Se o tutor não dialoga, não é possível garantir qualidade”, defende Ismar. De acordo com o anteprojeto, os tutores dos cursos poderiam ser formados pelo próprio formato EaD, sem exigência de pesquisa em pós-graduação.

Para o professor de filosofia Paulo Ghiraldelli Jr., diretor do Centro de Estudos em Filosofia Americana, existem motivos políticos por trás dessa expansão de vagas pela implementação de ensino a distância no ensino superior público em todo o país. “Isso é estatística para apresentar no exterior. Querem mostrar lá fora que todos os professores da rede pública têm diploma”.

“Eu mesmo tenho um pé atrás com o ensino a distância”, declarou o governador José Serra na época em que divulgou a proposta do convênio à imprensa. Apesar do pé atrás, o governo não sinalizou uma revisão no projeto Univesp, e a imprensa coloca a oposição ao projeto como se fosse algo contrário ao ensino a distância. César Minto, porém, aponta diversas falhas específicas do projeto, a começar pela sua proposta de suprir a deficiência de professores qualificados na rede pública. “Tem muito professor que não está dando aula porque as condições de trabalho e de salário na rede estadual são péssimas”. Ele também lembra que os egressos da USP, por ser uma universidade de alto nível, “vão ocupar os melhores postos de trabalho, eles não vão para a rede pública”. Ou seja, a rede de ensino estadual vai se beneficiar muito pouco com a ação.

As políticas públicas voltadas para a expansão de vagas no ensino superior também não são novas, e a implementação do EaD é somente uma das linhas aplicadas neste sentido. “Esta demanda por ensino superior é justa, é um direito de todos, sem dúvida. Mas é uma demanda induzida. Se as profissões que exigem formação menor fossem valorizadas, não teria essa demanda”, critica César.

Ghiraldelli toca também em outro ponto: a vivência fora da sala de aula. “O elemento presencial é socializante, as pessoas namoram, vão ao bar, fazem greve, se sindicalizam. Sem isso você imbeciliza as pessoas”, pensa. Cesar compartilha da opinião e lembra que ensino a distância não é propriamente “educação”. “O ensino é algo muito mais restrito, é só uma parte da educação. No ensino não tem formação, que iria permitir que o indivíduo transforme o meio em que ele está. Na aprendizagem, você só aprende algo que antes você não sabia. Não é necessariamente algo para transformação”.

A sentença final sobre o alcance devido do ensino a distância, porém, não é certa nem no próprio Ministério da Educação. Helena Freitas, coordenadora geral da formação de professores do MEC, acredita que “ainda precisamos de muita avaliação sobre EaD. As experiências que temos são muito pontuais”. Da forma como o ensino a distância tem sido colocado nas políticas públicas, Ghiraldelli cutuca. “Tudo indica que é bom para o filho do outro”.