Os maus na sociedade dos bonzinhos

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Dia 12 de junho de 2000. Sandro do Nascimento, 21 anos, toma um ônibus da linha 174 na cidade do Rio. É um passageiro diferente dos demais. Primeiro, pretende assaltar. Segundo, não vai sair vivo dessa história. A professora Geisa tem traçado o mesmo destino. Foi mantida refém por Sandro por 5 horas. Numa ação mal coordenada, a polícia aborda o assaltante quando ele sai do ônibus com a professora. O policial erra o tiro, acerta a refém. Sandro também dispara três vezes. Geisa morre. O rapaz entra no camburão caminhando e com um único ferimento. Todas as redes de televisão mostram. No final, sai da viatura também morto, por asfixia.

Provavelmente você se lembra dessa história. A parte pouco conhecida é que, aos 9 anos de idade, Sandro viu sua mãe, uma comerciante do bairro carioca de São Gonçalo, ser assassinada a facadas. Não sabe também que, alguns anos depois, fugiu de casa e passou a viver na rua. Foi um dos sobreviventes do massacre da igreja da Candelária, em 1993, quando oito crianças de rua acabaram assassinadas por policiais militares cariocas.

Não é possível justificar crimes como o de Sandro, nem falando das agressões que sofreu da sociedade. Mas é possível analisar a violência no contexto social em que ocorre. Nesse caso a história de Sandro é exemplar e está nas telas de cinema no documentário Linha 174, de José Padilha.

Sandro não teve as oportunidades de que precisava. A pobreza, a favela, a necessidade, a completa ausência de satisfação e expectativas o fizeram buscar sobrevivência de outra forma. Se na sociedade normal as portas se fecharam, o crime, o tráfico e o consumo de drogas o acolheram de maneira democrática.

Esmeralda Ortiz que o diga. Ela passou muito perto do destino de Sandro. Numa época em que roubava, fumava, traficava crack e alternava sua moradia entre uma ponte no centro de São Paulo e as confortáveis instalações da Febem, onde, certa vez, apanhou durante noite inteira junto com outras meninas. Os carrascos, os funcionários da instituição que cuida do “bem-estar” do menor. Esmeralda viveu nas ruas dos 9 aos 19 anos, desde que fugiu de casa, das surras da mãe, que a obrigava a mendigar, e dos abusos sexuais de tios e do padastro.

Ao contrário do esperado, o final da história não é triste. Melhor ainda, nem teve final. Esmeralda hoje é estudante de jornalismo, mora sozinha num apartamento e escreveu um livro, Por que Não Dancei, editora Senac. A diferença entre Sandro e Esmeralda foram as oportunidades e a coragem. Não deles mesmos, mas de pessoas como as que trabalham no Projeto Travessia, uma fundação que atua com crianças e adolescentes no centro de São Paulo e que é financiada e administrada por uma parceria de bancos, como o BankBoston e Bradesco, e sindicatos, como a Apeoesp e o dos Bancários de São Paulo. Em especial, a coragem e a obstinação dos educadores que participam do projeto. “A Rose (uma das educadoras) persistiu, ficou sete meses atrás de mim por aqueles buracos. Ela ia nos ‘mocós’ atrás de mim, querendo conversar, e eu correndo dela”, relata a jovem em seu livro.

A pior exclusão Certas discussões por si só são terríveis como, por exemplo, se miserável é pobre, ou coisa parecida. Mas, por incrível que pareça, há diferença entre níveis de exclusão e suas conseqüências. “A exclusão social é um fator de geração de violência, mas não a exclusão econômica, o desemprego, a pobreza”, afirma Dirce Koga, pesquisadora do Núcleo de Seguridade e Assistência Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “O problema é a ausência do Estado, no sentido de políticas públicas voltadas para a juventude, promovendo lazer, cultura e esporte nessas regiões”.

“O maior número de casos de homicídios, furtos e roubos de veículos não ocorre nos locais mais miseráveis, mas sim onde existe pior distribuição de renda, falta de mobilidade social e habitação em condições terríveis”, esclarece Luís Antônio de Souza, pesquisador do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo. Fatores que devem ser corrigidos pela ação do Estado.

Esmeralda, doutora honoris causa no assunto, concorda: “Na periferia, você tem três opções: é o boteco, a ‘boca’ ou a igreja. O jovem vive nessas condições e vê na TV a propaganda da Nike, dizendo que vai conseguir um monte de coisa se usar o Nike. Ele já não se auto-aceita e acha que precisa do tênis pra ser alguém”, explica. E o sonho consumista, estimulado pela onipotente televisão, comporta coisas muito mais simples do que um tênis importado. “Quando era pequena, com uns 5, 6 anos, queria comer pão com manteiga, porque via a propaganda da Doriana e lá aparecia uma família feliz. Eu achava que se comesse a margarina eu ia ter uma família feliz que nem aquela. Só fui comer Doriana muito tempo depois e fiquei decepcionada, porque minha vida não mudou.”

A necessidade de inclusão por meio do consumo não atinge somente crianças e adolescentes. Hoje, Conceição Paganele tem isso bastante claro. Presidente da Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (Amar), ela passou por maus bocados quando o marido faleceu e a deixou com 29 anos de idade e cinco filhos para criar, a mais velha com 9 anos. “A primeira coisa que fiz foi arrumar um serviço, já que a pensão não dava pra nada”, lembra. Mas não era suficiente. A família morava em uma casa de dois cômodos na Cohab e as crianças dormiam em colchões no chão. “A gente sempre teve o que comer, mas só ter arroz feijão e sal pra temperar também é passar fome de algum jeito”, conta.

No começo, Conceição trabalhava em casa de família durante o dia, lavava e passava roupa durante a noite. Depois entrou na prefeitura, mas como o salário era muito baixo fazia a faxina de um escritório à noitinha, antes de ir pra casa. “Achava que meus filhos tinham que ser iguais aos outros meninos, que usavam o tênis de marca. Agente comprava os tênis daquelas cestas da frente das lojas, os mais baratos”, lembra.

Há mais de dez anos, o tênis da moda era o Le Cheval, bastante gente vai lembrar. É claro que os filhos de Conceição queriam o seu. Ela não tinha dinheiro. Depois de o tênis sair da moda, ela finalmente comprou. “Consegui um tênis cheio de coisinhas, de detalhes. Fiquei tão feliz que eles iam ter o calçado que todo mundo tinha, que queriam. Quando entreguei ficaram meio decepcionados”. Acontece, bastante gente vai lembrar também, que o Le Cheval, depois de sair da moda, caiu em desgraça. Era chamado preconceituosamente de “o tênis do baiano legal”. O tiro saiu pela culatra. “Os meninos tiravam sarro deles na escola. Acabaram usando, mas porque não tinha outro.”

O raciocínio de Conceição foi imediato: precisava trabalhar mais para poderem escolher o tênis que quisessem. “Virei uma máquina de trabalhar. Tinha esses desejos consumistas, tinha um trauma com Danoninho. Meus filhos tinham que comer Danoninho”. O problema é que enquanto ela trabalhava, Cássio, seu filho mais novo, acabou se envolvendo com drogas. Com 15 anos já era viciado e várias vezes foi ameaçado por dever para traficantes. Quando a mãe notou, já era tarde para uma conversa. “Não percebi que a minha presença em casa era mais importante que o Danoninho. Se tivesse ficado mais em casa o Cássio não teria tido esses problemas”, culpa-se.

Conceição apelou para tudo e para todos para buscar ajuda para livrar seu filho do vício. “Procurei o conselho tutelar, o governo, a TV.... Fui nessas porcarias de programas, como o do Ratinho. Eu dizia: ‘Meu filho vai morrer, ele precisa de ajuda senão vai morrer, e eu também’. Mas ninguém ajudou”, ataca. O filho de Conceição acabou cometendo roubos para pagar seu vício. Foi parar na Febem de São Paulo. Lá sofreu abusos, quebrou os dois tornozelos e, hoje, é deficiente. Por isso Conceição fundou a AMAR.

Cássio entrou e saiu da Febem algumas vezes e hoje, já maior de idade, está num presídio no interior do estado. Nos seis meses em que ficou lá dentro está longe das drogas. Conceição teme uma nova recaída (a última foi a quinta), mas tem esperança e fé em Deus. “O que mais quero agora é que meu filho esteja com a gente no Natal. Ele já conseguiu o regime semi-aberto, só não sei quando sai da prisão. Já arranjamos trabalho pra ele, o trabalho que sempre sonhou, com o irmão, que é tingidor de rendas e botões”, explica.

O escritor Paulo Lins conhece bem a vida na periferia. Nascido no conjunto habitacional Cidade de Deus, que retratou no livro que originou o grande sucesso do cinema nacional deste ano, lembra que mesmo na favela existe uma estratificação social. “A grande maioria trabalha. Há os funcionários públicos, os operários especializados, depois vêm os serventes, as empregadas e, por último, aqueles que não têm profissão, como autônomos e camelôs. Desses últimos, muitos saem ou têm filhos que vão para a criminalidade. Pode-se falar que existe um destino programado pela própria sociedade”, conclui.

Não dá para deixar de dizer, por mais mofado que o discurso pareça, que as histórias acima são conseqüência de uma opção de modelo econômico. Para que alguém ganhe muito, alguém tem que perder bastante. E essa última etapa do capitalismo, a da globalização neoliberal, leva às últimas conseqüências esse processo. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu livro Globalização: as Conseqüências Humanas, toca na ferida: “O que se aclama hoje como ‘globalização’ gira em função dos sonhos e desejos dos turistas. Seu efeito secundário – colateral, mas inevitável – é a transformação de muitos outros em vagabundos(...). Eles (os vagabundos) quebram e solapam a ordem. São uns estraga-prazeres meramente por estarem por perto, pois não lubrificam as engrenagens da sociedade de consumo ou de turistas. E por serem inúteis são também indesejáveis. Como indesejáveis, são naturalmente estigmatizados, viram bodes expiatórios. Mas seu crime é apenas desejar ser como turistas... sem ter os meios de realizar seus sonhos como turistas”. Esmeralda, Conceição, Sandro e outros tantos milhões, na verdade não tinham e não têm o direito de desejar dorianas, danoninhos ou um tênis de marca. Pior é que depois, aparecem as políticas de segurança formuladas para domar os tais “monstros”, alimentados diariamente por uma monstruosa engrenagem geradora de todos os tipos de violência.

Colaborou Frédi Vasconcelos