Os últimos dias de Che

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É fato que o médico argentino Ernesto Guevara de la Serna, eternizado como o guerrilheiro revolucionário Che Guevara, não conseguiu levar a cabo sua empreitada visionária. Ao trocar a medicina pela luta armada, o herói latino-americano avistava no horizonte de suas batalhas o advento de uma nova sociedade, o surgimento de um novo homem. Em ambos os casos, com mais dignidade e justiça. Infelizmente, não foi o que aconteceu. A miséria continua assolando grandes populações e a ditadura implacável do capitalismo, embora em crise, continua dando as cartas do jogo.
Entretanto, a morte trágica de Guevara, abandonado nas selvas da Bolívia, não foi inútil. Tem o valor de um símbolo poderoso, que resiste ao tempo, como afirma Ernesto Sábato, na introdução de Che (Conrad, 96 págs., R$ 34,90), biografia em quadrinhos publicada na Argentina em 1968, três meses após a morte do revolucionário argentino – e que apenas agora chega ao Brasil. “Pode-se atribuir a Guevara um romantismo louco, mas é essa imagem heróica e solitária que desperta a esperança, a coragem e a fé em milhões de jovens nos quatro cantos do planeta.”
Quem assina o roteiro de Che é Héctor Oesterheld, a arte é de Alberto Breccia, com a ajuda de seu filho Enrique, em seu primeiro trabalho, então com 22 anos. A obra é considerada uma das mais importantes para a construção do mito em torno de Guevara. Mas, além do sucesso – dezenas de milhares de exemplares vendidos em pouco tempo –, a HQ tem um histórico sangrento de perseguição e morte. Logo após o lançamento, a editora foi invadida e o estoque do álbum confiscado e destruído pelo serviço de inteligência do exército.
Na época, a Argentina já agonizava sob a ditadura militar do general Onganía, no poder desde 1966, que baniu do mapa o movimento nacional peronista criando um ambiente de grande tensão política. “A censura e a perseguição também atingiram os partidos políticos”, recorda Enrique Breccia, de 62 anos, em entrevista à Fórum. Militante peronista, ele conta que “perseguiam o peronismo com particular afinco”.
Mas era só o começo. Nos anos posteriores, o autoritarismo pioraria em alguns graus, adquirindo características brutais. O alento trazido pelo regresso de Perón, após quase duas décadas de exílio, teve vida curta. Ele morre um ano depois, cercado de direitistas, e deixa o país nas mãos de sua viúva, Isabelita Perón. Para entornar o caldo de uma vez por todas, ela se alinha ainda mais com a direita, confirmando sua guinada ao criar a força parapolicial Alianza Anticomunista Argentina para eliminar definitivamente as lideranças de esquerda do país. Em 1976, Isabelita cai e o país assiste à volta da ditadura militar, mais violenta e decidida a varrer qualquer vestígio de esquerda. É quando o álbum Che é definitivamente censurado.
A situação piora ainda mais em 1977. Oesterheld e sua família começam a sofrer ameaças. Pouco depois ele e suas quatro filhas entrariam para a cínica estatística dos “desaparecidos”, segundo a qual cerca de 30 mil argentinos tinham subitamente sumido. Oesterheld foi sequestrado no dia 14 de dezembro de 1977 e, segundo prisioneiros que dividiram cela com o roteirista, antes de sua morte ele ainda passou por uma última tortura, sádica ao extremo: recebeu fotos de suas filhas, torturadas e mortas. De acordo com dados evidentemente não oficiais, Oesterheld foi assassinado em 1978.
Diferentemente do que se afirma, de que a morte do roteirista argentino estava diretamente ligada à publicação de Che, segundo Enrique Breccia, Oesterheld foi perseguido e assassinado por conta de sua militância política. “Ele era membro do grupo armado Montoneiros, dizer que ele foi morto por causa de uma história em quadrinhos é desmerecer sua memória”. Para a viúva de Oesterheld, no entanto, seu marido entrou na mira da ditadura em 1968 – ano de lançamento do livro.

A via crucis de Che
O álbum Che faz um retrospecto da trajetória do guerrilheiro argentino, mas se concentra em seus últimos dias. Oesterheld, Breccia e seu filho Enrique narram com maestria a trajetória de Che Guevara desde a decisão de retornar à guerrilha, dando as costas para as vantagens dos cargos oficiais que ocupou em Cuba depois da vitória conquistada ao lado de Fidel Castro durante a Revolução. Após uma tentativa fracassada na África, Guevara parte para a Bolívia com o objetivo de instalar uma base guerrilheira de onde lutaria pela unificação dos países latino-americanos.
Sem apoio do partido comunista boliviano e nem mesmo a colaboração dos camponeses que habitavam a região, Guevara foi capturado em 8 de outubro de 1967 e executado no outro dia por um soldado da Bolívia. “Nunca saberemos o que disse Guevara nesse momento, mas podemos imaginar que seu olhar era de profunda tristeza”, assinala Sábato. “Não pela morte, já esperada, mas por ter sido levada a cabo por um boliviano e não por um soldado dos Estados Unidos”, conclui.
Mas, 40 anos depois, que mudanças a luta e a morte de Guevara trouxeram para a América do Sul? Para Enrique Breccia, o cenário não é animador. O mais evidente, diz ele, é o fracasso da luta armada como método de ação política, da qual Guevara foi um dos principais defensores. “A outrora poderosa influência cubana agora se vê reduzida a uns poucos países pseudorrevolucionários, como Nicarágua, Venezuela, Equador e Bolívia.” Para o desenhista argentino, são vestígios de uma mudança inviável. “Pregam um discurso de revolução, quando na realidade só atendem a agenda do império estadunidense”
Semelhante, segundo Enrique, ao que fez Fidel, quando transformou Cuba em um peão a serviço do império soviético. “Ao invés de optar por um desenvolvimento econômico-político autônomo, Fidel subordinou Cuba aos interesses geopolíticos soviéticos. Para o desenhista argentino, não foi por acaso o desencanto de Che com Fidel ao assumir o Ministério de Produção e Indústria. “Ele logo percebeu que a industrialização do país não interessava aos soviéticos e quando se foi tornou-se um obstáculo para esses planos.” Enrique afirma ser esse o motivo principal da derrota de Guevara nas selvas bolivianas. “Ele foi traído, o imperialismo soviético, por meio de Fidel, o entregou.”

Revolução em quadrinhos
A dupla Oesterheld e Breccia, que pela primeira vez têm uma HQ publicada no Brasil, fez da Argentina uma referência mundial em produção de quadrinhos, influenciando nomes de peso como Hugo Pratt e Frank Miller. Por ironia, a década de 60 é conhecida como o período em que os quadrinhos argentinos começam a entrar em crise. Contrariando os mais deprimidos, é quando aparece em cena a Mafalda, de Quino, entre outras obras primas, como o álbum Che, que Alberto Breccia considerava uma de suas mais importantes criações. “É o mais bem construído e o mais coletivo de meus álbuns”, afirmou o desenhista. Alberto Breccia morreu em 1993, aclamado como um mestre dos quadrinhos e herói da cultura argentina. F