Para dizermos a palavra nós

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Ginásio Gigantinho lotado. Aproximadamente 15 mil pessoas cantam, bandeiras dão a volta no ginásio e milhares se acotovelam do lado de fora tentando pelo menos escutar o que se passava. Um clima típico de jogo de futebol ou show de música pop. Mas todos que estavam ali, a maioria jovens, queriam ver e ouvir os conferencistas daquela tarde/noite.

A pesquisadora indiana Radha Kumar e o escritor e ex-deputado suíço Jean Zigler arrancam aplausos do público. O teólogo Leonardo Boff emociona na Oração de São Francisco, em nome da paz. Mas o centro das atenções é Eduardo Galeano. A ele cabe a primeira palavra da conferência.

Autor do clássico As Veias Abertas da América Latina, livro-referência para a esquerda nos anos 70, talvez o escritor e jornalista uruguaio não imaginasse chegar ao século XXI com a popularidade que possui. Seu discurso poético, mas sempre irônico e mordaz, continua conquistando multidões. No FSM, sua principal mensagem foi que todos podemos e devemos trabalhar juntos, construindo um mundo em que o “nós” esteja acima do “eu”. Diz que é para isso que nasceu o Fórum Social Mundial: para que, ao contrário do que prega o pensamento único, possamos dizer, em alto e bom som, a palavra “nós”. Veja alguns dos principais trechos da palestra de Galeano.

Educação para a violência David Grossman, que foi tenente-coronel do exército dos Estados Unidos e é especialista em pedagogia militar, já demonstrou que o homem não está naturalmente inclinado para a violência. Ao contrário do que se supõe, não é nada fácil ensinar a matar o próximo. A educação para a violência, que brutaliza o soldado, exige intenso e prolongado treinamento. Segundo Grossman, esse treinamento começa, nos quartéis, aos 18 anos de idade. Fora dos quartéis, começa aos 18 meses de idade. Muito antes da hora, a televisão dita esses cursos em domicílio.

Crucificação da verdade O escritor John Reed havia comprovado, em 1917, que “as guerras crucificam a verdade”. Muitos anos depois, outro compatriota, o presidente Bush pai, que havia promovido a primeira guerra contra o Iraque com o propósito de libertar o Kwait, publicou suas memórias. Nelas, confessava que os EUA tinham bombardeado o Iraque porque não se podia permitir “que um poder regional hostil tomasse como refém boa parte do fornecimento mundial de petróleo”. Talvez, quem sabe, alguma vez, o presidente Bush filho publicará uma errata sobre sua própria guerra contra o Iraque, em que diria: onde se lê “Cruzada do Bem contra o Mal”, deve-se ler: “Petróleo, petróleo e petróleo”.

Mais de uma errata será necessária. Por exemplo, haverá que se deixar claro que onde se diz “Comunidade Internacional”, deve-se ler: líderes belicistas e grandes banqueiros. Quantos são os arcanjos da paz que nos defendem dos demônios da guerra? Cinco. Os cinco países que têm direito a veto no Conselho de Segurança da ONU. E esses guardiões da paz são, ademais, os principais fabricantes de armas. Estamos em boas mãos.

E quantos são os donos da democracia? Os povos votam, mas os banqueiros vetam. Uma monarquia de tríplice coroa reina sobre o mundo. Cinco países tomam as decisões no Fundo Monetário Internacional. No Banco Mundial mandam sete. Na Organização Mundial de Comércio, todos têm direito a voto, mas nunca se vota. Mas é necessário reconhecer, para não ser dogmático e sectário, as virtudes dessas organizações que governam o mundo. No fundo, merecem nossa gratidão: elas afogam nossos países, mas depois nos vendem salva-vidas de chumbo.

Mentira como regra Em 1995, a Associação Americana de Psiquiatria publicou informe sobre a patologia criminal. Qual é, segundo os experts, o traço típico dos delinqüentes cotidianos? A inclinação para a mentira. E alguém se pergunta: não é esse o mais perfeito sinal de identificação do poder universal?

O que se deve ler, por exemplo, onde se diz: “liberdade de trabalho”? Deve-se ler “direito dos empresários de arremessar ao cesto de lixo dos séculos as conquistas trabalhistas. Trabalha-se o dobro em troca da metade: horários flexíveis, salários anões, demissões à vontade e que Deus cuide dos acidentes, das doenças e da velhice. As principais empresas multinacionais, Wal-Mart e McDonald’s, proíbem expressamente os sindicatos. Quem se filia a um sindicato perde seu emprego no ato. No mundo de hoje, que castiga a honestidade e recompensa a falta de escrúpulos, o trabalho é objeto de desprezo. O poder se disfarça de destino, diz ser eterno, e muita gente desce da esperança como se ela fosse um cavalo cansado. Por isso, a eleição de Lula vai muito além das fronteiras deste país: a vitória de um trabalhador sindicalista, que incorpora a dignidade do trabalho, ajuda a difundir as vitaminas que todos precisamos contra a peste da desesperança.

Procura-se Para que não digam que em Porto Alegre nos reunimos os contrários e ressentidos de sempre, deixemos claro que em alguma coisa estamos de acordo com os mais altos dirigentes do mundo: também somos inimigos do terrorismo em todas as suas formas. Poderíamos propor a Davos uma pauta comum. E ações conjuntas para capturar os terroristas, que começariam por pregar, em todas as paredes do planeta, cartazes que digam “Procura-se”. Procuram-se os comerciantes de armas, que precisam da guerra como os fabricantes de agasalhos precisam do frio. Procura-se a banda internacional que seqüestra países e jamais os devolvem a seus nativos e ainda cobram resgates multimilionários que a linguagem de malandro chama de serviços da dívida. Procuram-se os delinqüentes que roubam comida em escala planetária, estrangulam salários e assassinam empregos. Procuram-se os violadores da terra, os envenenadores da água e os ladrões de bosques. E também os fanáticos da religião do consumo, que desataram a guerra química contra o ar e clima deste mundo.

Valor e preço O poder identifica valor e preço. Diga-me quanto pagam por você e eu te direi quanto você vale. Mas há valores que não estão ao alcance de qualquer cotação. Não há quem os compre, porque não estão à venda. Estão fora do mercado e por isso têm sobrevivido.

Obstinadamente vivos esses valores são a energia que move os músculos secretos da sociedade civil. Provêm da memória mais antiga e do mais antigo sentido comum. Esse mundo de agora, essa civilização do salve-se quem puder e cada um por si, está com amnésia e perdeu o sentido comunitário, que é o pai do senso comum. Em épocas remotas, no mais ancestral dos tempos, quando éramos os animais mais vulneráveis da zoologia terrestre, quando não passávamos da categoria de almoço fácil na mesa de nossos vizinhos vorazes, fomos capazes de sobreviver, contra toda evidência, porque soubemos nos defender juntos e porque soubemos repartir a comida. Hoje em dia, mais que nunca, é necessário recordar essas velhas lições do senso comum.

Aula boliviana Defendermo-nos juntos para que não nos roubem a água. A água, cada vez mais escassa, foi privatizada em muitos países, e está nas mãos de grandes corporações multinacionais. (Daqui a pouco, se continuarmos assim, também irão privatizar o ar: por não pagá-lo, não sabemos dar valor a ele e não merecemos respirá-lo). Para que a água continue sendo um direito, e não um negócio, uma passeata desprivatizou a água na região boliviana de Cochabamba.

As comunidades campesinas marcharam desde os vales e bloquearam a cidade. A eles, responderam à bala. Após muita espera, depois de muito andar, recuperaram a água, que o governo havia entregado a uma corporação britânica. Isso aconteceu há alguns anos. Defendermo-nos juntos.

Os músculos secretos da sociedade civil O petróleo move a sociedade de consumo, como se sabe, e, como também se sabe, tem seus maus costumes. Entre outras manias, está a de derrubar governos, provocar guerras, intoxicar o ar e poluir as águas. Há pouco, a maré negra, pegajosa e mortal, cobriu o mar e as costas da Galícia e mais além. Um navio petroleiro se partiu pela metade e derramou milhões e milhões de litros de gasolina, com a irresponsabilidade e a impunidade que se tornaram corriqueiras nestes tempos em que o mercado manda e o Estado não controla nada. E então, ante um Estado cego e um governo surdo, que não faz mais do que encolher os ombros, os músculos secretos da sociedade civil mostraram sua energia: uma multidão de voluntários enfrentou a invasão inimiga de mãos limpas, armadas de paus, tacos e o que mais estivesse à mão. Os voluntários não derramaram lágrimas de crocodilo nem pronunciaram discursos teatrais.

Defendermo-nos juntos e repartirmos a comida: uma tonelada de comida chegou recentemente, por trem, ao rincão mais pobre da província argentina de Tucumán, onde há crianças que morrem de fome. E esse envio solidário vinha dos “cantoneiros”, os pobres mais pobres de Buenos Aires, que ganham a vida revolvendo lixo, mas são capazes de repartir o pouco, ou quase nada, que têm.

O “eu” e o “nós” Qual é a palavra que mais se escuta no mundo, em todas as línguas? A palavra “eu”. Eu, eu, eu. Todavia, um estudioso das línguas indígenas, Carlos Lenkersdorf, revelou que a palavra mais usada pelas comunidades maias, a que está no centro dos dizeres e viveres, é a palavra “nós”. Em Chiapas, a palavra ‘nós’ corresponde a ‘tik’. Para isso, nasceu e cresceu o Fórum Social Mundial, na cidade de Porto Alegre, modelo universal da democracia participativa: para dizermos a palavra “nós”. Tik, tik, tik.

Edição: Glauco Faria