Passagem de Paulo Guedes pela Universidade do Chile é obscura até para colegas neoliberais chilenos

Os chamados “Chicago boys”, economistas chilenos formados na Universidade de Chicago, usaram o país andino como cobaia para os conceitos que aprenderam diretamente com os gurus do neoliberalismo. Entre esses formados em Chicago que usaram aquele Chile ditatorial como trampolim para suas carreiras estava um brasileiro, chamado Paulo Roberto Nunes Guedes.

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Por Paola Cornejo e Victor Farinelli VALPARAÍSO, CHILE – Em princípios dos anos 1980, Paulo Guedes foi convidado para ser acadêmico e investigador na Universidade do Chile, a mais importante do país. Porém, muito pouco se sabe realmente sobre os pouco mais de três anos de sua passagem por essa casa de estudos. Entre outras coisas, o fato de que se deu durante os anos em que a instituição vivia sob fortíssima intervenção da ditadura de Augusto Pinochet contribui para que as informações sobre o período sejam de difícil acesso, seja porque alguns foram ocultados, seja porque as testemunhas daqueles anos sejam um pouco resistentes a relatá-los. As ditaduras que sacudiram a América do Sul durante os anos 1960 e 80 foram o cenário ideal para diferentes experimentações econômicas nos países da região, e em um deles em particular (exatamente o Chile de Pinochet) teve fortíssima influência e também a presença de um grupo grande desses “cientistas econômicos”. Eram os chamados “Chicago boys”, economistas chilenos formados na Universidade de Chicago, que usaram o país andino como cobaia para os conceitos que aprenderam diretamente com os gurus do neoliberalismo, como Milton Friedman e Friedrich Hayek, e contavam com o apoio do ditador Pinochet. Entre esses formados em Chicago que usaram aquele Chile ditatorial como trampolim para suas carreiras estava um brasileiro, chamado Paulo Roberto Nunes Guedes. A proposta para que ele fosse ao país partiu do então decano da casa de estudos, Jorge Selume, um economista e empresário que foi Diretor de Orçamento durante o governo ditatorial de Augusto Pinochet – posteriormente, Selume se transformaria em dono de um banco (CorpBanca, e também foi gerente executivo do Santander Chile) e teria participação acionária em empresas do setor da saúde (Clínica Indisa), educação (Grupo Laureate) e até de futebol (Blanco & Negro, empresa que administra o Colo-Colo, desde que este se transformou em clube-empresa). Ao visitar a Faculdade de Economia da Universidade do Chile atualmente, é difícil encontrar professores que tenham ao menos convivido com Guedes naqueles anos, e quem explica esse fenômeno é o economista Ricardo Ffrench-Davis, atual professor da instituição. Segundo Ffrench-Davis, “aqueles foram tempos de forte intervenção do regime militar nesta universidade, e poderia dizer que esta faculdade onde nós estamos foi a que mais sofreu com a imposição de uma só visão econômica possível, que era a que dava razão ao modelo que estava sendo imposto”. Ffrench-Davis fala com a autoridade de quem, assim como Guedes e a maioria dos ministros da equipe econômica de Pinochet, também é um Chicago boy. Sim, e ele também fez pós-graduação na Universidade de Chicago nos anos 70, embora seja considerado por seus colegas chilenos como uma espécie de “ovelha negra”, ou um moderado que dialoga com a socialdemocracia. Na verdade, ele é um questionador da ortodoxia neoliberal, mas não chega a contrariar mais profundamente o modelo. Foi presidente do Banco Central chileno durante o governo do democrata cristão Patricio Aylwin, primeiro presidente do país após o fim da ditadura. O Chicago boy desgarrado completa sua visão sobre Guedes fazendo um certo reconhecimento ao seu perfil moderado. “Eu não era um desconhecedor da doutrina de Chicago, estudei com os mesmos professores que eles, mas não concordava com ortodoxia que se impunha na faculdade naqueles anos, então era um lugar onde não havia lugar para um professor como eu”, comenta Ffrench-Davis, dando a entender que somente o ultraneoliberalismo tinha lugar na Universidade do Chile nos Anos 80. “Não conheço Guedes pessoalmente, mas se ele esteve naqueles anos é porque se encaixava nessa ortodoxia”. Outro que passou pela Faculdade de Economia da Universidade do Chile é Roberto Pizarro, que foi professor durante o governo de Salvador Allende, época em que foi contemporâneo de outros dois brasileiros que sim são lembrados até hoje por sua passagem: Marco Aurélio Garcia e Teotônio dos Santos. “As autoridades militares clausuraram esta casa de Estudos no mesmo dia 11 de setembro de 1973. Todos os professores foram expulsos, alguns foram presos, e a mesma sorte tiveram alguns estudantes. A intervenção na economia, desde a prática do governo até a produção de pensamento econômico sempre foi uma questão fundamental para os que deram o golpe. Tentaram exterminar qualquer resquício de pensamento econômico diferente do que eles começaram a impor a partir dali. Todos os professores da faculdade de Economia tinham que defender os conceitos que justificavam a hegemonia dos privados na saúde, na educação e na previsão social, a diminuição do Estado até a sua mais mínima expressão, a abertura total dos mercados, entre outras coisas”, conta o economista, que também é colunista do periódico El Desconcierto. Após fugir do país durante o golpe de Estado, Pizarro passou pela Argentina, pela Nicarágua e pelo Reino Unido durante seus anos de exílio, e só regressou ao país natal nos Anos 90. Mesmo não tendo vivido os Anos 80 no Chile, ele conhece muito bem as figuras que comandavam a Universidade, e tampouco se lembra de Guedes: “se esteve, não era alguém conhecido, com tudo o que significa ser uma figura sem expressão em um período que ainda por cima era marcado pela repressão ideológica”. Mas há sim quem lembre do ministro bolsonarista. Ricardo Paredes, atual reitor do instituto Duoc UC – uma espécie de filial técnica da Pontifícia Universidade Católica do Chile –, embora seja ligado a outra casa de estudos, também é um conhecido de Guedes, e se refere a ele como “uma pessoa agradável, simpática e inteligente. Tinha certa fama de manejar bem os temas de macroeconomia, e era recomendado por Robert Lucas Jr, que era um dos economistas de Chicago mais influentes daquela época, falar de Lucas naquele então era como falar de Romer agora” – contou Paredes, terminando com uma referência a Paul Romer, vencedor do Nobel de Economia de 2018, assim como seu outro citado, Robert Lucas Jr., foi ganhador do mesmo prêmio em 1995. Contudo, Paredes tampouco foi capaz de dar maiores detalhes sobre a passagem de Guedes pela Universidade do Chile. “Ele dava conferências sobre macroeconomia e matemática, e quem se inscrevia podia assistir, mas eu não fui seu aluno”, recorda o acadêmico, que completa explicando a razão de sua saída do Chile: “não ficou muito tempo, pouco mais de três anos. Foi embora porque sua esposa não sabia lidar com os terremotos”. O Chile é um dos países mais sísmicos do mundo, e especialmente a cidade de Santiago sofreu um dos seus maiores abalos no ano de 1985. O jornalista e analista chileno Cristián Bofill, outro que conheceu Guedes por sua passagem no Chile, comenta sobre sua decisão de se instalar no país andino. “Ao voltar ao Brasil com o diploma de Chicago, ele tinha expectativas com respeito ao seu desenvolvimento profissional, mas encontrou um cenário muito adverso, se sentiu marginalizado, os economistas que tinham a hegemonia no Brasil naquele então não deram a ele os postos acadêmicos e cargos governamentais que ele achava que merecia. Então decidiu ir ao Chile, onde muitos colegas de Chicago estavam tendo essa oportunidade”, relatou o jornalista, em artigo publicado no diário El País, em outubro de 2018, dois dias depois da vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno. Guedes não teve cargos no governo de Pinochet, até porque seria impossível. Embora o ditador fosse um adorador dos conceitos neoliberais, tinha que manter o discurso ultranacionalista e de rejeição às influências estrangeiras, que sustentava parte de sua popularidade. No máximo umas visitas de Friedman para tomar um chá no Palácio de La Moneda e dar instruções aos seus pupilos, e alguns outros neoliberais latino-americanos que foram convidados a acompanhar o processo chileno, para depois poderem replicá-lo em seus países, como foi o caso do brasileiro Guedes. E lá está ele, hoje, como bastião do ressurgimento desse modelo econômico no Brasil, liderando um projeto econômico que visa arrematar definitivamente os pilares do Estado de bem-estar brasileiro, com o sucateamento das instituições públicas dedicadas à educação, à saúde, à previdência social e à exploração dos recursos naturais estratégicos. Um modelo com o que precisará conviver com as violações aos direitos humanos para manter a população resignada a algumas reformas mais populares, e para isso conta com o apoio de dois governadores não necessariamente aliados – agora, embora sim tenham sido na campanha eleitoral de 2018 –, mas sim convictamente neoliberais, como João Dória (São Paulo) e Wilson Witzel (Rio de Janeiro), e suas polícias militares que estão entre as mais violentas do Brasil. Tais violações aos direitos humanos também contribuíram para a imposição de reformas impopulares, mas necessárias para consolidar o sistema naquele Chile dos Anos 80, e que voltaram a ser necessárias, trinta anos depois, para reprimir a revolta generalizada da população contra o modelo. A respeito disso, Paulo Guedes comentou em entrevista recente à revista Financial Times – a mesma que publicou esta semana uma matéria acusando o governo brasileiro de divulgar cifras econômicas que não são confiáveis –, que “os chilenos não entendem a razão do seu sucesso econômico”. De quebra saiu com uma desculpa típica do bolsonarismo, que é colocar nos outros a culpa dos seus fracassos, ao dizer que os protestos deste ano são culpa mais dos governos socialdemocratas do que liberais: “se algo não funciona é a socialdemocracia, que teve sete presidentes, enquanto os liberais tiveram só um”. Na verdade, Guedes mentiu: depois da ditadura de Pinochet, o Chile teve sete mandatos presidenciais, sendo cinco deles da aliança de centro-esquerda Concertación, que pode ser rotulada como socialdemocrata, e os outros dois, não apenas um como alega Guedes, foram lideradas pelo neoliberal Sebastián Piñera, atual presidente – embora três dos presidentes “socialdemocratas” tenham sido privatizadores e protetores do modelo pinochetista, entre eles o socialista Ricardo Lagos, amigo pessoal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e cujo governo foi igualmente neoliberal.