Pingüins ou falcões, eis a questão

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Muita neve, icebergs, geleiras, dias sem noites no verão e noites sem dias no inverno. Caso o Brasil não queira aderir à Alca, esse será o cenário onde nossos diplomatas terão que negociar futuros acordos. Pelo menos é o que pensa (ou pensava) o representante comercial norte-americano Robert Zöellick, ao dizer que se o país não aceitasse integrar a Área de Livre Comércio das Américas, teria que fazer acordos com a Antártida. O recado, dado à época das eleições presidenciais, era para o líder das pesquisas Luiz Inácio Lula da Silva que, de acordo com o pensamento do norte-americano, não deveria levantar obstáculos à concretização da Alca quando empossado. Lula foi taxativo: não iria negociar com o “sub do sub do sub”.

Após a posse do petista, os dois se encontraram. Zöellick pediu desculpas a Lula e as arestas foram aparadas. Mas os motivos do impasse entre Brasil e Estados Unidos pouco mudaram. O unilateralismo que tomou conta da Casa Branca sob o comando de George W. Bush diminui a margem de manobra do Brasil. A política comercial dos EUA passa a obedecer a princípios estratégicos geopolíticos rígidos e colocam o país em uma situação em que talvez seja mais fácil convencer os pingüins da Antártida do que fazer os EUA abrirem mão de determinados pontos do acordo.

“Até agora não houve negociação”, sustenta Luiz Fernando Garzon, sociólogo e mestre em Ciências Políticas pela Unicamp. “Os EUA estão empurrando goela abaixo dos países latino-americanos o seu modelo de Alca sem nenhuma concessão aparente. É o que ficou estabelecido no Trade Promotion Authority (TPA): reserva de 521 produtos sensíveis, manutenção das medidas de comércio unilaterais e a imposição de regimes de flutuação cambial vinculados ao dólar”, pontua. Essa reserva dos chamados produtos “sensíveis” acaba protegendo diversas áreas onde os norte-americanos não são competitivos. Açúcar, carne, tabaco e outros itens agrícolas estão entre eles e boa parte é essencial para a pauta de exportação brasileira (os agronegócios representam 41% das exportações do país).

E é na agricultura que se estabelece uma das principais áreas de conflito entre Brasil e EUA. Um estudo da Union Nations on Trade and Development (Unctad) aponta que 60% das exportações brasileiras estão sujeitas a algum tipo de barreira no país de Bush. Segundo estudo realizado pelo Ministério das Relações Exteriores, os 15 principais produtos brasileiros exportados para os EUA são taxados em 45,6% em média enquanto os 15 principais produtos dos EUA exportados para o Brasil apresentam taxas médias de 14,3%. Embora a economia americana possua tarifas bem mais baixas que a brasileira, há picos tarifários em vários produtos, como o tabaco, cuja proteção chega a 300%. Para produtos manufaturados, gira entre 3% e 4% enquanto o Brasil tem uma tarifa média aplicada de 14%. Entretanto, por meio de barreiras não tarifárias como as fitossanitárias, cotas (como no açúcar), subsídios (apenas em 2000, calcula-se em torno de US$ 32,3 bilhões) e medidas antidumping, os norte-americanos conseguem proteger suas áreas mais frágeis. “Feito um balanço do comércio bilateral, as tarifas, sobretaxas, penalizações e outros mecanismos tarifários e não tarifários situam o comércio de dezenas de produtos brasileiros nos Estados Unidos em um grau médio várias vezes acima do brasileiro, com relação à entrada de produtos americanos no Brasil. Esse tratamento desigual será um nó a desatar pela negociação”, lembra Amando Luiz Cervo, professor de História das Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

A estratégia norte-americana consiste em negociar o que convém no âmbito da Alca e o resto na Organização Mundial do Comércio (OMC), onde eventuais perdas com a diminuição de tarifas podem ser compensadas na negociação com países europeus e asiáticos. “Quando falamos em eliminar subsídios, assim como dumping e salvaguardas, os EUA só querem negociar no plano multilateral”, aponta Alberto Pfeifer, coordenador brasileiro do Conselho de Empresários da América Latina (CEAL). “Se prevalecer o que está sendo acertado nessas discussões, surgirá uma Alca cheia de penduricalhos e o grosso da parte comercial vai continuar nas mãos da OMC”, analisa.

Onde o calo dói Embora o termo Alca diga respeito apenas à área comercial, o acordo vai muito além. Envolve áreas como serviços, investimentos e compras governamentais. E, para os EUA, o eixo principal dessa discussão se baseia em garantir instrumentos de acesso aos mercados (liberalização com quebra de barreiras) e garantir para suas empresas, no caso de compras governamentais, tratamento igual ao dado à empresa nacional.

Se na área de comércio de bens a diferença entre EUA e os outros países do continente já é gritante, na transação de serviços isso é ainda pior. Os EUA são os maiores exportadores e importadores do mundo nesse ramo, mas enquanto no comércio de bens há um déficit de quase meio trilhão de dólares, nas transações de serviços existe um superávit de US$ 75 bilhões (dados de 2001). Já os países da América Latina possuem um déficit em serviços de US$ 14 bilhões.

Dada a desproporção de forças, certamente é aí que países como o Brasil tem mais a perder. Nos itens turismo, transporte e serviços profissionais, há um grande déficit, que pode aumentar com a concretização da Alca. “No que diz respeito ao projeto e suas conseqüências para as transações internacionais de serviços, o fator de maior relevância talvez seja o potencial de crescimento da demanda por importações do Brasil”, explica o economista Reinaldo Gonçalves, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para ele, essa demanda potencial é facilmente visualizada quando se compara o padrão de exportação norte-americano e o padrão de importação brasileiro. No item educação, por exemplo, os EUA encontrariam um grande mercado em expansão no país. “Em 1998, as exportações totais de serviços de educação feitas pelos Estados Unidos foram de US$ 9 bilhões. Nesse mesmo ano, as importações totais de serviços de educação feitas pelo Brasil foram de US$ 29 milhões e estima-se que o mercado educacional brasileiro tenha um potencial de negócios da ordem de US$ 90 bilhões. Esses números mostram, claramente, o potencial de exportação de serviços educacionais dos Estados Unidos para o Brasil, caso haja uma liberalização e desregulamentação no âmbito do projeto da Alca. Isso também ocorre no caso de vários outros tipos de serviços profissionais”, conclui Gonçalves.

A linha de ação brasileira A assimetria entre os países que irão compor a Alca é gritante. Os Estados Unidos, sozinhos, representam 79% do PIB continental. Isso faz com que os outros países tenham um poder de negociação bastante reduzido. Reinaldo Gonçalves fez um estudo a respeito do poder de barganha dos países latino-americanos em relação aos EUA, levando em conta vários fatores. Entre eles, a dependência bilateral com relação ao mercado norte-americano. “O México, que tem aproximadamente 86% das suas exportações orientadas para os Estados Unidos, tem um poder de barganha significativamente menor vis-a-vis aos norte-americanos do que a Argentina, por exemplo, de quem os Estados Unidos absorvem somente 11% das exportações”, analisa Gonçalves.

Outros fatores determinantes na definição do poder de barganha dos países são a vulnerabilidade financeira externa, o tamanho do mercado interno (medido pelo valor absoluto do Produto Interno Bruto) e o grau de inserção do país na economia internacional. Neste último quesito, vale a regra: quanto mais liberal for o país, menos possibilidades de negociação ele tem. Claro que nem tudo se restringe a esses pontos, mas já fica clara a diferença entre os países das Américas em relação aos Estados Unidos.

Segundo a análise de Gonçalves, os países melhor posicionados nas discussões com os Estados Unidos são a Argentina e o Brasil. Entretanto, o problema da vulnerabilidade financeira externa de ambos e a crise sistêmica argentina reduzem significativamente a margem de manobra deles. Quanto à possibilidade de negociação em bloco por meio do Mercosul, como tem sido a linha do governo brasileiro, Gonçalves é taxativo. “É um equívoco imaginar que a formação de alianças estratégicas com outros países ou blocos regionais possa aumentar o poder de barganha do Brasil em relação aos Estados Unidos”. Para ele, o país precisa de uma nova diretriz para sua política exterior. “No que se refere às questões econômicas, precisamos focar nos acordos bilaterais. Isso significa o desengajamento gradual do moribundo Mercosul e a rejeição da Alca”, conpleta.

No entanto, o governo brasileiro julga o fortalecimento do Mercosul uma ação estratégica importante para enfrentar os EUA. A linha adotada é aberta às negociações, porém buscando preservar os interesses brasileiros. “Nós não morremos de amores pela Alca, mas vamos negociar”, afirma Tovar da Silva Nunes, coordenador geral das Negociações da Alca do Ministério das Relações Exteriores. “Toda questão de comércio exterior envolve um ponto básico: se você acha que tem a ganhar ou não com o acordo. Agora, o Brasil é responsável por apenas 1% de todo o comércio internacional e não vai ser ele quem vai dar as regras. O fato é que não dá para fechar o mercado, além do que, a abertura comercial pode trazer ganhos”, acredita.

Para Nunes, o acordo não significa, como muitos acreditam, uma abertura geral em todos os setores. Além disso, a sanha norte-americana por medidas de liberalização encontrará resistências por parte do Brasil. “Estamos nessa negociação na condição de país menor diante dos EUA, o que nos obriga a tomar cuidados ainda maiores nas regras e na obtenção de vantagens. O acordo só será interessante para nós se os EUA entenderem que somos um país em desenvolvimento e que serão estabelecidas algumas salvaguardas nacionais e internacionais para garantir nossos interesses”, defende.

O que parece ser ponto pacífico entre especialistas e membros do governo é que o Brasil deve assumir definitivamente sua posição de líder na América Latina, buscando a união com outros países. “O Brasil não conseguirá sair da armadilha da Alca se não definir as suas próprias prioridades de integração, além de metas, prazos e cronogramas afins. O ideal seria constituir um bloco econômico sul-americano, com alianças estratégicas com a África do Sul, Índia e China. Não podemos insistir no erro de disputar entre nós o melhor acesso ao mercado norte-americano”, aponta Luiz Fernando Garzon. Para ele, “o Brasil é o único país preparado para articular as combalidas economias da região em um torno de um bloco econômico cooperativo”.

Amando Cervo crê que, além da liderança regional, o país deve buscar acordos com países de fora do continente americano, corrigindo a linha de ação adotada pelo governo FHC. “O Brasil desenvolveu desde os anos 60 uma política de comércio exterior universalista, correndo atrás de todas as oportunidades. Nos anos 90, perdeu terreno em várias frentes, como a África, o Oriente Médio e o continente asiático, deixando de penetrar mercados novos como o da Rússia e dos países do Leste europeu. Ou seja, Cardoso interrompeu essa tendência, em favor de uma ilusória penetração nos mercados do Primeiro Mundo e de uma concreta expansão do comércio no interior do Mercosul”. Para Cervo, Lula não deve se restringir à Alca ou ao Mercosul. “As prioridades do governo atual na área do comércio exterior são, fora de dúvida, o mercado sul-americano. Contudo, esse esforço deve vir acompanhado da recuperação do universalismo comercial e da reconquista de mercados e de oportunidades perdidos ou malbaratados pela política elitista anterior”, acredita.

Já calejados por uma abertura econômica que levou o país ao desmonte de parte da indústria nacional nos anos 90, empresários de diversos setores também temem pelo que será negociado na Alca. “O Brasil deve fazer exatamente o que fazem os Estados Unidos: defender intransigentemente os interesses de suas empresas e de seus empregados. Disso depende o nível de emprego e de renda. A negociação comercial é dura e não se pode fazer concessões unilaterais sem graves riscos para o país”, defende Amando Cervo, que completa: “Está na hora de aplicar um choque de introspecção nas negociações comerciais internacionais, por modo a robustecer um núcleo empresarial brasileiro, que quase foi posto a perder pela abertura indiscriminada e não negociada durante a era Cardoso”. Tovar da Silva Nunes garante que esta será a postura do governo. “Temos de lembrar da face humana, não só os possíveis ganhos em comércio, mas nos reflexos positivos em geração de emprego e renda que um acordo desse pode ou não trazer”.

Colaboraram Anselmo Massad e Nicolau Soares.