Pontos para uma gestão cultural transformadora (parte 2)

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Cultura como processo

O nome já diz, cultura, do latim colere, cultivo. Cultivar a mente é a mesma coisa que cultivar a vida, produzir alimentos, manejar o ambiente. Como se faz para cultivar alimentos (ao menos enquanto os transgênicos ou pílulas cibernéticas – todos devidamente patenteados e com poucos donos ganhando muito dinheiro – não tomam conta do planeta)? Prepara-se a terra, depois a semeadura, o acompanhamento do crescimento das plantinhas, o cuidado com elas evitando ervas daninhas e pragas, a irrigação… Depois a colheita. E após a colheita, a seleção das sementes, o preparo da terra, o cuidado com as plantas, a irrigação… Depois a colheita. Depois, tudo novamente.

Em política cultural também devemos agir assim. O zelo com o patrimônio, sem o qual não temos base para nos projetar para o futuro; a formação continuada dos cidadãos em programas de educação integral ou cursos livres, oficinas e interações estéticas (e éticas) voltadas para todas as idades, gênero ou classe social. O fomento à produção e criação artística e simbólica, com liberdade e transgressão.

Preserva-se o patrimônio cultural ou ambiental, formam-se as pessoas e se fomenta a criação simbólica e artística, não para deleite de poucos, mas para a fruição ampla. Por isso a necessidade da difusão e circulação dos bens culturais, que devem ir muito além de eventos. Em uma política cultural consistente o evento é resultado de um processo, nunca um fim em si mesmo. Um processo de irrigação constante, que preserva, forma, fomenta, difunde… E se recria. Cultura, cultivo, colere.

Tratar a cultura enquanto processo pressupõe colocar a sua dinâmica em um ciclo completo:

Patrimônio cultural – Conhecer e recuperar o patrimônio cultural é a base de uma nação. Um povo que não tem um acervo de conhecimentos, arte e memória não tem referências que lhe permitam projetar-se para o futuro; estará condenado a ser um mero receptor, nunca um criador. O empobrecimento cultural, a degradação ambiental e a perda de perspectivas criativas prosperam no terreno fértil do desrespeito e do desconhecimento do patrimônio cultural.

Preservar o patrimônio não é contraditório com desenvolvimento econômico e social; pelo contrário, impulsiona-o. O patrimônio cultural também não pode ser reduzido a um mero conjunto de edifícios ou obras de arte; ele é vasto e envolve todos os campos da ação humana, tangíveis ou intangíveis. O meio ambiente e nossas reservas naturais fazem parte desse patrimônio, assim como todo o conhecimento científico e tecnológico e o “saber fazer” transmitido de geração em geração, como as danças, estórias infantis, músicas, lendas, brincadeiras. Tudo o que ganha sentido compõe nossa herança cultural. Essa é a base de nossa identidade (ou identidades) e constitui o alicerce do desenvolvimento econômico, tecnológico, social e artístico. Mas o reforço da identidade deve vir junto com a revelação das contradições inerentes ao processo histórico, rompendo com o senso comum construído sob determinados marcos representativos da cultura dominante e abrindo espaço para que os silenciados se ouçam e se façam ouvir.

Com base nesse entendimento, a prioridade a museus, arquivos e bibliotecas é decorrência. Do mesmo modo o registro literário, sonoro e visual da produção artística, passada ou contemporânea; assim como tombamentos, registro de expressões culturais, áreas envoltórias, preservação e revitalização ambiental são fundamentais para o desenvolvimento social de todo e qualquer povo. Civilizações que não respeitaram esses preceitos sucumbiram. Por situar-se na fronteira em que interesses econômicos entram em choque direto com os interesses da cultura, o patrimônio cultural precisa de legislação própria e acompanhamento constante, incluindo ações efetivas de fiscalização, repressão, prevenção e compensação (inclusive financeira, como, por exemplo, a troca do potencial construtivo de bens tombados).

Formação cultural – Uma política democrática de formação cultural não é uma simples relativização cultural, um “deixar fazer” sem critérios, democratizar é oferecer alternativas, desenvolvendo ações de contracultura em relação às imposições do moldável mercado. É se contrapor à indústria cultural, de consumo fácil e gosto duvidoso. E fazer isso com qualidade, oferecendo um cardápio cultural cada vez mais amplo e variado.

A formação cultural engloba desde o aperfeiçoamento permanente dos agentes culturais diretos (atores, músicos, produtores culturais, artistas plásticos, cineclubistas etc.) até projetos de iniciação cultural e artística de amplo alcance. Um programa de formação cultural que atinja a maioria da população deve estar solidamente implantado na complementação educacional de crianças e adolescentes, além de oferecer cursos e oficinas descentralizados, dirigidos a donas de casa, jovens, idosos e trabalhadores. A formação deve também prever o amplo acesso a livros, obras de arte e espetáculos dos mais variados estilos. Isto é formação de gosto e sua apreciação é resultado do conhecimento adquirido.

Pontos de Cultura administrados em gestão compartilhada (poder público/comunidade) e que tenham um funcionamento articulado com instituições mais bem equipadas, como museus, centros culturais e teatros, representam uma alternativa. Outras experiências também apontam o caminho de uma formação cultural sólida, permanente e de amplo alcance. Cabe identificá-las, sobretudo aquelas que compartilhem decisões, ampliem horizontes e possibilitem a distribuição de renda para uma população carente de possibilidades, propiciando o desenvolvimento de uma das economias que mais crescem no mundo: a economia da cultura. Nesse caminho de ampliação do repertório cultural, um público mais crítico vai se formando para consumir – e também produzir – uma prática cultural mais elaborada.

Informação e difusão cultural – Vivemos cada vez mais em uma sociedade na qual a informação é sinônimo de poder. Romper com a alienação e o embrutecimento imposto a milhões de pessoas é, efetivamente, desenvolver uma política democrática, de conquista da cidadania, e isso significa prever uma ampla e plural oferta de produtos culturais. Manter a população no campo de uma cultura “rasa” é o melhor caminho para subjugá-la; para romper com esse quadro é necessário “depurar” o “senso comum”, elevando a interpretação da cultura a uma concepção de mundo mais organizada e sistemática, colocada à altura da sociedade contemporânea. Para Gramsci, a cultura é um instrumento de uma práxis crítica que, sem descartar os elementos de uma cultura mais elaborada – chamada “erudita” –, desenvolve um processo de elevação da consciência.

Essa concepção não é estática e é possível perceber uma inter-relação dinâmica entre os diversos níveis da cultura. Assim como não se deve condenar o uso do “agradável” e do entretenimento como instrumentos de fruição do estético, também a difusão cultural ampla tem um papel nesse processo de evolução da consciência crítica; a música popular, em vários momentos, é exemplo disso. A televisão seria outra alternativa de como podemos introduzir “elementos culturais críticos” e novas referências a uma população que, pela primeira vez, pode ter contato com produtos culturais e conceitos antes inacessíveis. Evidentemente esta é uma possibilidade que, infelizmente, não é a tônica da programação televisiva; mesmo assim, ocupamos espaço, avançando com a TV pública e outras experiências de mídia livre, não submetida ao Estado ou às regras do mercado. Com o advento da Cultura Digital e da Mídia Livre é possível abrir um outro caminho, de mão dupla, mais polifônico, participativo, interativo e soberano.

No âmbito do programa Cultura Viva, abrimos mais uma pequena fenda com os Pontos de Mídia Livre e os Laboratórios de Mídia. Uma fresta bem pequena, mas que pode se alargar imensamente. Comunicação enquanto cultura, como direito humano básico, como um meio de expressão de indivíduos e grupos. Comunicação livre, colaborativa e compartilhada, feita em rádios comunitárias, sites independentes, blogs, TVs comunitárias, fanzines e tudo mais que permita a expressão humana.

Criação e produção cultural – Quanto maior for o domínio de análise simbólica que as pessoas têm sobre a produção social, melhor será a sua capacidade de articulação na sociedade. Os indivíduos se percebem pela cultura e é por meio dela que estabelecem relações entre si, definem valores e significados. Assim, a criação artística nunca será supérflua ou inútil, pois ela representa o espelho da alma humana, do estado de ser de indivíduos e povos e tem valor por si. Criação é, portanto, o objetivo que completa uma política cultural, que se realiza de duas maneiras:

a) Por meio da reflexão e da análise, desdobrando-se em ideias, comportamentos e condutas. b) Pelo fazer artístico.

Ao Estado compete assegurar total liberdade de manifestação e expressão, sem censura ou critérios de valor. A criação, mesmo acontecendo em qualquer lugar e presente em toda a sociedade, necessita de espaços próprios para se realizar plenamente. Uma gestão pública de cultura deve articular a abertura e a manutenção desses espaços (quem pensava que só o Ponto de Cultura daria conta, enganou-se; ele dará é mais trabalho aos governos, porque haverá muito mais gente exigindo equipamentos culturais de qualidade). Para além dos espaços públicos ou governamentais, há o papel da iniciativa privada, que pode incentivar espaços como teatros e salas alternativas, casas de espetáculos, auditórios, cinemas, galerias de arte, bares com música ao vivo, livrarias e outros. Esse apoio pode vir na forma de incentivos fiscais ou, preferencialmente, por meio da articulação de esforços e de uma legislação específica de fomento.

Com o Ponto de Cultura, abre-se um outro campo, antes pouco explorado (ou apoiado oficialmente): os espaços comunitários. Espaços tradicionalmente não aproveitados para o uso regular da arte, como escolas, sindicatos, igrejas, ruas e praças, ganham força e qualidade ao demonstrar que a cultura está presente em todos os lugares e em todas as pessoas. Aos poderes públicos locais e estaduais cabe garantir este campo de ação e também a abertura e a manutenção dos equipamentos culturais formais. Teatros, museus, centros culturais e bibliotecas enquadram-se nessa categoria e, definitivamente, sem verbas não é possível fazê-los funcionar. Quanto ao governo federal, mais que gerir equipamentos, cabe articular toda uma rede de produção e difusão cultural por meio do Sistema Nacional de Cultura.

Apoio à produção cultural, porém, é muito mais que incentivo, gerenciamento de agenda e manutenção de espaços. Devem-se oferecer espaços coletivos para ensaios, oficinas e guarda de cenários e figurinos, laboratórios, ateliês de arte (forno de cerâmica, prensa, laboratório fotográfico, etc.), estúdios de gravação e equipamentos de uso comum. Além de intercâmbios que permitam aos artistas uma troca de experiência (um efetivo programa de apoio a residências artísticas e viagens) e um maior contato com personalidades e referências da cultura nacional e internacional, inclusive desenvolvendo trabalhos em conjunto. Há também a necessidade de corpos artísticos estáveis, assegurando a permanência e pleno desenvolvimento de orquestras sinfônicas, óperas, balés e companhias de teatro ou dança de grupos estáveis. Com os Pontos de Cultura foram lançadas duas ações: Interações Estéticas, destinada a artistas que se disponham a uma produção artística efetivamente comum, em uma troca que qualifique ambos (Ponto e artista); e o Cultura Ponto a Ponto, estimulando vivências entre Pontos de Cultura. De ponto a ponto, a cultura como processo envolve um ciclo completo de criação artística que vai da ópera ao bumba-meu-boi, e não há contradição entre eles.

Este é o segundo texto de uma série de cinco artigos sobre políticas públicas para a cultura, adaptados do livro “Ponto de Cultura – o Brasil de baixo para cima” (Ed. Anita Garibaldi, 2009).