Por que a mídia que diz ser golpe adiar posse de Chávez saudou a do Sarney?

“O Sarney jamais poderia ter sido empossado como presidente, porque Tancredo morreu antes de assumir”, argumenta Adriano Diogo

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“O Sarney jamais poderia ter sido empossado como presidente, porque Tancredo morreu antes de assumir”, argumenta Adriano Diogo

Por Conceição Lemes, no Viomundo

Nesta quarta-feira 9, o Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela anunciou que é legal adiar a posse do presidente Hugo Chávez, prevista para hoje.

“O Poder Executivo, constituído por presidente, vice-presidente, ministros e demais órgãos e funcionários da administração, seguirá exercendo cabalmente suas funções com fundamento no princípio da continuidade administrativa”, afirmou a presidenta da principal Corte venezuelana, a juíza Luisa Estella Moraes. “Não é necessária nova cerimônia de posse de Chávez em virtude de não haver interrupção no exercício do cargo.”

Os antichavistas, lá e aqui, inclusive a mídia brasileira, continuam dizendo que é golpe à Constituição.  A oposição venezuelana quer a convocação de novas eleições.

“Essa mesma imprensa brasileira que hoje acusa o chavismo de golpe na Venezuela saudou como grande vitória da democracia brasileira a posse do Sarney, após a morte do Tancredo”, põe o dedo na ferida o deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP). “‘Esquece’ que os militares botaram o pé na porta e vetaram a posse do Doutor Ulysses e a convocação de novas eleições, que eram as saídas constitucionais.”

Em 25 de abril de 1984, a emenda das eleições diretas para presidente do Brasil foi rejeitada pela Câmara Deputados devido à manobra de políticos aliados do regime militar. Cento e doze deputados não compareceram ao plenário para votar, impedindo que se alcançasse o número mínimo de votos.  Foram 298 votos a favor, 65 contra e 3 abstenções.

O caminho foi a eleição indireta no Colégio Eleitoral. Em 15 de janeiro de 1985, senadores e deputados federais decidiram entre dois candidatos: Tancredo Neves, pelo PMDB, tendo como vice o senador José Sarney. E  Paulo Maluf, pelo PDS, cujo vice era Flávio Marcílio.

Tancredo ganhou, mas adoeceu e não tomou posse em 15 de março de 1985. A sua agonia durou 38 dias. Em 21 de abril de 1985, a sua morte foi comunicada oficialmente.

Sarney assumiu a presidência no dia seguinte. De 1964 até 1979, quando foi extinto o bipartidarismo, ele havia sido membro e presidente da Arena, o partido da ditadura militar. Em 1979, com o fim do bipartidarismo, ele se transferiu para o PDS, como a maioria dos arenistas, onde ficou até 1984. Aí, ele rompeu com o PDS e filiou-se ao PFL, de Marco Maciel. No mesmo ano, ele trocou o PFL pelo PMDB.

“O Sarney jamais poderia ter sido empossado como presidente, porque Tancredo morreu antes de assumir”, argumenta Adriano Diogo. “Por que essa mesma mídia que diz hoje que é golpe adiar a posse de Hugo Chávez não disse lá atrás que a solução Sarney era golpe? Chávez ainda está vivo, foi eleito em eleição direta pelo povo venezuelano, enquanto o Tancredo foi escolhido por um Colégio Eleitoral. O Sarney só assumiu por causa de um acordão com os militares.”

O sociólogo pernambucano Edival Nunes Cajá, 62 anos,  testemunhou esse momento crítico da história política brasileira, pois tinha ido a Brasília para a posse de Tancredo.

Por isso, Adriano Diogo sugeriu-me que o entrevistasse também.

Cajá é ex-preso político, trabalhou com Dom Helder Câmara de 1975 a 1979, atualmente preside o Centro Cultural Manoel Lisboa e é membro do Comitê Central do Partido Comunista Revolucionário. Em 2010, foi um dos observadores internacionais de eleição na Venezuela. [caption id="attachment_20718" align="aligncenter" width="479"] Adriano Diogo e Edival Cajá, ambos ex-presos políticos: “Os militares botaram o pé na porta e vetaram a posse do Doutor Ulisses e a convocação de novas eleições. Tinha de ser o Sarney[/caption]

Viomundo –  Cajá, o que você exatamente testemunhou? 

Edival Cajá – Eu tinha ido a Brasília para assistir à posse do presidente eleito Tancredo Neves. Na época, eu era primeiro suplente de deputado federal por Pernambuco e estava hospedado no apartamento do então deputado federal Osvaldo Lima Filho, ex-ministro de Jango.

Nós estávamos jantando no dia 14, às 19h, quando o deputado federal José Maria (PMDB-MG), amigo de Tancredo, chama Osvaldo por telefone. Era para informar que Tancredo tinha passado mal na missa e havia sido levado às pressas para o Hospital da Base Aérea de Brasília. A missa realizada na Catedral pelo cardeal arcebispo de Brasília, José Freire Falcão, já fazia parte da programação do ritual de posse.

Imediatamente, Osvaldo Lima e eu fomos  para a Câmara dos Deputados, palco das principais discussões sobre o que poderia acontecer nos dias seguintes. Enquanto Tancredo agonizava por longos 38 dias nos hospitais de Brasília e São Paulo, desenvolvia-se uma titânica luta política no Congresso Nacional e no Estado Maior das Forças Armadas em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo pela posse da presidência da República. Sentíamos no ar o clima de conspiração, de golpe de Estado.

Viomundo – Fale um pouco mais dessa luta titânica no Congresso Nacional.

Edival Cajá – Nós e todos os setores de esquerda interpretávamos, com base na Constituição vigente que, caso Tancredo morresse, deveria tomar posse como presidente o Doutor Ulisses Guimarães, presidente do Congresso Nacional, e jamais o Sarney, uma vez que Tancredo não havia sido empossado.

Entretanto, a grande imprensa falada e escrita, como verdadeiros porta-vozes dos quartéis, passou já nos dias seguintes à internação a estampar nas suas manchetes opiniões de ex-ministros da Justiça e juristas da ditadura, como Petrônio Portela, Ibrahim Abi Ackel, Leitão de Abreu, entre outros. Todos defendendo a posse do vice de Tancredo, José Sarney, mesmo sabendo tratar-se de uma afronta à Constituição, à consciência da nação e à saúde do presidente enfermo.

No final, acabou prevalecendo a posse do Sarney. Quem bateu o martelo não foi o Congresso Nacional e nem o Poder Judiciário, mas – pasme! –  os setores mais reacionários das Forças Armadas através do general Leônidas Pires Gonçalves, ex-chefe do DOI-CODI e do I Exército no Rio de Janeiro, de 1974 a 1977.

No auge da crise, o general Lêonidas declarou a uma comissão de representantes do Congresso, entre os quais o senador Pedro Simon: “Quem assume é Sarney”.

Pior ainda. Como condição para o Sarney tomar posse, ele se impôs como ministro do Exército. Foi um duro golpe da direita nas forças de esquerda do Brasil.

Viomundo – Mas por que não o Ulisses, já que, pela Constituição, ele deveria assumir, uma vez que o Tancredo não havia tomado posse?

Edival Cajá – Porque as forças de esquerda ainda estavam fracas, sem condições de se impor pela mobilização das massas, pelo pouco desenvolvimento na organização do movimento popular e sindical.

E as forças conservadoras ainda detinham a hegemonia no processo de transição política, sobretudo nos quartéis. Por isso, se impuseram. Além disso, dentro do movimento democrático, predominavam os liberais que temiam a confrontação, tinham medo de enfrentar diretamente os estertores da ditadura e receavam também serem confundidos com a esquerda revolucionária.

Viomundo – Por que não se convocaram novas eleições?

Edival Cajá – A nossa proposta era que o Doutor Ulisses assumisse e a convocação de novas eleições. Os militares bateram na mesa: nem Ulisses nem novas eleições. Tinha de ser o Sarney.

Viomundo — O que foi feito para que o Sarney tomasse posse?

Edival Cajá – Com certeza,  fizeram um grande acordo político do tipo vocês não mexem com o passado, a lei da anistia, torturadores, desaparecidos políticos, etc, e nós, militares, nos comprometemos em não dificultar o funcionamento das instituições democráticas, as eleições, etc’.

Viomundo – O deputado Adriano Diogo diz que o desenlace de Tancredo só se deu após os militares terem vencido a queda de braço com o Congresso e imposto o Sarney.

Edival Cajá – Foi isso mesmo, foram 38 dias de negociações, de tensões.  Cada lado teve tempo para sentir seus limites. Doutor Ulysses e Leônidas Pires pareciam ser os vértices, os pontos sensíveis opostos de toda a tensão.

Viomundo  — O quadro brasileiro daquela época tem alguma semelhança com o da Venezuela neste momento?

 Edival Cajá –Em certo sentido sim. Uso da calúnia, luta ideológica, da força, busca de  apoio dos EUA…Porém, o grau de organização das massas populares, do povo trabalhador em Comitês Bolivarianos nos bairros pobres, da coesão da direção política e das lideranças do Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV) é muito superior na Venezuela de hoje do que no Brasil de 1985.

Lá, como os dois lados não escamoteiam a confrontação política, resultou também num maior grau de politização e participação da população, o que é muito bom para o Movimento Chavista, para o PSUV, para a democracia popular.

Viomundo — E o comportamento da nossa mídia na época do Tancredo e agora com Chávez?

Edival Cajá — Acho que a grande mídia brasileira de hoje está muito mais centralizada, monopolizada e à direita do que no período do Tancredo, em 1985. E também lá na Venezuela.

Acho que a grave crise que o sistema capitalista mundial está vivendo levou ao agravamento desta situação. Assim como os bancos e as indústrias passaram por um processo de centralização, ficando em poucas mãos, os meios de comunicações de massa também em todo o mundo. No Brasil, apenas quatro famílias decidem qual acontecimento ou fato político vai virar notícia nacional e qual versão será propagada.

Assim também é na Venezuela. Lá, os políticos de oposição e a grande imprensa se parecem e se confundem nos interesses, dá a impressão de serem jornais e TV do partido da oposição, tamanho o alinhamento político, numa dosagem ainda pior do que no Brasil, devido ao grau de aguçamento da luta política e ideológica.

Viomundo –  Você esteve na Venezuela como observador internacional.

Edival Cajá — Fui convidado, oficialmente, como observador internacional das eleições de 2010.  Junto com representantes de cerca 40 países, eu tive a oportunidade de conhecer o sistema eleitoral de lá.

A minha surpresa foi encontrar um sistema eleitoral muito mais seguro que o nosso. Lá, já adotavam a fórmula biométrica de votar, urna eletrônica e, ainda no final da seção, urna e cédula convencional, porém, com uma tinta especial para marcar o dedo usado na cédula de votação, de modo que você não poderá mais votar em outra seção. De maneira que é praticamente impossível acontecer uma fraude da vontade do eleitor.

Entretanto, antecipadamente, a oposição já propagandeava que haveria fraude, tentando tirar a legitimidade do pleito. Nunca vi uma oposição política tão sem credibilidade na população trabalhadora e tão identificada com a linha editorial do sistema de TV CNN e assemelhados, com os interesses dos EUA.

Viomundo –  Trabalhou com Dom Helder Câmara por quanto tempo?

Edival Cajá — Durante quatro anos (1975-1979). Era assessor da Arquidiocese de Olinda e Recife e da CNBB-Nordeste – II, cujo presidente era Dom Helder Câmara.  Também fui membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife quando ele foi seu arcebispo. Dom Helder encantava todos aqueles que trabalhavam com ele devido à sua forma profética, transformadora de ver os homens e a sociedade.

Viomundo – Particularmente, o que te agradava em Dom Helder?

Edival Cajá – A sua grande generosidade quando se tratava de acolher os perseguidos políticos, os sem-teto, os sem-terra e os sem-nada, desempregados. Ele não se  preocupava com a cor ou ideologia dos militantes ou da organização política onde militavam. O seu compromisso sincero era com a libertação dos explorados e oprimidos, com a construção do novo homem e da nova sociedade.

Em 1978, fui sequestrado, torturado, preso, fiquei incomunicável com a minha família e advogados. Fui ainda atacado pela imprensa da ditadura como um homem perigoso à segurança da sociedade. Pois bem, Dom Helder declarou aos jornais que “Cajá está preso por amor à justiça e aos pobres”.

As suas declarações e a greve dos estudantes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que se espalhou até a Universidade do Paraná, impediram a continuidade das torturas e ameaças de morte.

Em 1973, no auge dos sequestros políticos e das torturas no Recife, Dom Helder procurou manter a esperança acesa dos que militavam por meio de uma das suas crônicas, na qual afirmava “quanto maior a escuridão, mais clara será a madrugada”.

Viomundo – Agora, qual a sua expectativa em relação à Venezuela?

Edival Cajá – Não acredito no êxito de mais esta ofensiva golpista da oposição venezuelana. Não acredito nesta nova tentativa de impor um novo calendário eleitoral ao povo venezuelano.