Por que o Brasil não julgou seus torturadores?

A historiadora Dulce Pandolfi, torturada durante o regime militar, analisa os 50 anos do golpe à luz de fatos recentes, como a morte de Cláudia Ferreira

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A historiadora Dulce Pandolfi, torturada durante o regime militar, analisa os 50 anos do golpe à luz de fatos recentes, como a morte de Cláudia Ferreira Por Canal Ibase Esta segunda-feira, 31 de março, um dia depois de a Polícia Militar entrar na favela da Maré para fazer uma ocupação que, em vez de garantir cidadania, instala no território um aparato de repressão, o Brasil revê um episódio histórico que traz muitos elementos para entender o presente. Esse 31 de março marca também 50 anos do golpe militar que depôs o presidente João Goulart para dar início à ditadura militar, um período de graves violações de direitos humanos e sociais. Cinco décadas passadas, será que a sociedade brasileira conseguiu estabelecer de fato uma democracia? Quais são os resquícios desse período na história atual? É o que analisa Dulce Pandolfi, socióloga, doutora em História e ex-diretora do Ibase, no texto abaixo, gentilmente cedido ao Canal Ibase. Para falar do assunto, ela traz à tona acontecimentos recentes, como a morte de Cláudia Ferreira, moradora de Madureira. Dulce apresenta-se de um duplo lugar de fala, enquanto historiadora e, ao mesmo tempo, vítima do Estado implantado pela ditadura iniciada em 1964. O texto foi elaborado para a conferência inaugural no Seminário sobre os 50 anos do Golpe, organizado pela Biblioteca Nacional. Aqui publicamos um trecho, mas o texto todo pode ser acessado em um link ao final deste post. No ano passado, a historiadora deu depoimento à Comissão da Verdade do Rio na Assembleia Legislativa do Rio  (Alerj), no qual chocou o país ao contar que havia sido torturada até com o uso de jacarés. E, além disso, trouxe à tona reflexões importantes sobre os resquícios da ditadura na sociedade brasileira atual, afirmando, em entrevista: “ Muitas formas de torturas ainda existem no país, como, por exemplo, no sistema carcerário e em comunidades. E a população não se mobiliza, encara como natural.” Dulce Pandolfi "O que mais interessa discutir aqui é como se chegou à Lei de Anistia e qual o seu sentido para a sociedade brasileira. Qual a diferença entre perdão e esquecimento? Por que, diferentemente de outros países da América Latina, o Brasil não julgou criminalmente os seus torturadores? É possível sermos um país mais justo e democrático se esquecermos o nosso passado ditatorial? Por que a tortura, que existe desde tempos mais remotos e que não foi uma invenção da ditadura, continua sendo utilizada até os dias de hoje no nosso país, um país onde vigora um regime democrático, ainda que com muitas imperfeições? Não por acaso – tortura e anistia – estão na ordem do dia. Dois acontecimentos recentes, talvez exemplares, podem ajudar na reflexão que estou tentando aqui fazer sobre o passado e o presente. Em primeiro lugar remeto ao depoimento do coronel Paulo Malhães na Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e que foi publicado, em parte, no jornal O Globo no último dia 16/3/2014. Ao assumir a responsabilidade pelo desaparecimento do então deputado federal Rubens Paiva, preso em sua residência no Rio de Janeiro em janeiro de 1971 e cujo corpo até hoje não foi encontrado, o torturador Paulo Malhães, de forma didática, explicou porque, no período da ditadura, era melhor desaparecer com os inimigos do que simplesmente matá-los. Diz ele: “O desaparecimento é mais importante do que a morte porque causa incerteza no inimigo. Quando um companheiro morre, o guerrilheiro lamenta, mas acaba esquecendo. Não é como o desaparecimento que gera uma expectativa eterna”. Prossegue ele: “nada fiz além de cumprir meu dever. Se precisasse faria tudo de novo. Foi tudo racionalizado. Se precisar novamente, estou preparado. Tenho 76 anos, mas ainda posso dar instrução aos mais jovens”. Qual o sentimento que essa fala do torturador Paulo Malhães produz em todos nós, nos perseguidos pela ditadura, nos familiares não só de Rubens Paiva, mas nos familiares de todos os desaparecidos do país? Por que é possível Paulo Malhães falar com tamanha naturalidade e audácia sobre crimes considerados de lesa humanidade e ainda afirmar que se preciso, fará tudo de novo? Esse torturador não deve ser processado e julgado pelos crimes que cometeu? O Estado brasileiro o anistiou? Enfim, qual o impacto que esse e outros depoimentos similares irão produzir na sociedade brasileira? Em segundo lugar remeto, a outro caso também recente e igualmente “estarrecedor, nefando, inominável, infame” como bem descreveu José Miguel Wisnik na sua forte e bela crônica publicada no jornal O Globo, no último sábado, dia 26 de março: o de Claudia Silva Ferreira, baleada no Morro da Congonha, no Rio de Janeiro, em circunstâncias ainda não esclarecidas. Jogada como carga no porta-malas de um carro policial a pretexto de ser atendida, Claudia foi “arrastada à morte, a céu aberto, pelo asfalto no Rio”. Prossegue Wisnik: “É uma imagem verdadeiramente surreal, não porque seja esteja fora da realidade, mas porque destampa (…) uma cena recalcada da consciência nacional, com tudo o que tem de violência naturalizada e corriqueira, tratamento degradante dado aos pobres, estupidez elevada ao cúmulo, ignorância bruta transformada em trapalhada transcendental, além de um índice grotesco de métodos de camuflagem e desaparição das pessoas”. Como disse a filha de Cláudia, em entrevista a uma emissora de televisão, “nem cachorro mereceria o tratamento que deram para minha mãe”. Nunca é demais lembrar que um dos policiais que continuava fazendo seu trabalho de rotina, e que deu a Claudia um “tratamento que nem um cachorro merece”, já tinha anotado na sua ficha profissional a responsabilidade pela morte de treze pessoas. Esses dois casos são reveladores sobre o Brasil de hoje, e se tornam um bom prólogo para tecer algumas considerações sobre o “presente do passado”. Sabemos que o regime implantado com o golpe de 1964 que destituiu João Goulart da presidência da República teve várias facetas e muitas especificidades. Até hoje vencidos e vencedores disputam a memória sobre o ocorrido. A disputa começa pelo nome: aquilo foi um golpe, uma revolução ou uma contrarrevolução? Um divisor de águas na história do país, o golpe de 64 também foi um divisor de águas na minha vida. Em Recife, minha terra natal, eu com 14 anos de idade, era uma entusiasta do governo Jango. Pernambuco era, no pré-64, talvez o estado mais comprometido com as tais reformas de base que tanto me fascinavam. Miguel Arraes, Francisco Julião, Gregório Bezerra, Pelópidas Silveira, Paulo Freire, as Ligas Camponesas, a Reforma Agrária, o Movimento de Cultura Popular, a Campanha de Alfabetização de Adultos, povoavam a minha imaginação. Minha casa era um local de muitos debates. Meu pai fazia parte de um grupo que se reunia nos finais de semana para discutir, arte, literatura, filosofia e política. Minha mãe, apesar de neta e filha de senhor de engenho era uma solidariedade só. Costumava dizer que a principal função do dinheiro era ajudar os mais necessitados. Nos dias que antecederam o golpe, o clima visivelmente tenso. Mas, para mim, tudo parecia muito sólido. Por isso, no dia do golpe, meu mundo caiu. Tudo o que parecia tão sólido rapidamente se desmanchou no ar. Lembro do corre-corre, dos livros sendo queimados, dos estudantes baleados, do líder comunista Gregório Bezerra com uma corda no pescoço, sendo arrastado pelas ruas do meu bairro, pelo coronel Villocq Viana, um dos comandantes da Sétima Região Militar, em uma jipe do Exército brasileiro, recebendo dos militares “um tratamento que nem um cachorro merece”. Esse espetáculo ocorreu no dia 2 de abril de 1964. Logo depois do golpe, muitas também eram as notícias sobre as torturas e os desaparecimentos de inúmeros trabalhadores rurais da zona da mata de Pernambuco, inimigos mortais do regime militar, em função da projeção política que haviam conquistado no governo Jango que tinha como uma das suas principais bandeiras a reforma agrária. Sobre esses trabalhadores até hoje pouco se sabe. Em 1964 muitos não tinham nem documento. Embora atores importantes do processo, eram pré-cidadãos. De fato, o golpe pegou quase todo mundo de surpresa. Lembro também da véspera do golpe. Nós éramos vizinhos e amigos do então prefeito de Recife, Pelópidas Silveira. No dia 31 de março, antes de irmos para o colégio, meu pai preocupado com o clima político, teve uma rápida conversa com Pelópidas, no portão da casa dele. Ele nós tranqüilizou. Sabia que o comandante do IV Exército, Justino Alves Bastos, estava do nosso lado. No dia seguinte, tanto Pelópidas, como Arraes estavam presos e depostos dos cargos de prefeito e governador. Só anos mais tarde entendi o porquê daquele otimismo. Segundo as análises do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que na época era uma força política importante, havia no Brasil uma contradição principal entre, de um lado, as forças do atraso, presentadas pelo latifúndio, apoiado pelo imperialismo, e do outro lado a tal da burguesia nacional, apoiada pelos setores da classe média e pelos trabalhadores. Juntos, em aliança, ajudariam o Brasil a sair do estágio pré-capitalista e se tornar um país capitalista. Completando o quadro, avaliava-se que setores expressivos das Forças Armadas, por pertencer à média ou à pequena burguesia, também estavam do lado do progresso e, portanto, alinhadas com Jango. Talvez por isso, o dirigente comunista Gregório Bezerra, no dia 1 de abril, ao chegar perto da sede do governo, em busca de apoio para tentar barrar o golpe que estava em curso, ao ver a sede toda cercada por policiais, escreveu ele, “fiquei animado, vendo muitos soldados da Polícia Militar limpando e lubrificando fuzis e metralhadoras. Pensei que estavam preparando-se para resisir aos golpistas!” Poucas horas depois, Gregório, preso e torturado, estava sendo exibido publicamente pelos militares, como uma espécie de troféu de guerra. Aquela exposição pública de Gregório parecia querer demonstrar não só que eles, os militares, tinham vencido a guerra, mas também que o tratamento dos inimigos, no pós-guerra, ia ser pesado. Ao longo do período ditatorial, a despeito da intensidade, da modalidade e até mesmo da visibilidade ter variado, a tortura, a morte e o desaparecimento foram práticas adotadas pelo regime, como uma política de Estado. Por isso, no depoimento que dei à Comissão da Verdade, eu acusei os ex presidentes da República Humberto Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo. A despeito das divergências entre eles e das diferentes conjunturas em que chefiaram o país, todos, sem exceção, foram coniventes e responsáveis pela tortura. Mas, a questão que fica é saber qual a memória que a sociedade brasileira construiu sobre a ditadura e mais particularmente sobre a tortura. Sem dúvida, há uma disputa de memórias. Ainda que de forma esquemática, gostaria de mencionar duas. De um lado, apesar das suas diferenças, a nossa visão, a visão dos militantes. Do outro lado, a visão dos militares e dos seus aliados civis, também com suas diferenças. Infelizmente essa ainda bastante cristalizada na nossa sociedade." O texto na íntegra.