Por que há de novo no Iraque ataques com homens-bomba?

O regresso da violência e dos suicidas-bomba no Iraque ilustra a duradoura realidade de que as forças ocupantes norte-americanas e a ilegitimidade do novo regime iraquiano são a causa, não a solução

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O regresso da violência e dos suicidas-bomba no Iraque ilustra a duradoura realidade de que as forças ocupantes norte-americanas e a ilegitimidade do novo regime iraquiano são a causa, não a solução Por Steve Niva Os suicidas-bomba voltam a povoar a paisagem iraquiana, indicando que a guerra está longe de acabar. Após um importante decréscimo, com apenas seis ataques suicidas entre dezembro de 2008 e março de 2009, nos últimos dois meses já se verificaram 25 ataques suicidas no Iraque, ou seja, a pior onda de violência no país em quase um ano. Os atacantes mostraram uma nova audácia e sofisticação, atacando em todos os cantos do país e contra muitos objetivos dotados, em teoria, de altas medidas de segurança. A nova onda de ataques suicidas culminou, no dia 23 de março, em uma série coordenada de quatro explosões por todo o Iraque, três delas com homens-bomba. As explosões aumentaram repentinamente em abril, com ataques contra os comissariados e as bases do exército iraquiano nos enclaves e lugares sagrados. Os ataques foram também dirigidos contra os dirigentes das milícias sunitas apoiadas pelos Estados Unidos e contra as forças norte-americanas, incluindo um caminhão-bomba em Mosul, que matou cinco soldados norte-americanos, o ataque mais mortífero contra as tropas dos Estados Unidos num ano. Os quase 20 ataques suicidas-bomba de abril fizeram deste mês o mais mortífero de 2009 para os civis iraquianos – quase 300 mortos segundo funcionários do Ministério do Interior do país –, comparado com os 51 mortos de fevereiro e os 70 de janeiro. Com a aparentemente esquecida guerra do Iraque de novo sob os holofotes da comunicação social, os funcionários dos Estados Unidos trataram de minimizar o sangrento aumento dos ataques suicidas, considerando-os como uma resposta desesperada ao fato de os Estados Unidos estarem colocando fim à guerra e retirando as suas tropas de forma satisfatória, como anunciou o presidente Barack Obama, no dia 27 de fevereiro, num discurso político sobre o Iraque. Em um episódio particularmente embaraçoso, o secretário da Defesa Robert Gates repetiu a infame afirmação feita em 2005 pelo vice-presidente Dick Cheney, de que a resistência no Iraque estava "nas últimas", afirmando que o caos do país não era mais do que o "último suspiro da Al-Qaeda para reverter os êxitos alcançados". Durante a sua inesperada visita ao Iraque em finais de Abril, a secretária de Estado Hillary Clinton apressou-se a interpretar a violência como "sinal de que os negativistas temem que o Iraque esteja seguindo na direção certa". Contudo, a realidade mostra que o recente aumento da violência no Iraque não se deve ao fato de os Estados Unidos estarem deixando o país, mas à confusão dos calendários e termos da retirada. A verdadeira história por detrás da nova onda de suicidas-bomba é que os rebeldes  estão em conflito com o Estado iraquiano, apoiado pelos Estados Unidos, e que os esforços deste para perpetuar uma ordem favorável à continuação da influência e interesses norte-americanos no Iraque, inclusive com a retirada das suas forças, não é mais que a velha e desde há muito conhecida e chamada política de colonialismo na região. Bombas porque os Estados Unidos não vão embora Apesar das suas declaradas intenções de "acabar com a guerra", oanunciado plano de retirada de Obama não põe fim de forma clara à ocupação do Iraque, continuando-a em novos moldes. O plano apenas pede a retirada das "tropas de combate" para agosto de 2010, ao mesmo tempo que deixa para trás entre 35.000 e 50.000 tropas ocupantes até o final de 2011, muitas das quais tropas de combate rebatizadas de "brigadas de assistência e assessoria". O plano nada diz sobre o exército paralelo de cerca de 100.000 mercenários e contratados privados que pululam atualmente o Iraque, nem se refere ao destino das 283 bases militares e instalações no Iraque, que incluem as 58 bases permanentes onde as tropas norte-americanas vão continuar aquarteladas. Além disso, a retirada norte-americana está sujeita à supervisão do Pentágono com uma série de possibilidades referentes a muitos dos anos vindouros. Como o representante democrata Dennis Kucinich de Ohio imediatamente comentou após o discurso de Obama sobre a retirada: "Não é possível abandonar tropas de combate num país estrangeiro para executar operações de combate e dizer que isso é o fim da guerra. Não é possível estar dentro e fora ao mesmo tempo". Além disso, os Estados Unidos erigiram um estado de domínio xiita através da sua frustrada política de "incremento" da contra-insurreição, com Maliki como primeiro-ministro, defendido por um exército e aparelho de segurança reconstruídos e predominantemente chiita e hostil à população sunita. Apesar de os Estados Unidos terem financiado e armado também os líderes tribais sunitas que se opõem à Al-Qaeda, esses dirigentes opõem-se também ao governo chiita, deixando atrás uma nova e balcanizada ordem iraquiana, que apenas se mantém unida graças à força das armas. Por conseguinte, a missão fundamental das tropas norte-americanas no Iraque, tanto agora como depois da redução inicial de agosto de 2010, será a de preservar e prolongar este regime, incorporando antigos rebeldes xiitas e sunitas dispostos a trabalhar com um sistema patrocinado pelos Estados Unidos e eliminando todos aqueles que se lhe oponham, encarcerando o resto atrás de enclaves muralhados, patrulhados por aviões teledirigidos. Ou seja, criar um regime clientelista para proteger os interesses do império, ao mesmo tempo em que deixa para trás toda uma série de guarnições de tropas e bases, é tudo o que sempre teve o nome de neo-colonialismo. As vestes neocolonialistas da estratégia de saída de Obama não foram bem recebidas pelos rebeldes. O calendário, objetivos e responsabilização pela recente onda de homens-bomba mostram que os membros-chave da insurreição iraquiana chegaram à conclusão de que o plano de Obama só serve para prolongar a ocupação norte-americana, pelo que decidiram desencadear uma nova onda de violência com o objetivo de impedir que essa nova ordem possa criar raízes. A lógica do martírio Não nos deveríamos surpreender. No seu trabalho "Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism", Robert Pape, cientista político da Universidade de Chicago, concluiu que a razão principal dos suicidas-bomba reside na ocupação militar estrangeira e não em qualquer fanatismo islâmico ou "culto do martírio". A maioria dos ataques suicidas em todo o mundo incluem muitos grupos laicos e não muçulmanos, caso dos Tigres Tamiles, e são parte integrante de campanhas organizadas para conseguir um objetivo político, o mais importante dos quais é a expulsão dos exércitos estrangeiros ocupantes. Como era de esperar, os ataques homens-bomba no Iraque só começaram depois da invasão dos Estados Unidos em março de 2003 e, portanto, adquiriram uma frequência e mortandade sem precedentes em campanhas semelhantes. Mas os ataques-suicidas no Iraque atingiram o seu ponto alto na resposta a duas séries de circunstâncias: às ofensivas militares e às importantes iniciativas políticas que procuram fazer crer que o Iraque caminha na senda da estabilidade. O pico mais recente desses ataques revela essa lógica estratégica; a campanha começou na semana seguinte ao discurso de Obama e alcançou em abril o seu ponto alto, coincidindo com o sexto aniversário da queda de Bagdá perante as forças dos Estados Unidos em 2003. Os ataques suicidas foram dirigidos contra todos os elementos importantes do regime iraquiano pós-"incremento", incluindo as forças políticas e segurança iraquianas, civis xiitas e partidos políticos e contra todos os que se percebia serem partidários da ocupação norte-americana e do novo regime iraquiano, como as milícias sunitas apoiadas pelos Estados Unidos. Parece que os rebeldes procuram criar uma atmosfera de insegurança dentro do Iraque, visando derrotar os esforços das forças norte-americanas e do governo iraquiano para impor lei e ordem e criar condições que obriguem os Estados Unidos, distraídos já com o aumento da violência no Afeganistão, a retirar-se quanto antes. A natureza estratégica e de ampla base de apoio desta recente campanha de suicidas-bomba é igualmente bem ilustrada pelas afirmações de várias organizações da resistência, que se responsabilizaram pelos ataques. Perigosamente, há sinais de renovada coordenação baazista e islâmica. O "Estado Islâmico do Iraque", um grupo "guarda-chuva" para os islamistas sunitas, em que se inclui a Al-Qaeda no Iraque, reivindicaram a responsabilidade pelos ataques que mataram cinco soldados norte-americanos em Mosul, assim como por vários outros, afirmando que os recentes ataques faziam parte do "Plano para a Boa Colheita", uma nova campanha contra as forças norte-americanas e os seus partidários no Iraque. Izzat Ibrahim Al-Douri, o fugitivo ex-vice-presidente de Saddam Hussein e líder destacado dos rebeldes do Baaz e sunitas no Iraque, reafirmou a direcção estratégica da campanha numa gravação emitida em Al-Yaaaaasira a 7 de Abril, onde apelidava de ilegítimas tanto as eleições iraquianas como o governo actual, já que apenas foram o resultado da ocupação militar norte-americana. Instou os rebeldes a manter a sua luta contra as forças norte-americanas e o governo do Iraque, porque "o processo político é o principal objetivo da ocupação, razão por que é necessário atacá-lo por todos os meios disponíveis". Mas talvez o pior agouro para os planos iraquianos e norte-americanos de uma nova ordem seja o fato de cada vez mais membros da milícia sunita Filhos do Iraque, apoiados pelos Estados Unidos, estarem incorporarando a insurreição e cada vez "mais dispostos a passar ao ataque". Pôr fim à ocupação é a forma de pôr fim aos ataques de suicidas-bomba. O regresso da violência e dos suicidas-bomba no Iraque ilustra a duradoura realidade de que as forças ocupantes norte-americanas e a ilegitimidade do novo regime iraquiano são a causa, não a solução. O plano de Obama, que pressupõe a continuação da ocupação norte-americana através de novas formas, foi o que motivou virtualmente o regresso dos suicidas-bomba. Ainda que seja improvável que o Iraque presencie outro decréscimo de violência, como em 2006 e 2007, esta nova violência representa uma nova fase da resistência. Como observa o sempre intuitivo Anthony Shadid do Washington Post: "De certa maneira, os ataques são uma reminiscência de uma fase anterior da insurreição, antes de começar a guerra sectária em 2006, quando os agressores colocavam bombas como se de um espectáculo se tratasse, com o objetivo de exaltar o sentido do fracasso norte-americano. Então, como agora, o matadouro enviava a mensagem de que nenhum esforço, fosse norte-americano ou iraquiano, poderia ter êxito no sentido de conseguir a normalidade". Os homens-bomba não podem ganhar as guerras nem mesmo que as forças norte-americanas tirem os bombardeiros do Iraque. Mas o que podem conseguir é que haja um sentimento omnipresente de pânico, incerteza e temor entre a população, que fazem com que a batalha das autoridades estatais iraquianas e das forças estrangeiras para conseguir atrai-las à sua causa seja eternamente inútil. Os suicídios-bomba criam a anarquia política e esse tipo de guerra pode durar enquanto os rebeldes não ficarem sem suicidas-bomba, algo que não se vislumbra no horizonte próximo. Portanto, qualquer verdadeira solução para a duradoura guerra do Iraque deve abordar e ter em consideração as raízes essenciais dos suicídios-bomba, como Pape sublinha: a ocupação estrangeira em qualquer das suas modalidades. A história do Iraque mostra que mesmo uma presença estrangeira mais discreta, como a que foi utilizada pelos britânicos depois de 1930, só serve para comprometer ainda mais as autoridades locais. Enquanto os Estados Unidos continuarem a tentar salvar os seus interesses estratégicos na região da sua embrulhada no Iraque, todos os esforços para desenvolver uma força de segurança iraquiana realmente independente serão pouco honestos e muitos iraquianos rejeitarão a legitimidade do seu governo, que consideram mais um títere do poder imperial indirecto, e continuarão com a sua resistência. Para não continuar a incentivar a insurreição, a administração Obama tem de deixar perfeitamente claro que o seu plano para terminar a guerra no Iraque irá pôr fim também à ocupação. Para o conseguir, será necessário planificar um calendário célere e fazê-lo de forma a preparar o Iraque, sem qualquer reserva, para um futuro inteiramente iraquiano e não moldado pelos desígnios e interesses norte-americanos. Assim, é necessário mobilizar a pressão popular nos Estados Unidos e em muitos outros lugares para obrigar Obama a regressar ao espírito da sua anterior posição antibelicista e retirar todas as tropas, mercenários e pessoal das bases militares norte-americanas em Agosto de 2010. Além disso, a administração Obama tem de dar uma série de passos para iniciar um novo processo político, de preferência sob direcção internacional ou das Nações Unidas, que permitam ao Iraque formular um novo Estado em termos iraquianos, eliminando do governo qualquer lei, procedimento e partidos clientelistas patrocinados pelos norte-americanos. Como sublinhou o analista Joost Hilterman, do International Crisis Group: "Só um novo aglomerado nacional poderá pôr fim de forma decisiva à violência, ao mesmo tempo que se marginalize quem tenha beneficiado da ocupação". Uma presença continuada dos norte-americanos, mesmo que indireta, só favorece novas ondas de suicidas-bomba. Numa entrevista realizada a 17 de Abril, o porta-voz do Ministério da Defesa do Iaque, Mohammed al-Askari, advertiu que uma presença militar norte-americana prolongada no país favoreceria paradoxalmente a Al-Qaeda, fornecendo aos rebeldes desculpas bastantes para justificar os seus actos terroristas: "A permanência norte-americana no Iraque beneficiaria a Al-Qaeda, que assim poderia justificar os seus sequestros, a colocação de bombas e os assassinatos", disse. Muitos iraquianos concordam com esta lógica. "A situação no Iraque só melhorará quando os políticos iraquianos e norte-americanos deixarem o Iraque", afirmou um cidadão em Bagdá. Lamentavelmente, muitos oficiais norte-americanos, incluindo o comandante em chefe no Iraque, o General Ray Odierno, afirmaram que a violência pode obrigá-los a prolongar mais a ocupação, deixando tropas norte-americanas nas cidades iraquianas importantes, inclusive após 30 de Junho de 2009, data fixada para a retirada das tropas de combate norte-americanas. Mas o fato de os rebeldes do Iraque admitirem uma longa guerra contra a ocupação norte-americana e o seu Estado clientelista não significa que os Estados Unidos precisem de ficar no Iraque. A história dos recentes ataques homens-bomba mostrou que quando se põe fim às causas principais que motivam esses ataques e a ocupação termina, as bombas desaparecem. Os exemplos abundam na região: Hezbollah acabou com os suicídios-bomba quando Israel abandonou finalmente o território libanês, e Hamas pôs fim, em grande parte, ao uso de suicidas-bomba quando Israel retirou os seus colonos e soldados da Faixa de Gaza em 2005, ainda que tenha continuado a utilizar outras tácticas violentas quando Israel não acabou com o seu assédio militar sobre Gaza. Se os Estados Unidos retirarem completamente do Iraque, é muito provável que vejamos os iraquianos fazer esforços importantes para acabar com o caos de que Washington afirma estar a protegê-los. * Steve Niva é professor de Estudos sobre o Médio Oriente e Política Internacional no Evergreen State College e colaborador frequente do Foreign Policy, na Focus. Por ODiario.info. Texto original: http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/KE07Ak01.html Tradução: Margarida Folque