Pracownik e a liberdade dos que não têm escolha

Escrito en NOTÍCIAS el

O destaque na timeline anti-golpe no domingo, 13 de março, foi a foto da família de classe média alta carioca, homem e mulher e seus gêmeos brancos, acompanhados pela sua empregada negra, cuja obrigação é se encarregar de todo trabalho braçal com as crianças que os pais brancos possam achar desagradável ou não prazeroso - empurrar o carrinho debaixo de sol, por exemplo.

O Rio de Janeiro, e por extensão, a sociedade brasileira, foi inventado com base nessa estrutura social - escravocrata. Por isso a imagem lembra Debret, no séc. XIX, e fala por si só: não é preciso ter conhecimentos de semiótica para analisá-la, basta conhecer um pouquinho da história de qualquer ex-colônia europeia.

Aparentemente, Claudio Pracownik, o pai de família na foto, a despeito de ter feito Direito na UERJ, não conhece nada dessa história. A sua resposta transborda o brio e a dignidade da família de bem da metrópole, daquelas santas almas que pousam tranquilamente a cabeça no travesseiro todas as noites, conscientes da sua inocência diante dos pecados do mundo. "Eu faço a minha parte", pensam, antes de adormecer entre seus lençóis de seda.

Para o sr. Pracownik, o mundo nasce com ele. As coisas são assim: há os patrões e há os empregados. Há pessoas que mandam e pessoas que servem. Essa é a estrutura natural da sociedade. Porque é branco, estudou muito, trabalhou duro e fez umas concessões aqui e outras ali - nessa ordem, o sr. Pracownik hoje pertence à classe que manda. Porque é negra, estudou pouco, trabalhou duro e fez umas concessões aqui, outras ali, também nessa ordem, a babá - que sequer tem direito a um nome próprio nessa triste crônica - hoje pertence à classe que serve.

Dentro desses limites rígidos e pré-estabelecidos de classe, estão os valores de que se gaba o sr. Patrão, o bom cidadão pagador de impostos: honestidade, ética, respeito ao trabalhador subalterno - que é livre para escolher servi-lo.

O sr. Pracownik e a sua classe ignoram (de propósito, por cinismo ou ingenuidade?), o fator História.

Ignora que não, o mundo não nasceu com ele, essa divisão de classes não é natural, mas foi construída. Construída em um processo histórico de colonização que sempre favoreceu os brancos - lusitanos nobres ou mortos de fome eslavos - em detrimento de índios, negros e mestiços, fossem reis em Gana ou ladrões em Angola. Abolida a escravatura, derrubado o império, constituída a república, conquistada a democracia, duzentos anos depois e ainda não nos livramos das bases racistas sobre as quais se erigiu esse país inventado por Portugal.

Por isso, só uma indesculpável ignorância ou um debochado e cruel cinismo podem pensar, afirmar, escrever e publicar que uma empregada doméstica no Brasil é "livre para pedir demissão se achar que prefere outra ocupação ou empregador".

Eu não conheço a trajetória da babá, porque ela não tem direito a nome na notícia, não tem um perfil público como o sr Patrão, ela é só um corpo sobre o qual se discorre, sem direito a voz, a "desabafo" em rede social, a direito de resposta no blog da esquerda. Ela é um corpo instrumentalizado, teorizado, objetificado, historicizado, pelo patrão e por mim, suposta pensadora progressista, agora, enquanto escrevo sobre ela - sobre você! - mesmo sem a conhecer. Posso não saber nada sobre ela além da foto, mas sei que uma mulher negra no Brasil conhece poucos significados práticos da palavra livre.

Porque em uma sociedade racista, dividida por classes e com pouca mobilidade social, uma mulher negra de origem pobre pode escolher entre vários papéis subalternos, e nada mais. Ela pode sim, escolher, entre limpar o chão da sede de um banco - e ser só mais uma funcionária cumprindo um turno entre dezenas de funcionárias cumprindo um turno - ou ser babá de uma família rica, que vai personalizar a relação empregado-patrão, tratá-la pelo nome, entendê-la no dia em que ela tiver que chegar mais tarde ou sair mais cedo, mandar um presentinho no aniversário do filho mais novo, ajudar a conseguir uma vaga na escolinha de futebol pro mais velho, pagar mais pelo fim de semana - esmola vira privilégio, humilhação vira regalia! É o mais alto que se pode chegar dentro da vida de empregada - mas, atenção, ela é livre se quiser outra ocupação ou outro empregador, ela é livre pra escolher entre trabalhar e trabalhar, entre ficar cansada ou exausta, entre ganhar pouco ou pouquíssimo, entre morar longe ou mais longe ainda.

Enquanto o patrão pode escolher entre ganhar muito dinheiro num clube de futebol ou num banco, ou até, quem sabe tirar um aninho sabático pra meditar na Islândia, entre a babá da semana e a do fim de semana, entre sair a pé ou pagar hora extra pro motorista.

(ou talvez seja preconceito meu, imagina! a senhora empregada pode ser formada, classe média, decidiu largar tudo pra seguir sua verdadeira vocação no mundo, levar uma vida sem stress e sem a responsabilidade de outros cargos, uma rotina mais simples, cuidando dos filhos alheios por amor e pouco dinheiro, afinal nem tudo é conforto na vida - ou ela já juntou todo aquele que precisava - e eu que sou racista, que vitimizo a trabalhadora, coitada, o preconceito tá todo na minha cabeça! se for esse o caso, minhas mais sinceras desculpas, minha senhora, seja feliz!)

Mas duvido que seja esse o caso.

Um patrão encher a boca para dizer que trata os empregados de "igual pra igual" é o cúmulo da hipocrisia do politicamente correto pós-moderno, pós-história. É discurso que nega o legado e a herança das gerações que inventaram esse país e essas classes, das diferentes diásporas que tiveram que acontecer no mundo para que a sra Silva/Sousa/Pereira (?) fosse empregada do sr. Pracownik. Não foi por acaso, não foi sorte, não é coincidência: é conservadorismo econômico, oligarquia, protecionismo racista, concentração de renda - tudo o que um dia o governo de um metalúrgico tentou - e fracassou - em combater.

Aqui não quero entrar no des-mérito da manifestação, queria só mesmo isso, dizer ao senhor, sr. Pracownik, que o senhor é um cínico, ou, na melhor das hipóteses, um ingênuo, um burro mesmo, o sr. e toda essa sua gente que te justifica. Que ser honesto em um sistema injusto vale tanto quanto ser carrasco e amar a profissão. Quero dizer, ainda, que não é o dinheiro que o sr. paga pros seus empregados por mês - talvez o mesmo que terá custado esse carrinho duplo pras crianças, hein? Menos? - que te faz ser menos explorador de seres humanos que o sr. não considera do seu nível - de gente que o sr. considera livre pra servir. Que não foi o seu mérito que te deu sua posição, mas a cor da sua pele, a caridade, a condescendência e a solidariedade de classe dos donos do jogo, outros homens brancos de sobrenome europeu. E que eu eu espero que um dia o sr. seja livre para ter a dignidade de limpar a merda dos seus próprios filhos.

E, ah, ironia das ironias. Em polonês, Pracownik significa empregado.

Temas